Desde a criação do cinematógrafo pelos irmãos Lumière, em 1895, cinema e música sempre estiveram de mãos dadas. No cinema brasileiro, um caso peculiar dessa união envolve duas figuras tão ilustres quanto pouco conhecidas pelo grande público: o cineasta Alberto Cavalcanti (1897-1982) e o compositor, instrumentista e maestro César Guerra-Peixe (1914-1993).
O trabalho de ambos, que contribuiu de forma definitiva para a evolução da trilha sonora no cinema, foi objeto de estudo da professora Cecília Nazaré de Lima, da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), na tese de doutorado que defendeu recentemente na Escola de Belas Artes daquela universidade.
Para compreender a evolução dos três elementos auditivos no cinema – palavra, ruído e música –, Cecília detalhou o trabalho de sonorização realizado por Cavalcanti e Guerra-Peixe nos filmes Terra é sempre terra (Vera Cruz, 1951) e O canto do mar (Kino Filmes, 1952/53).
O primeiro centra-se em um triângulo amoroso que envolve o capataz de uma fazenda de café no interior de São Paulo, sua mulher e o dono da fazenda. O segundo narra o destino de uma família nordestina arrasada pela miséria da seca.
Sem acesso às partituras originais, Cecília teve que usar sua percepção e seu conhecimento musical para anotar trechos da trilha sonora dos filmes analisados. “Até a década de 1940, os músicos eruditos que compunham trilhas lançavam mão da música de concerto, nem sempre escrita originalmente para o filme e que, muitas vezes, se sobressaía à imagem”, conta Cecília. Cavalcanti e Guerra-Peixe rejeitaram esse padrão, buscando um casamento harmonioso entre som e imagem.
A pesquisadora investigou também a importância do ruído na construção de cenas. Segundo ela, Cavalcanti considerava que a música de cinema não devia ser um elemento meramente decorativo, mas um recurso que emergisse de algo concreto, como, por exemplo, o rumor de uma goteira em dia de chuva.
Esse ponto de vista coincide com o conceito de ‘ruído funcional’, utilizado por Cecília em seu estudo. A exploração funcional do ruído, que transcende a imagem e é potencializado ao se unir à música, dá força dramática a várias cenas de Terra é sempre terra. Nesse filme e em O canto do mar, percebe-se, segundo a pesquisadora, que o ruído adentra a narrativa para se tornar quase um personagem da história.
Câmeras e partituras
Esquecido no Brasil, mas reverenciado no cinema europeu, Alberto Cavalcanti é um cineasta de importância internacional. Alcançou fama por trabalhos feitos com o documentarista escocês John Grierson (1898-1972).
Sua filmografia reúne 118 filmes, dos quais dirigiu cerca de 60. Nas demais produções, trabalhou como roteirista, cenógrafo e montador. Seu livro Filme e realidade, de 1952, tornou-se um hit entre estudantes de cinema.
Após criticar Cavalcanti, o cineasta Glauber Rocha (1939-1981) fez mea-culpa e escreveu em seu livro Revisão crítica do cinema brasileiro, de 1963, que Cavalcanti havia sido expulso do cinema nacional. “Ele teve de arrumar as malas e retomar seu prestígio na Europa.” O próprio Cavalcanti confessou que, no Brasil, sofreu a única e grande decepção de sua carreira.
Guerra-Peixe escreveu mais de 250 partituras, muitas delas ligadas à temática nordestina. Embora sua participação seja registrada oficialmente em oito produções cinematográficas, seu nome vincula-se a mais de 30 filmes, seja como diretor musical, arranjador ou autor de trilhas originais. Apesar disso, suas composições para o cinema, algumas premiadas, são pouco conhecidas.
Para lembrar os 30 anos da morte de Cavalcanti, o Festival de Cinema do Rio homenageou-o, em outubro passado, exibindo dez de suas obras. Tanto a mostra carioca quanto a tese de Cecília são tentativas de reviver e reverenciar a memória do cineasta.
O trabalho da pesquisadora da UFMG, além de reabilitar sua produção nacional, atestou a influência de Guerra-Peixe na composição da temática brasileiríssima nas duas obras feitas em parceria com o cineasta.
Mariana Ceccon
Especial para Ciência Hoje/ PR
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Cometemos um equívoco na legenda da segunda imagem. Alberto Cavalcanti não dirigiu o filme Terra é sempre terra, como havíamos afirmado; a direção foi de Tom Payne. A pesquisadora Cecília Nazaré explica, no entanto, que “Alberto Cavalcanti era o produtor geral da Vera Cruz e desde a primeira produção em 1950, o filme Caiçara, ele estava no comando de todas as etapas do filme, da preparação, do cenário, da escolha do músico, da montagem e do acabamento final do filme. Ele mesmo dizia ser esta a função de um produtor, uma função que exigia grande preparo e responsabilidade e que, por isso mesmo, era muito difícil encontrar, especialmente no Brasil, pessoas que se interessassem e que estivessem preparadas para exercê-la”. (21/01/2013)