Físico e divulgador de ciência no canal Ciência Nerd
Universidade Federal de Juiz de Fora

Embora seja geralmente associada a comportamentos exagerados e obsessivos, a admiração profunda por um artista, obra ou outro ícone cultural pode dar origem a novas criações artísticas e até mobilizar as pessoas em prol de causas sociais e ambientais

CRÉDITO: ADOBE STOCK

A saga Crepúsculo inspirou novas histórias escritas por fãs (ou fanfics) que saíram dos fóruns de internet e das redes sociais e ficaram famosas

Você se considera fã de algum artista, de uma série de livros, filmes ou jogos, de um time de futebol ou outro esporte?

Algumas pessoas responderão essa pergunta com muita facilidade, diz endo que têm sim algum ídolo ou ídola, ou dizendo que não são fãs de nada nem ninguém. Para outras, no entanto, essa pergunta pode não ser tão óbvia. Afinal, o que exatamente é ‘ser fã’?

Para ser fã de uma celebridade basta admirá-la e gostar de seu trabalho ou é necessário existir um sentimento mais forte, uma devoção, uma obsessão? Ser fã é coisa de adolescente, é ‘só uma fase’?

A conotação negativa que a palavra fã pode ter e utilizarem palavras mais brandas, como: ‘eu gosto’, ‘eu admiro’, ‘eu me interesso’. Mas será que ‘ser fã’ é algo ruim e prejudicial?

O estereótipo de ser fã

No final do século 19, a humanidade vivenciou um intenso desenvolvimento dos meios de comunicação, como rádio, televisão, cinema. O potencial de atingir públicos cada vez maiores levou os produtores culturais a criarem obras mais acessíveis e atrativas, que fossem capazes de atingir o maior número possível de pessoas. Assim, foi-se formando uma indústria cultural lucrativa e influente, que se tornou a principal fonte e veículo da chamada cultura de massa.

Muitos estudiosos da época, como os sociólogos alemães Theodor Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973), faziam fortes críticas à indústria cultural, pela produção de obras superficiais, sem qualquer valor artístico e que seguiam fórmulas padronizadas, com a única finalidade de manipular as massas, fomentar o consumismo e produzir lucros.

Para ser transformada em mercadoria, a arte vai sendo destituída da sua capacidade de provocar reflexões, de causar estranhamento, de levar mensagens que as pessoas nem sempre querem ou estão prontas para ouvir.

A indústria cultural atuou na uniformização do gosto popular, incentivando um consumo passivo de seus produtos e promovendo um senso de conformidade e satisfação (ainda que artificial), desfazendo qualquer sentimento de revolta contra o próprio sistema.

Nesse contexto, alguns indivíduos começam a desenvolver profunda admiração por produtos específicos dessa indústria, seja um artista, uma obra ou qualquer outro ícone cultural. Muitas vezes, essa admiração se torna tão grande a ponto de levar pessoas a tomarem atitudes extremas para chegarem perto de seus ídolos, para chamar sua atenção e serem notadas.

O exagero por parte de alguns fãs e o fato de terem como objeto de admiração produtos de uma cultura de massa resultaram em uma série de estereótipos. Fãs são frequentemente percebidos como pessoas obcecadas, inseguras, emocionalmente descontroladas, irracionais e, às vezes, perigosas. Outros os veem como vítimas da indústria cultural, meros fantoches que consomem passivamente essa cultura de massa e a reproduzem sem qualquer senso crítico.

O medo que alguns artistas têm de fãs mais acalorados e obcecados se justifica por situações já vividas por celebridades como Beyoncé, Madonna, Miley Cyrus e Justin Bieber. Esses e outros artistas já tiveram suas casas invadidas ou foram perseguidos, assediados e até atacados por fãs. Um dos casos mais extremos foi o do cantor John Lennon, dos Beatles, que foi morto a tiros por um fã.

Por essas razões, fica fácil entender por que a condição de fã , desvio social, solidão, infantilidade e futilidade, como mostram as pesquisas.

Os fãs da cantora Taylor Swift se mobilizaram para promover a projeção de mensagens de boas-vindas no Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, quando a artista esteve no Brasil em 2023

Além do estereótipo

Por muito tempo, os pesquisadores negligenciaram os fãs e não se preocuparam em estudá-los cientificamente. Por isso, e por um constante reforço da mídia dessa imagem do fã, esse estereótipo perdurou.

Em 1992, o pesquisador norte-americano Henry Jenkins (1958-) publicou o livro Invasores do texto: fãs e cultura participativa, que se tornou um marco nessa área de estudos. Em sua obra, Jenkins rejeita os estereótipos do fã ingênuo e passivo e os enxerga como produtores ativos, capazes de dar novos significados àquilo que consomem.

Com a intenção de homenagear, reinterpretar ou expandir o conteúdo de suas obras ou celebridades favoritas, os fãs usam de sua criatividade para produzir novos produtos culturais.

As ‘fanfics’ (ou ‘fanfiction’), por exemplo, são histórias escritas por fãs que se baseiam em personagens, cenários e universos de obras já existentes. Elas permitem que os fãs explorem seu objeto de admiração para além dos limites impostos pelo material original. Algumas dessas histórias, inclusive, saem dos fóruns de internet e das redes sociais e ficam famosas, podendo até se tornar livros e filmes de sucesso, como aconteceu com uma fanfic da franquia Crepúsculo chamada Master of the universe, nome que depois mudou para Cinquenta tons de cinza.

Os fãs que se expressam melhor por meio de desenhos podem se dedicar às ‘fanarts’, que podem ser ilustrações, pinturas, desenhos (digitais ou não), esculturas. Essas obras costumam ser compartilhadas em redes sociais, fóruns de internet e sites dedicados à arte de fãs.

Além dos textos e imagens, muitos fãs também se dedicam à produção de vídeos dos mais variados estilos. São muito comuns os recortes de filmes ou séries que destaquem temas específicos, as montagens de vídeo que combinam cenas de personagens específicos com uso de alguma trilha sonora e compilados de melhores momentos de uma obra ou celebridade.

Como defende Jenkins, os fãs não veem a obra como o fim, mas como o início, como a motivação inicial para criarem sua própria arte e construírem seus próprios significados. Apropriando-se de elementos de uma cultura comercial e hegemônica, os fãs se expressam artisticamente e produzem uma nova forma de cultura popular.

Comunidades de fãs

Os fãs podem produzir seus conteúdos e expressar sua admiração pelo seu ídolo de maneira isolada. Mas é muito comum que eles se organizem em comunidades, algo que já ocorre há muito tempo, mas foi potencializado pela internet.

As comunidades de fãs (ou ‘fandoms’) permitem que seus integrantes compartilhem interpretações, desejos e insatisfações, além de conectar pessoas com interesses comuns e propiciar a divulgação de conteúdos produzidos por fãs. Muitas comunidades também se organizam para enviar cartas a produtoras de televisão para evitar o cancelamento de uma série, ou para homenagear e presentear seus ídolos (como a recente projeção no Cristo Redentor dando boas-vindas para a cantora Taylor Swift ao Brasil).

Embora essas comunidades de fãs não sejam (na maioria das vezes) grupos organizados, nem mesmo geograficamente próximos, alguns estudos mostram que os fãs se percebem como membros de uma comunidade. Esse senso de pertencimento traz aos fãs uma percepção de identidade coletiva, propiciando alguns benefícios psicológicos.

Pesquisas também mostram que fandoms brasileiros funcionam como espaços de socialização e formação de laços, onde muitos fãs se sentem livres para expor detalhes pessoais que acreditam não ser aceitos por outros núcleos da sua vida (principalmente relacionados à sexualidade, mas também sobre religião, política, raça e gênero). Assim, que os fandoms influenciam expressivamente na formação identitária dos jovens que participam desses grupos.

Fãs do grupo de música pop coreana BTS realizaram ações para incentivar jovens brasileiros a tirarem seus títulos de eleitores e votarem nas eleições de 2022

Dos fandoms para o mundo

Os meios de comunicação nunca estiveram tão interconectados como hoje. A tecnologia e a infraestrutura da qual dispomos na atualidade permitem que as pessoas interajam ativamente com os conteúdos que consomem. Com isso, as produções de fãs e suas atuações nos fandoms são facilmente propagadas pelos meios digitais.

As críticas, os elogios e as criações de conteúdos dos fãs não apenas alcançam os produtores culturais, como também podem impactar decisões importantes de produção e marketing. Uma franquia de filmes ou jogos pode investir muito dinheiro em publicidade e divulgar seu produto no mundo inteiro, mas uma comunidade de fãs engajada e determinada também pode cumprir esse papel, às vezes de forma até mais eficiente.

Os fãs do Brasil, em especial, são mundialmente reconhecidos como muito calorosos e dedicados. O bordão ‘please come to Brazil’ (‘por favor, venha para o Brasil’) é apenas um dos exemplos que ilustra o clamor dos brasileiros pelas celebridades internacionais. Não é à toa que muitos desses ídolos e empresas investem no público do nosso país, com propagandas, postagens e comentários em redes sociais e até visitas.

Algumas empresas estão atentas às opiniões dos fãs e as aproveitam para melhorar suas produções. Mas também existem aquelas que fazem o chamado ‘fan service’. Quando um produto é desenvolvido com o principal e claro intuito de agradar aos fãs, por vezes abrindo mão de outros fatores importantes (como a coerência do roteiro em um filme), dizemos que a empresa está ‘servindo aos fãs’. O incômodo com esse tipo de prática é válido, mas é natural que algumas produtoras recorram a essa estratégia, já que seu interesse é, principalmente, de natureza comercial.

O impacto dos fãs no mundo ainda vai além do aspecto artístico das produções. (música pop coreana) fez uma apresentação de dança no centro de Seul com cartazes pedindo que a Melon (maior serviço de assinatura de música sulcoreana) se comprometesse a utilizar energia renovável. Semanas depois, a empresa se manifestou prometendo adotar 100% de energia renovável em seus centros de dados.

Outros grupos, como o Kpop4planet, vêm obtendo sucesso em ações como essa, promovendo ativismo ambiental e influenciando positivamente o cenário climático mundial.

Cientes do seu poder de mobilização, os fandoms têm praticado o que está sendo chamado de fã-ativismo. Um exemplo foram as ações realizadas pelos fãs do grupo musical BTS para incentivar jovens brasileiros a tirarem seus títulos de eleitores e irem às urnas. Em escala mundial, vimos, nos últimos anos, fãs de artistas como Beyoncé, Taylor Swift, entre outros, que clamaram para que seus ídolos se manifestassem em defesa da causa palestina e cancelassem seus shows em Israel.

Esses e outros inúmeros exemplos deixam claro que o velho estereótipo negativo a respeito dos fãs não se sustenta. Você pode não gostar deles, por defenderem apaixonadamente algo que não é do seu interesse, mas o impacto dos fandoms no mundo e suas atuações na produção cultural são indiscutíveis.

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