Apresentando um perfil químico bastante complexo, a Cannabis tem grande potencial para o desenvolvimento de novos fármacos, suplementos alimentares e insumos agrícolas
Apresentando um perfil químico bastante complexo, a Cannabis tem grande potencial para o desenvolvimento de novos fármacos, suplementos alimentares e insumos agrícolas
CRÉDITO: IMAGEM ADOBE STOCK
Desde o final de junho, discussões relacionadas à maconha permearam o debate público. Em face ao julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) – que descriminaliza o porte pessoal e fixa a quantia de 40 gramas ou 6 plantas fêmeas para diferenciar usuários de traficantes –, notícias, debates, entrevistas e posts dos mais variados geraram “ondas” de notificações nos smartphones.
Em retrospectiva, evidências do uso da Cannabis datam de mais de 26 mil anos, quando sociedades do Paleolítico empregavam sua fibra para a confecção de cestos (o tênis de fibra de maconha não é, portanto, uma grande novidade). No que diz respeito ao tratamento de doenças, há mais de 5 mil anos ela era prescrita na medicina tradicional chinesa para tratar fadiga, reumatismo e malária. Quanto ao seu uso recreativo, de acordo com o historiador grego Heródoto, há pelo menos 2.500 anos os Citas “aromatizavam” suas saunas com a fumaça da planta. Já em tempos atuais, em paralelo às polêmicas provenientes do debate sobre as drogas, o interesse científico e médico pela Cannabis cresceu de forma exponencial. Estima-se que, anualmente, sejam publicados cerca de 10 mil artigos científicos relacionados a ela.
Apesar do longo histórico de uso da Cannabis, estudos específicos sobre seus constituintes químicos* são recentes, pouco explorados e com enorme potencial para promoverem inovações em diversas áreas. Dois desses constituintes ganharam grande notoriedade nos últimos anos, o canabidiol e o tetra-hidrocanabidiol, normalmente referenciados pelos seus acrônimos CBD e THC. O primeiro por suas notáveis propriedades farmacológicas; já o segundo em razão de seus efeitos psicoativos. Mas a Cannabis está muito além desses compostos, apresentando um perfil químico bastante complexo. De acordo com a literatura científica, mais de 550 compostos já foram encontrados em suas diferentes espécies. Dentre esses estão mais de 140 canabinoides, substâncias pertencentes à mesma classe do CBD e do THC, 120 tipos diferentes de terpenos, 46 tipos de compostos fenólicos e polifenólicos, além de ácidos graxos, aminoácidos, vitaminas, fitoesteróis, dentre outras. Todas essas com um potencial enorme para o desenvolvimento de novos fármacos, suplementos alimentares e insumos agrícolas.
Com o intuito de organizar esse caos químico, foi criada uma base de dados, a Cannabis Database, que reúne informações de moléculas obtidas diretamente de plantas das espécies Cannabis sativa, Cannabis indica e Cannabis hybrids, ou da fumaça proveniente das suas queimas, que leva à formação de novas moléculas. O projeto é apoiado pelo Canadian Institutes of Health Research, Canada Foundation for Innovation e pelo Metabolomics Innovation Centre (TMIC). O objetivo principal é fazer conexões entre esses compostos e informações relacionadas à fisiologia do corpo humano, ou seja, investigar como eles podem interagir com o nosso organismo e quais são as respostas fisiológicas que eles podem gerar. A base já conta com mais de 6 mil entradas, com descrições detalhadas dos diferentes compostos distribuídas em mais de 500 referências. A busca na base pode ser feita a partir do efeito biológico de cada molécula – por exemplo: analgésico, imunossupressor, neuroprotetor, psicoativo, sedativo, bactericida, antidepressivo, dentre outros – ou com base em categorias químicas, como metabólitos primários, secundários etc.
Apenas para exemplificar, nas sementes da Cannabis já foram detectados ácidos graxos poli-insaturados capazes de estimular o sistema imunológico e com potencial para aliviar sintomas de doenças como a dermatite atópica e a psoríase. Já nas raízes, folhas e flores estão distribuídos terpenos como o α-pineno, com propriedades anti-inflamatórias, bactericidas e broncodilatadoras; o β-cariofileno, que protege o trato digestivo e tem atividade frente ao protozoário causador da malária; além do β-mirceno, que é analgésico, sedativo e relaxante muscular.
Além do interesse científico que cada um desses compostos pode apresentar, separá-los e quantificá-los pode trazer benefícios tanto para usuários de Cannabis medicinal, quanto para os médicos que a prescrevem. Assim, amostras de Cannabis podem ser analisadas com maior facilidade e eficácia, garantindo o uso de produtos que apresentem boa qualidade e com os efeitos médicos desejados para cada tipo de tratamento. Além disso, fora da esfera médica, conhecer a planta de forma mais profunda é uma maneira eficaz para desconstruirmos preconceitos e ressignificarmos a nossa sociedade. A Cannabis vista pelo viés da química é uma fábrica de moléculas complexas, capazes de interagir com sistemas biológicos diversos, e que podem auxiliar na resolução de inúmeros problemas.
*Sim, plantas produzem substâncias químicas, somos constituídos de substâncias químicas, nos alimentamos de substâncias químicas e, como sempre escrevo, essa coluna tem como missão desconstruir o viés pejorativo atribuído à palavra química, seja pelo mal uso da palavra ou por desinformação.
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