Não parece existir civilização ou sociedade humana que não tenha manifestações musicais próprias. A música está presente em diversas atividades coletivas: de rituais religiosos e celebrações a festas e funerais. Mas por que essa combinação de sons e ritmos nos arrebata e emociona ao ponto de invocar manifestações primitivas e respondermos fisicamente a ela? Como nosso cérebro processa a música? Ela é capaz de mudar a estrutura e as funções cerebrais?
Para entender melhor a relação entre música e neurociência, a CH ouviu o neurologista Mauro Muszkat, do Departamento de Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Também graduado em regência e composição musical, Muszkat estuda como o ritmo, a melodia e a harmonia são processados no cérebro e podem auxiliar na terapia de transtornos de neurodesenvolvimento. Nesta entrevista, ele fala sobre suas pesquisas, plasticidade cerebral e o potencial da música na reabilitação.
De que forma as novas técnicas de neuroimagem desenvolvidas nas últimas décadas nos ajudam a entender como a música é processada no cérebro?
Com o grau de definição das novas tecnologias, é possível visualizar onde e de que maneira se dá a ativação sequencial de várias áreas no cérebro durante o processamento da música, seja rítmico, melódico ou harmônico. As técnicas de neuroimagem permitem traçar quase uma cartografia das áreas ativadas e até da ordem temporal dessa ativação, dando uma ideia se essas áreas têm a ver com processos amplos da cognição, como a linguagem ou o processo motor e o armazenamento da memória. Então, consegue-se visualizar em ação o grau de ativação de várias áreas cerebrais durante o processamento musical.
E quais seriam as áreas ativadas durante o processamento musical?
Hoje se sabe que a música ativa amplas regiões cerebrais, áreas complementares – e algumas até comuns – às áreas relacionadas com a linguagem (fala, leitura e escrita) e com a emoção. Envolve desde áreas mais internas do cérebro emocional, como a amígdala, responsável pelas emoções mais primárias, e áreas mais estratégicas, como o córtex pré-frontal, responsável pelo planejamento e pela organização da informação que já foi armazenada.
Nesse sentido, a música facilita a conectividade de áreas cerebrais envolvidas com processos motores, emocionais e de linguagem. Por isso, ela tem esse grande potencial para a reabilitação, quando há comprometimento do desenvolvimento devido a transtornos neuropsiquiátricos, ou mesmo em casos com problemas motores.
O desenvolvimento das habilidades musicais, então, poderia ajudar no aprendizado de outras habilidades, como línguas?
Exatamente. Na Unifesp, já orientei alguns trabalhos em torno do processamento cerebral da música. O último foi sobre processamento temporal, utilizando a música em crianças que têm déficit de atenção. Foi uma dissertação de mestrado de um músico que estudou neurociência para entender de que maneira crianças com déficit de atenção têm dificuldades de estimar tempo e perceber ritmos e padrões temporais, e se essa dificuldade melhora ou não com o uso de medicamentos ou tratamento específico para o transtorno.
Esse estudo mostrou que há uma alteração nesse processamento temporal que está relacionada ao próprio déficit de atenção. E a música pode ajudar de alguma maneira no processamento de sequências temporais, uma vez que ela traz consigo um componente emocional e envolvimento lúdico intrínseco, sendo mais bem aceita pelos pacientes do que um treino repetitivo. Então, a música pode ser usada como instrumento para a reabilitação por meio da ativação de padrões que podem modular as dificuldades de organizar, de sequenciar, e que estão associados, por exemplo, ao déficit de atenção.
Nós encontramos que o processamento de sequências temporais e da capacidade de estimar tempo é mais falho em quem tem déficit de atenção e que a própria música pode ser um instrumento facilitador para reorganizar funções amplas com impacto em funções extramusicais, como a atenção, o planejamento e a memória.