A autora deste livro vem da área mineral: Ana Lucia do A. Villas-Bôas graduou-se em sociologia e política, com mestrado em política científica e tecnológica e doutorado em ciências sociais, e começou a trabalhar no Centro de Tecnologia Mineral (Cetem), quando publicou A questão mineral na Constituição de 1988. Mudou-se para a área espacial, a fim de checar se o Brasil, país em desenvolvimento abraçado pela economia globalizada, teria chance de criar e executar um programa nacional suficientemente soberano e sustentável de desenvolvimento tecnológico de fronteira nessa área. Enorme desafio, tanto para o país quanto para a autora. Villas-Bôas, tenaz e perspicaz, enfrentou-o com dados coletados em amplo recorrido histórico. A visão alargada é uma atitude virtuosa. Brinda-nos com tela cheia e detalhada.
Os capítulos do livro nos dão clara ideia de sua amplitude: são apenas três, mais a conclusão de 10 páginas, um sem-número de referências, uma lista de abreviaturas e siglas e um glossário valioso para quem não tem conhecimentos técnicos sobre eventos, instituições e equipamentos espaciais. Os três capítulos cobrem uma trajetória abrangente.
O primeiro fala da ‘Construção do Programa Espacial Brasileiro (PEB)’. Mas não se deve esperar que a autora se detenha apenas no programa propriamente dito. Ela vai lá atrás e trata da institucionalização da ciência e tecnologia no Brasil. Aborda algo muito importante na nossa história: ‘A questão nacional nas propostas de desenvolvimento’ e, como não poderia deixar de ser, examina ‘A primeira fase de Vargas: 1930- 1945’, quando o Brasil deixa de ser um país agrícola e começa a luta pela industrialização.
Só depois de apresentar esse quadro geral, Villas-Bôas considera-se habilitada para revelar os contornos iniciais da pesquisa espacial, a importância do programa espacial no Brasil e o Plano Nacional de Atividades Espaciais (PNAE) 2005-2014. Ela se detém neste plano – o que é bom –, mas não leva em conta o seguinte: o PNAE 2012-2021, com suas inovações, o que é uma falha difícil de justificar, já que o livro foi publicado agora, em 2016.
O segundo capítulo talvez seja inédito na historiografia das atividades espaciais no Brasil. O título já diz tudo: ‘Os militares no poder’. E, de novo, a autora começa muito antes do PEB. O primeiro subcapítulo conta sobre o Clube Militar – a cisão e o confronto nas Forças Armadas no período 1945-1964, sobre a história pós-Segunda Guerra Mundial até o golpe militar de 1964, quando os militares, sobretudo da Aeronáutica, assumiram papel relevante no desenvolvimento do PEB.
A seguir, dedica várias páginas às correntes majoritárias – nacionalistas e antinacionalistas – entre os militares. Depois, assistimos às muitas e variadas lutas intestinas em ‘Cisões, rachas, partidos, lideranças, correspondências com grupos civis e sobreposições entre as correntes militares – a hierarquia é ou não soberana?’. Na sequência, 13 páginas alinham fatos e comentários sobre a Doutrina da Segurança Nacional (DSN), alvo de longas discussões tanto no país como no exterior. O capítulo termina com longa análise sobre o golpe de 1964, governos militares, DSN e Política de Ciência e Tecnologia (PC&T), e considerações sobre o binômio ciência e desenvolvimento nos governos militares.
O terceiro capítulo – ‘A nova ordem mundial’ – nos convida a olhar a cena global para entender melhor nossas questões locais, inclusive, e sobretudo, as complicações no espaço cósmico. Não por acaso, seu primeiro subcapítulo enfrenta um tema-chave: globalização, Estados nacionais e soberania. Seguem-se problemas igualmente essenciais: Estados nacionais, ambiente e tecnologia espacial; ciência e poder; as atividades espaciais e a concentração do conhecimento científi co-tecnológico; e, finalmente, indo do geral ao particular, chegamos ao Brasil da Nova República e seu programa espacial. Aplausos à metodologia!
Confirmando o enfoque, num tema de envergadura global, Villas-Bôas ressalta, na conclusão, que o esforço de desenvolver o tema das tecnologias espaciais no Brasil, refletidas no PEB, “nos fez necessariamente reconstruir o cenário dos anos 1950, quando o país ensaiou seu movimento, parcialmente bem-sucedido, de implantação do CNPq, pronto para responder às demandas do desenvolvimento”. O fato, afirma ela, é que “a construção do complexo espacial brasileiro ocorreu no contexto de um mundo ainda dividido pela Guerra Fria, nos causando certa estranheza, pois, recuando um pouco no tempo e ainda como parte do mesmo processo, o país não conseguira se capacitar em energia nuclear” (nos anos 1940 e 1950). Isso só veio a acontecer na década de 1980, graças a um programa conduzido em segredo pela Marinha brasileira.
A autora também salienta que o PEB, concebido por militares brasileiros, teve grande impulso após a tomada do poder pelos militares em 1964, portadores de uma visão de projeto nacional, onde cabia à C&T um lugar destacado. Esse primeiro período, diz ela, vai até o final dos anos 1980, época em que o Estado brasileiro e outros Estados nacionais supunham poder exercer papel preponderante em seu próprio espaço territorial, com as relações internacionais sendo pautadas menos pela interdependência e mais pelo alinhamento automático dos países com uma das duas grandes potências, EUA e URSS.
Cabe-me, no entanto, esclarecer: esse período passa por etapas diametralmente opostas, pois inicia-se com um alinhamento absoluto com os EUA, que apoiaram ativamente o golpe de 1964, e termina com o rompimento do acordo militar com aquele país, em 1977, durante o governo nacionalista do General Ernesto Geisel (1939-1996), que lançou, em 1979, a ‘Missão Espacial Completa Brasileira’, primeiro programa espacial do país.
Apesar disso, conclui a autora, a autonomia técnico política tão desejada [no PEB] ainda não foi alcança da. A seu ver, não existe suporte desejável à formulação de um projeto de desenvolvimento nacional que garanta soberania relativa no mundo globalizado conjugada com sustentabilidade do desenvolvimento econômico.
Trata-se, portanto, de afirmar uma soberania relativa, não absoluta, priorizando o interesse nacional em vez do interesse das corporações globais. Toda cooperação internacional é bem-vinda desde que respeite esse critério fundamental, de que são exemplos os acordos espaciais Brasil e China, bem pouco comentados pela autora. Ela, aliás, não faz referência à posição da China como nova potência espacial, nem à nova ‘Guerra Fria’ entre EUA e China, à que assistimos hoje, preocupados com a intensa corrida armamentista espacial por ela acionada.
Nada disso, porém, tira o peso deste livro inovador.
José Monserrat Filho*
Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (vice-presidente), Instituto Internacional de Direito Espacial (diretor honorário)
*Autor do livro O direito na Era espacial – Podemos ser mais juntos no espaço do que na Terra (Vieira & Lent, 2007)