Departamento de História
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Em 3 de maio de 1916, um grupo de cientistas reuniu-se no salão nobre da Escola Politécnica do Rio de Janeiro para fundar a sociedade. Provinham eles de três instituições tradicionais de ensino e pesquisa do Rio de Janeiro: o Museu Nacional (fundado em 1818), onde trabalhavam arqueólogos, botânicos e etnógrafos, o Observatório Nacional (criado em 1845), e a própria Politécnica, uma escola de engenharia estabelecida em 1874. Vinham, ainda, do recente e já prestigioso Instituto de Manguinhos (criado em 1900), depois Fundação Oswaldo Cruz, onde trabalhavam biólogos na linha pasteuriana. A eles se juntaram alguns geólogos formados na Escola de Minas de Ouro Preto (fundada em 1876). Era a terceira academia de ciências criada nas Américas, depois da norte-americana, de 1863, e da argentina, de 1874. Houve outra em Cuba, de 1861, formada quando o país ainda era colônia.

Sob a presidência de Henrique Morize (1860-1930), diretor do Observatório Nacional e professor de física da Politécnica, reuniram-se matemáticos, biólogos, químicos, físicos, geólogos e astrônomos, distribuídos em três seções: matemática, ciências físico-químicas e ciências biológicas.

Apesar de existir então, na Politécnica, polêmica entre positivistas e não positivistas, não parece ter havido divergência relevante no que diz respeito à filosofia que marcava a nova instituição. Ela foi exposta em discurso de posse de Morize em 1917. Destaco aqui alguns trechos: “A Sociedade Brasileira de Ciências é uma associação de trabalhadores intelectuais resolvidos a consagrar todos os seus esforços ao progresso da ciência e ao engrandecimento do nosso querido Brasil”. Disse ele ainda que o fim da ABC era promover a “ciência pura, da qual resultam as aplicações tão espontaneamente como à flor sucede o fruto”. E mais: “O fim principal da Sociedade Brasileira de Ciências consiste em espalhar essa noção da importância da ciência como fator de prosperidade nacional”.


Henrique Morize,
primeiro presidente da Academia Brasileira de Ciências

Sobressaem dois pontos do discurso. O primeiro tem a ver com a concepção de ciência. Morize usou a expressão “ciência pura”, mas fica claro que não propunha torre de marfim para os cientistas, nem talvez o pudesse fazer diante do grande êxito de Oswaldo Cruz (1872-1917), membro fundador, na aplicação da ciência em defesa da saúde pública. Suas palavras indicam antes uma defesa da ciência como condição necessária para se chegar ao que hoje se chama tecnologia e inovação. O segundo ponto tem a ver com o que o fisiologista Louis Couty (1854- 1884), antigo professor da Politécnica, escrevera em artigo de 1879, ao lançar a primeira revista de divulgação científica do Brasil. Para Couty, a tarefa mais importante no Brasil era promover entre a população um “estado de espírito”, uma “corrente científica”, que valorizasse a busca do conhecimento pela investigação. A ausência desse espírito, argumentara ele, era um dos principais obstáculos ao progresso da ciência entre nós.

Em seus primeiros anos, a Sociedade seguiu essas diretrizes, sobretudo, na parte referente à divulgação científica. Promoveu conferências públicas, convidando alguns dos melhores cientistas da época, como Albert Einstein (1879-1955) e Marie Curie (1867-1934), a primeira mulher eleita sócia correspondente. Já em 1917, criou a Revista da Sociedade Brasileira de Ciências; em 1923, foi a vez da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, futura Rádio MEC, fundada pelos acadêmicos Edgar Roquette-Pinto (1884-1954) e Henrique Morize; em 1924, vários acadêmicos participaram do lançamento da Associação Brasileira de Educação, na convicção de que o ensino era também fator crucial de promoção da ciência e do espírito científico.

Pode-se dizer que os dois princípios originários, ciência básica como condição para o avanço tecnológico e criação, pela divulgação e pela educação, de um espírito científico no país, marcaram, com as inevitáveis adaptações, a trajetória da ABC em seus 100 anos de existência. Na década de 1930, a contribuição principal da Academia, por meio da atuação de seus sócios, foi a criação das faculdades de filosofia, previstas na reforma do ensino de 1931. Na visão do geólogo Eusébio de Oliveira (1883-1939), presidente da Casa em 1931, essas faculdades significavam a entrada da pesquisa científica nas universidades. Elas foram criadas nas universidades de São Paulo (USP), do Distrito Federal (UDF) e do Brasil (hoje, UFRJ).

Nas décadas de 1940 e 1950, a maior contribuição da Academia foi a criação, em 1951, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), uma proposta de Álvaro Alberto da Mota e Silva (1889-1976), membro e presidente da ABC. Nas palavras desse acadêmico, o documento que criou o CNPq era a lei áurea da pesquisa científica no Brasil. Membros da Casa estiveram também presentes na criação dos institutos de Matemática Pura e Aplicada (Impa) e Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF).

As últimas duas décadas da história da ABC foram marcadas por sua expansão, diversificação e nacionalização; pela inserção internacional em pé de igualdade com outras academias; e pela consolidação de seu papel de consultora dos governos. O pequeno grupo de pioneiros transformou-se em pujante sociedade de 934 membros, entre titulares, correspondentes, afiliados, associados e colaboradores, subdividida em 10 seções.

A expansão não implicou alteração das diretrizes estabelecidas pelos fundadores: fazer boa ciência para promover boa inovação tecnológica; fomentar o espírito científico; dialogar com a ciência internacional. Muito resta por fazer. A batalha que se tem revelado mais árdua é a da busca por uma base de sustentação financeira que não se limite às verbas governamentais, escassas e voláteis. O grande trunfo da ABC continua sendo, no entanto, a dedicação de seus membros aos objetivos da instituição.

 

José Murilo de Carvalho
Academia Brasileira de Ciências
Universidade Federal do Rio de Janeiro

 

(Este texto é uma versão resumida da apresentação feita pelo autor e por Ildeu de C. Moreira na abertura da celebração do centenário da ABC. A pesquisa histórica foi feita por M. Regina Hippolito von der Weid e Vicente S. Moreira dos Santos.)

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