Teorias conspiratórias que associavam seitas demoníacas envolvidas em sacrifícios humanos a jogos de RPG na década de 1980 são usadas até hoje para explicar crimes brutais ou combater manifestações culturais que fogem aos padrões tradicionais
Teorias conspiratórias que associavam seitas demoníacas envolvidas em sacrifícios humanos a jogos de RPG na década de 1980 são usadas até hoje para explicar crimes brutais ou combater manifestações culturais que fogem aos padrões tradicionais
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Cena da série Stranger Things retrata um grande fenômeno dos anos 1980: os RPGs, ou ‘jogos de interpretação de papéis’
Imagine um grupo de adolescentes reunidos no porão de uma casa nos anos 1980, cercados por fichas rabiscadas e mapas desenhados à mão, jogando dados de tamanhos variados e se divertindo. Você pode achar que eles estão só jogando um jogo qualquer. Mas, na realidade, estão fazendo muito mais do que isso: estão criando mundos inteiros, vivendo aventuras épicas na pele de humanos bárbaros, elfos arqueiros, anões guerreiros e o que mais a criatividade permitir.
Essa cena foi eternizada na série Stranger things, que retrata perfeitamente o fenômeno que tomou conta da juventude norte-americana na década de 1980: a explosão dos ‘Role Playing Games’ (RPGs),
Role Playing Game significa, em tradução literal, ‘jogo de interpretação de papéis’, e esse caráter interpretativo era o que tornava o RPG tão único e revolucionário. Durante as sessões, os jogadores não ‘moviam peças em um tabuleiro’ ou executavam ações, mas se tornavam seus personagens, interpretando-os, falando como eles e tomando decisões baseadas em como eles reagiriam. Era uma espécie de jogo teatral de improviso e construção colaborativa de uma narrativa fantástica.
O ‘Dungeons & Dragons’, criado em 1974, é considerado o primeiro sistema de regras de RPG. Com o estrondoso sucesso do jogo na década de 1980, vários outros sistemas foram surgindo.
Para muitos jovens, especialmente aqueles que se sentiam deslocados na escola ou na sociedade, o RPG representava um refúgio seguro onde suas mentes criativas eram não apenas aceitas, mas celebradas. No entanto, nem todos viam os RPGs dessa mesma forma.
Imagine que você mora em uma cidade pequena onde todos se conhecem e, de repente, começam a surgir relatos de crianças desaparecidas ou que foram sequestradas, mas conseguiram escapar. Então, começam a surgir histórias perturbadoras, envolvendo rituais estranhos praticados por homens encapuzados, sacrifícios de animais e crianças em porões secretos de escolas e até práticas de bruxaria. A imprensa explode com manchetes sobre a existência de uma seita satânica atuando na cidade. A polícia aponta como suspeito um líder de uma pequena religião esotérica e consegue arrancar dele uma confissão. O pânico se torna generalizado e uma grande perseguição aos membros dessa seita se inicia.
Essa história parece roteiro de um filme de terror, mas ilustra muito bem um fenômeno social que explodiu nos Estados Unidos também na década de 1980 e se tornou grande opositor dos jogos de interpretação. Ele não se baseava em nenhuma evidência concreta, era simplesmente uma combinação tóxica de medos de natureza religiosa, ansiedades sociais, sensacionalismo midiático e teorias conspiratórias.
Milhares de pessoas foram falsamente acusadas, famílias foram destruídas, e uma atmosfera de paranoia tomou conta de escolas, creches e grupos religiosos, que passaram a ver sinais de atividade satânica em praticamente qualquer manifestação cultural que fugisse aos padrões tradicionais.
Esse fenômeno recebeu o nome de pânico satânico e consiste em uma crença generalizada de que praticantes de cultos satânicos secretos estariam infiltrados em comunidades, realizando rituais de abuso infantil, sacrifícios humanos e conspiração para corromper a juventude.
Os anos 1980 criaram o cenário perfeito para esse fenômeno. Diante de profundas mudanças na estrutura familiar americana, com mais mães trabalhando fora de casa e divórcios em alta, houve a ascensão da direita religiosa e conservadora e uma sensação generalizada de que os valores tradicionais estavam sob ataque. Simultaneamente, o crescimento dos meios de comunicação sensacionalistas e uma série de livros pseudocientíficos alimentaram essa paranoia coletiva.
Exatamente quando milhões de jovens descobriam nos RPGs uma forma saudável de criatividade e socialização, grupos religiosos e ativistas conservadores começaram a interpretar essas atividades como portais para a corrupção espiritual.
A campanha contra o RPG ganhou força por meio de livros e documentários alarmistas que pintavam sessões de jogo como rituais de iniciação satânica. Pais aterrorizados começaram a queimar livros de RPG, escolas proibiram os jovens de jogar, e alguns jovens foram submetidos a ‘exorcismos’ para libertá-los da suposta influência demoníaca.
Casos trágicos de desaparecimento e morte de crianças foram imediatamente atribuídos ao jogo. Dois casos que ganharam grande repercussão foram as mortes dos jovens James Dallas Egbert III e Irving Lee Pulling. Ambos tinham 16 anos, eram jogadores de RPG e tiraram a própria vida. A narrativa de que o jogo era o causador dessas mortes foi amplificada pela mídia, aumentando o pânico da população.
A mãe de Irving, Patricia Pulling, tornou-se uma das principais vozes contra o RPG à época. Em seu livro, a ativista define o RPG como um jogo de fantasia que “utiliza demonologia, bruxaria, vodu, assassinato, estupro, blasfêmia, suicídio, assassinato, insanidade, perversão sexual, homossexualidade, prostituição, rituais satânicos, jogos de azar, barbárie, canibalismo, sadismo, profanação, invocação de demônios, necromancia, adivinhação e outros ensinamentos”.
Esse movimento, amplificado pela imprensa e pelo cinema, causou impactos profundos e duradouros até mesmo no sistema jurídico norte-americano. Testemunhos baseados em técnicas de recuperação de memória (sem qualquer respaldo científico sólido) começaram a ser aceitos em tribunais. Juízes permitiam que crianças muito pequenas testemunhassem em casos complexos após serem submetidas a interrogatórios repetitivos e sugestivos que plantavam ideias em suas mentes. Advogados de defesa enfrentavam um ambiente hostil, onde questionar as alegações de abuso ritual era visto como defender o próprio mal.

No RPG ‘Dungeons & Dragons’, os jogadores criam personagens que participam de aventuras imaginárias em que enfrentam monstros e buscam tesouros
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Na tranquila cidade de Guaratuba, no litoral paranaense, o ano de 1991 começou com uma atmosfera de terror que mudaria para sempre a vida de seus habitantes. Tudo começou quando crianças começaram a desaparecer misteriosamente. Uma delas foi Evandro Ramos Caetano, de 6 anos, que, após passar em casa para pegar um brinquedo, saiu e nunca mais foi visto.
A busca por Evandro mobilizou a cidade inteira, mas a esperança logo deu lugar ao horror. Poucos dias após o sumiço, um corpo infantil foi encontrado em um matagal próximo à residência do garoto. O estado que o corpo se encontrava era assustador: sem roupas e sem alguns membros e órgãos, o que levou à conclusão de que se tratava de um homicídio brutal.
Sob intensa investigação e pressão policial, suspeitos foram apontados e até confessaram participação em supostos rituais satânicos com crianças e no assassinato de Evandro. Sete pessoas foram presas, entre elas, o pai de santo Osvaldo Marcineiro, a esposa do prefeito de Guaratuba, Celina Abagge, e sua filha Beatriz, que era frequentadora do terreiro de Osvaldo.
A narrativa construída pela polícia e amplificada pela mídia é de que Celina teria encomendado um ritual de sacrifício para fins políticos e financeiros e que Evandro teria sido vítima desse macabro plano.
Trinta anos mais tarde, o designer e jornalista Ivan Mizanzuk debruçou-se sobre o caso, analisando minuciosamente todos os documentos do caso, além de gravações de depoimentos e dos vários julgamentos. Ele então descobriu fitas cassetes inéditas que revelaram, sem sombra de dúvidas, que as confissões gravadas haviam sido obtidas por meio de tortura. Com essa descoberta chocante e incontestável, quatro dos acusados tiveram suas condenações anuladas e ficou muito evidente que a tal seita satânica nunca havia existido.
Embora o auge do pânico satânico tenha ocorrido nas décadas de 1980 e 1990, esse fenômeno não desapareceu completamente. O exemplo recente mais notório é o movimento QAnon, que emergiu em 2017 e rapidamente se espalhou pelos Estados Unidos e outros países. Essa teoria conspiratória acredita na existência de uma elite secreta de políticos, celebridades e figuras influentes que estaria envolvida em rituais satânicos, tráfico de crianças e práticas de abuso infantil em escala global. Como no pânico satânico dos anos 1980, essas alegações carecem de evidências concretas, mas ganham força por meio da repetição, principalmente nas redes sociais.
No Brasil, um exemplo mais atual é o caso que envolveu Sílvio Fernandes Rodrigues, autointitulado mestre de alta magia e proprietário do ‘Templo de Lúcifer’, em Gravataí, no Rio Grande do Sul. Em 2017, ele foi acusado de ser o mentor de um brutal assassinato e esquartejamento de duas crianças, em um suposto ritual satânico. O homem chegou a ter sua prisão decretada, devido a alguns relatos de testemunhas e algumas poucas evidências.
Acontece que, em uma coletiva de imprensa, o delegado Moacir Fermino (responsável por acusar e determinar a prisão de Sílvio) afirmou, em tom de pregação, que a solução do caso foi fruto de uma revelação divina e da orientação de profetas de Deus.
A ausência de provas materiais concretas e o caráter duvidoso dos testemunhos fizeram com que o caso continuasse a ser investigado, até que uma grande farsa foi descoberta. As roupas e os objetos apreendidos não haviam sido periciados, as ossadas e o sangue no local do suposto ritual eram de animais, e as testemunhas confessaram que haviam sido convencidas a mentir em troca de benefícios. Nesse caso, a justiça foi mais rápida.
Apesar dos inúmeros transtornos e riscos causados à vida de Sílvio, ele e os outros acusados foram rapidamente inocentados, enquanto o delegado Fermino foi condenado por falsidade ideológica e corrupção ativa de testemunha.
Em alguns contextos sociais, políticos e econômicos, a necessidade de encontrar bodes expiatórios para explicar problemas complexos pode se aliar a preconceitos já existentes e à amplificação por uma mídia sedenta por atenção, resultando em narrativas carentes (ou mesmo desprovidas) de evidências, mas que apelam para nosso emocional.
Monstros e demônios são muito bem-vindos nas campanhas de RPG. Mas, quando esses elementos extrapolam os limites da ficção e se misturam à realidade, as consequências podem ser graves. Quando pessoas e suas atitudes são demonizadas, transformadas em monstros e desumanizadas – e, principalmente, sem provas concretas –, somos capazes de aceitar o tratamento mais perverso possível, até mesmo a privação de seu direito de defesa e do devido processo legal.
O legado jurídico do pânico satânico é um triste lembrete de como sistemas de justiça podem ser corrompidos pelo medo e preconceito racial e religioso. Décadas depois, muitas das vítimas desses erros judiciais ainda lutam para limpar seus nomes, enquanto as crianças que sofreram abusos reais foram esquecidas em meio à histeria associada a ameaças imaginárias.
Por isso, é preciso estar sempre alerta à maneira como a imprensa, o cinema e a opinião pública tratam suspeitos de crimes. Talvez o alvo de um pânico satânico seja o RPG ou jogo eletrônico que você joga, talvez seja a música que você escuta, mas também pode ser a religião que você professa, as crenças que você possui, aquilo que mais te faz bem e te dá propósito, ou até a etnia a que você pertence.
Ao ver uma horda de acusadores condenando uma pessoa no tribunal da internet, ou a imprensa fazendo um grande espetáculo em torno de algum caso, pense bem antes de se juntar a essas vozes. Tente ser racional e observar as evidências e os fatos antes de formar sua opinião.
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