Nos últimos séculos, o desenvolvimento do conhecimento científico baseou-se em larga escala no acesso aberto a dados, resultados e procedimentos, pequenos tijolos adicionados por mentes determinadas ao grande edifício chamado ciência. O moderno mundo digital contemporâneo, no entanto, presencia um grande terremoto pelo qual passam essas práticas institucionalizadas.
De um lado, elas são tensionadas pelo avanço do interesse privado e comercial sobre a pesquisa, em todos os níveis, por apropriações e leis mais restritivas de propriedade intelectual e pelo controle de um mercado editorial concentrado. De outro, aspirações mais libertárias dão força a um movimento em prol da renovação da ciência aberta por meio do uso do código aberto (que defende aspectos relacionados à liberdade de adaptação, uso e distribuição de ferramentas digitais) para a produção colaborativa do conhecimento, de alternativas flexíveis de licenciamento e da maior valorização da participação direta da sociedade.
Durante o encontro internacional ‘Ciência aberta, questões abertas’, realizado no Rio de Janeiro, a Ciência Hoje conversou com Paul David, professor emérito de economia das universidades de Stanford (Estados Unidos) e Oxford (Inglaterra) e convidado de honra do evento. Nesta entrevista exclusiva, ele fez um mergulho na história da construção da ciência aberta como a conhecemos hoje e destacou que a relação entre essa prática e a atividade privada de pesquisa e desenvolvimento está em desequilíbrio.
David alertou ainda para o perigo de tomar como paradigmas de uma nova ciência aberta as características únicas do processo de produção das ferramentas digitais de código aberto, que em geral não reflete a complexidade do processo científico.
Ciência Hoje: O que o senhor entende como ciência aberta?
David: É um conceito que pode ser confuso, em especial para os mais jovens, que não experimentaram o mundo antes do código aberto. A ciência aberta tem cinco características fundamentais: cooperação entre os cientistas, autonomia em relação a agendas específicas, desinteresse de ganhos pessoais com a pesquisa, abertura de resultados e métodos e expectativa de verificação pela replicação. As recompensas se dão pela reputação, construída com base na avaliação dos pares. A abertura é fundamental para que a ciência funcione ao longo do tempo, pois é preciso que o conhecimento possa ser examinado, validado, utilizado e comunicado. Por isso, a ciência aberta valoriza a divulgação rápida, como garantia do reconhecimento do pioneirismo de uma descoberta e pelo fato de que, quanto mais cedo o conhecimento se torna disponível, mais cedo os erros, se existirem, serão revelados.
A ciência aberta, então, não é algo novo?
Não, longe disso. É uma prática que nasceu nos séculos 16 e 17 e que passou por um processo de institucionalização crescente ao longo dos séculos 19 e 20. Ela rompeu com a tradição medieval de não revelar os segredos da natureza.
Os primeiros cientistas eram bancados por patronos, mais interessados em ter alguém de renome em sua corte do que no conhecimento que produziam. Por isso era importante acumular reputação. Uma opção para isso eram desafios públicos, comuns na matemática. Os cientistas também começaram a trocar correspondência entre si para debater temas científicos, apresentar descobertas e, dessa forma, ganhar o reconhecimento de seus pares, o que aumentava a chance de valorização também por potenciais patronos.
O sistema não se resumia a um jogo de afagos entre seus participantes, sob o risco de cair em rápido descrédito. Muitas vezes, o cientista trabalhava na resolução de problemas práticos, como criar um sistema de encanamento para um castelo, projetos de irrigação ou alguma invenção militar e, em troca, tinha liberdade e proteção para seus próprios trabalhos exploratórios. Galileu Galilei [1564-1642], por exemplo, aperfeiçoou o telescópio e escreveu a famosa obra O mensageiro das estrelas com suas descobertas. Mas qual era a mensagem? A grandeza da casa dos Médici – sob cuja proteção passou a viver, mas nem isso o manteve longe de problemas.
Como isso determinou a forma como a ciência aberta se estruturou? É aí que surge a ideia do cientista sobre o ombro de gigantes, como na famosa frase de Isaac Newton (1642-1727)?
Nessa época começou a se consolidar o processo científico como cumulativo e coletivo, no qual as contribuições de cada um serviam de plataforma para quem viria depois. Como produto social, não há ninguém organizando, dizendo para onde o processo deve ir. É claro que há pessoas que dão contribuições mais fundamentais, mas, se a ciência evoluísse apenas com ‘gênios’, o processo seria muito lento e irregular. Sobre a frase de Newton, o engraçado é que o sentido original dela era torpe. Quando disse isso, ele se referia diretamente a Robert Hooke (1635-1703), com quem tinha uma notória desavença. Hooke era muito baixo, já Newton era alto. Então Newton diz que, se pode enxergar a tão grande distância, foi subindo nos ombros de gigantes – ou seja, não nos de pigmeus. Parece algo humilde, mas na verdade foi o contrário. Tudo é contexto.
Esse modelo não era institucionalizado. Como chegamos ao sistema de hoje, no qual as universidades assumem o papel de centros propagadores de ciência?
O primeiro grande passo rumo à institucionalização veio com a criação das reais academias no Reino Unido e na França. Elas inauguraram o patronato de Estado. Uma das ciências que mais recebiam atenção nesse momento era a astronomia, essencial para a produção de mapas mais precisos. As universidades só se tornaram centrais na produção do conhecimento na metade do século 19, em especial na Alemanha, e depois nos Estados Unidos, onde não havia um histórico de institutos de pesquisa reais ou estatais. A vantagem da universidade é que era ótima para formar novos pesquisadores, enquanto os institutos só concentravam quem de algum modo já detinha o conhecimento. E as universidades mantiveram as formas de recompensa e valorização dos cientistas e de reconhecimento do pioneirismo da descoberta.
Nesse cenário de emergência da ciência aberta, havia espaço para a geração de conhecimento fechado?
Sim. Havia, por exemplo, a área militar, e mesmo alguns cientistas e matemáticos que entravam nesses desafios guardavam seus segredos. E havia áreas inteiras que eram secretas, em especial a alquimia. O próprio Newton dedicou à alquimia muito de seu tempo. E, nessa época, foram lançadas as bases para as patentes, que surgiram como uma forma de expandir o conhecimento e não de aprisioná-lo.