Para animais que vivem em grupos, a sobrevivência de sua população ou mesmo seu sucesso evolutivo depende em grande parte da cooperação entre os indivíduos, tanto em relação à obtenção dos meios de subsistência quanto à reprodução, ao cuidado com a prole e à organização da defesa contra ameaças predatórias. Essa distribuição de responsabilidades implica especializações que, em seu todo, produzem acentuada estratificação social.

A estratificação social pode ser imposta, como em comunidades de vários insetos, entre eles, formigas, cupins, abelhas e vespas. Nesses casos, o controle social é reconhecidamente químico e exercido por meio de vários compostos que medeiam e mantêm a separação entre castas. Isso significa que essa divisão de classes é, em geral, definitiva, ou seja, membros de uma casta não podem se converter para outra.

Em outras comunidades, como a dos primatas, embora a estratificação social claramente exista, ainda não é possível tecer conclusões mecanicistas óbvias sobre o seu controle. No entanto, a despeito das lacunas no conhecimento, pode-se supor sem muito risco de erro que a evolução, como sempre, age suprema sobre todos os fenômenos de natureza biológica. Como afirmava o geneticista ucraniano­americano Theodosius Dobzhansky (1900­1975), em biologia nada faz sentido a não ser sob a luz da evolução. E até os costumes religiosos parecem estar sujeitos a esse preceito.

Em artigo publicado em abril na revista Nature (v. 532, n. 7598, doi:10.1038), Joseph Watts e colaboradores realizaram um levantamento histórico de 93 culturas de austronésios (povos do Sudeste asiático que colonizaram grande parte dos oceanos Índico e Pacífico na pré­história) e elaboraram a interessante hipótese de que os sacrifícios humanos ritualísticos tiveram importante papel na manutenção da estratificação social desses povos. Nessas sociedades, as vítimas sacrificadas tinham status social baixo, sendo frequentemente escravos, e os sacerdotes pertenciam à classe alta dominante.

A prática do sacrifício humano e a estratificação social sofreram coevolução, ou seja, evoluíram em decorrência das relações existentes entre ambos

Com base nos dados reunidos, os autores dividiram as sociedades investigadas em três grupos distintos: igualitárias, com estratificação social moderada e com alta estratificação social. As evidências mostraram que o sacrifício humano ocorria em 25% das sociedades igualitárias, 37% das sociedades moderadamente estratificadas e 67% daquelas muito estratificadas. Tais dados levaram os pesquisadores à conclusão de que a prática do sacrifício humano e a estratificação social sofreram coevolução, ou seja, evoluíram em decorrência das relações existentes entre ambos. Em outras palavras, a probabilidade de evolução de uma característica depende da evolução da outra.

No caso em questão, o sacrifício humano teria sido gradualmente adotado em razão dos benefícios trazidos pela estratificação social como mantenedora da estabilidade da comunidade. À primeira vista, os rituais tinham como objetivo principal agradar ou apaziguar entidades sobrenaturais, mas o que Watts e colaboradores enfatizam em seu trabalho é a ideia de que os sacrifícios humanos constituíam um poderoso meio de exercer autoridade absoluta e garantir a sobrevivência do grupo. Segundo os pesquisadores, o sacrifício humano era uma forma bastante eficiente de manter a ordem social, pois havia pouca chance de retaliação, já que o sacrificado, além de ter pouca influência na sociedade, era eliminado. Além disso, por ter acesso privilegiado às entidades sobrenaturais, os sacerdotes ou outras autoridades asseguravam sua posição de liderança e, desse modo, impunham a cooperação na comunidade.

De modo provocativo, Watts e colaboradores afirmam ainda no artigo que seus resultados sugerem que os sacrifícios humanos ajudaram a consolidar a transição dos pequenos grupos igualitários de nossos ancestrais para as grandes sociedades estratificadas modernas. Claro, essa transição, como quer a evolução, não significa progresso. Na verdade, as sociedades atuais podem estar abreviando a extinção da espécie humana em razão da superpopulação e da poluição. De qualquer forma, é relevante especular se a pena capital, também altamente ritualizada e ainda praticada em alguns países, seria uma relíquia adaptada, na qual mudam somente o altar e o algoz.

 

Franklin Rumjanek
Instituto de Bioquímica Médica,
Universidade Federal do Rio de Janeiro
franklin@bioqmed.ufrj.br

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