A lógica em ‘José’, de Carlos Drummond de Andrade

Secretaria de Educação de Maricá (RJ)

Há artistas que, intencionalmente, incluem matemática em suas obras. Mas há aqueles que nem sequer percebem que seus trabalhos têm elementos implícitos dessa disciplina. O que acontece quando um leitor/observador cuja mente foi treinada para identificar fórmulas, números, estruturas geométricas e conexões aprecia essa produção? Neste artigo, um professor de matemática, amante da poesia, analisa um dos poemas mais importantes da literatura brasileira e identifica em seus versos uma estrutura lógica subliminar e complexa.

CRÉDITO: ADOBE STOCK

Quantos de nós não escrevemos poemas e os trancamos em gavetas, guardiãs de memórias e confissões? Esses escritos podem ter valor estético, podem ser obras de arte? São textos de leitura única, restritos a quem os escreveu e, por isso, limitados, incompletos? 

Todo texto termina no(a) leitor(a). Pode-se, inclusive, defender que, na ausência de qualquer leitor(a), não há texto. 

Se a obra termina no(a) leitor(a), ela pode ser recriada em cada leitura. Ela se completa com a carga de conhecimentos, de experiências de vida que cada um carrega ao se pôr diante da obra e se propor a lê-la. 

Portanto, duas pessoas não leem o mesmo texto, porque não há duas pessoas com os mesmos conhecimentos e as mesmas experiências de vida. Diante dessa percepção, toda obra de arte é aberta, porque estabelece sua completude diante de cada leitor(a)/observador(a).

O/A autor(a) do texto dá o campo de leitura, estabelece os caminhos que podem ser trilhados e fornece ao/à leitor(a) interpretações que, com frequência, o/a autor(a) não desconfiava que existissem. As trilhas percorridas nesse campo são escolhidas – ou desenhadas – por quem lê. Sem perder a autoria da obra, o/a autor(a) perde a obra, porque, a cada leitura, ela é ‘reescrita’. 

Expor ao mundo a obra é ato de generosidade.

Todo texto termina no(a) leitor(a). Pode-se, inclusive, defender que, na ausência de qualquer leitor(a), não há texto.

Sou um professor de matemáticas e adoro poesia. As matemáticas fazem parte de minha experiência de vida. Portanto, não consigo ler uma obra sem que as matemáticas interfiram de alguma forma na leitura.

Foi isso que aconteceu quando me propus a ler o poema ‘José’, de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), em um curso de lógica. Fiquei analisando as escolhas de conectivos que esse poeta, contista e cronista brasileiro fez ao construir esse fantástico (e cruel) poema.

Três são os conectivos lógicos observados em ‘José’: i) a conjunção, representada matematicamente pelo símbolo ‘∧’, que pode ser traduzido para o português como ‘e’; ii) a disjunção, representada por ‘’, traduzida por ‘ou’; iii) o condicional ‘→’, traduzido por ‘se’…, ‘então’…’.

Esses conectivos servem para unir sentenças declarativas, expressões que podem ser classificadas como falsas ou verdadeiras. Exemplo de sentença declarativa: “Estamos no inverno”. Ela pode ser classificada como falsa (F) ou verdadeira (V). Outra sentença declarativa: “O céu está sem nuvens”. 

Representemos “Estamos no inverno” por ‘p’, e a sentença “O céu está sem nuvens” por ‘q’. Podemos unir essas duas sentenças por meio dos conectivos:

(1) p q 

“Estamos no inverno ‘e’ o céu está sem nuvens”.

Note que p q só será verdadeira se tanto p quanto q forem verdadeiras. Se for falso que “Estamos no inverno”, p q será falsa. Se for falso que “O céu está sem nuvens”, p q também será falsa.

(2) p q

“Estamos no inverno ‘ou’ o céu está sem nuvens”.

Em língua portuguesa, o ‘ou’ é verdadeiro se as duas sentenças que ele conecte forem verdadeiras ou se só uma o for. Mas o contexto é importante. Vejamos.

Se, em um almoço, você diz “Vou comer carne ou vou comer peixe”, ninguém espera que você coma tanto carne quanto peixe nessa refeição. Mas se, ao iniciar suas férias, você declarar “Vou ao teatro ou ao cinema”, ninguém lhe chamará de mentiroso se você for tanto a um quanto ao outro. 

O segundo ‘ou’ é um ‘ou’ includente, porque inclui a possibilidade de as duas sentenças serem verdadeiras. O primeiro é um ‘ou’ excludente: só uma das sentenças pode ser verdadeira.

Foi isso que aconteceu quando me propus a ler o poema ‘José’, de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), em um curso de lógica

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