Um novo olhar no combate à desinformação científica – e por que isso interessa a todos nós

Jornalista, especial para o ICH

Relatório da Academia Brasileira de Ciências (ABC) dimensiona gravidade de fenômeno acentuado na pandemia e defende liderança de pesquisadores, em conjunto com educação científica e midiática, como armas cruciais de prevenção e combate.

CRÉDITO: FOTO CEDIDA PELA ENTREVISTADA

A desinformação científica foi escancarada e intensificada na pandemia, com movimentos de contestação e descredibilização da ciência, como o aumento da hesitação vacinal. O fenômeno não só permanece como estendeu-se a diversas áreas do conhecimento, amparado em um ecossistema lucrativo que inclui a monetização de conteúdo enganoso e sem evidências. O alerta vem do documento “Desafios e estratégias na luta contra a desinformação científica”, lançado recentemente pela Academia Brasileira de Ciências (ABC). O documento faz um diagnóstico do problema e defende a regulação dessas plataformas, além da adoção de medidas efetivas de prevenção a partir da própria comunidade acadêmica e da sociedade.
“As principais iniciativas de combate à desinformação têm sido de correção, e seu alcance é menor perto da desinformação que se propaga a partir de sensacionalismo ou polêmica”, diz a coordenadora-executiva do relatório, Thaiane Oliveira, professora de pós-graduação em comunicação da Universidade Federal Fluminense (UFF) e membro afiliada da Academia Brasileira de Ciências (ABC).
Em entrevista à Ciência Hoje, ela defende maior engajamento da comunidade científica no combate à desinformação e nas discussões públicas sobre a regulação das plataformas que lucram com esse sistema. Argumenta ainda que a prevenção passa, necessariamente, pelo incentivo à educação científica e midiática, com maior participação da sociedade. “Enfrentar a desinformação cientifica não pode ser enxugar gelo pelo resto da vida, senão vamos sempre perder essa batalha”, afirma.

CIÊNCIA HOJE: Como a desinformação científica se tornou um desafio da atualidade e se estabeleceu na sociedade para além da pandemia?

THAIANE OLIVEIRA: A desinformação científica já existia, mas ganhou visibilidade e intensidade com a pandemia e se espalhou principalmente no ambiente digital. Essa preocupação permanece até hoje, em diferentes áreas, e é especialmente nítida no risco à saúde da população. Essa é uma área crítica e sensível à desinformação cientifica, com efeitos diretos observados nos consultórios e unidades de saúde. Existem outras consequências danosas, não tão imediatas, como pacientes que tomam medicamentos ou seguem receitas que prometem cura, quando não fazem nada disso. O descrédito na ciência e nas instituições científicas são fruto dessa desinformação. E, sem confiança na ciência, perdemos as balizas principais de quais podem ser os caminhos recomendados a partir das evidências e observações de cientistas. Ao mesmo tempo, as iniciativas de combate à desinformação têm sido mais de correção, que chamamos de debunking, depois do efeito da desinformação já propagada. É insuficiente. Estudos realizados no Brasil e em outros países mostram que o alcance de grande parte dessas correções é pequeno perto da desinformação que geralmente se consolida a partir de sensacionalismo ou polêmica.

CH: Que exemplo melhor dimensiona o tamanho desse desafio?

TO: O exemplo mais evidente de gravidade é o crescimento da hesitação vacinal, considerando que o Brasil sempre foi tido como modelo de sucesso em campanhas de vacinação e adesão, muito pela atuação e comunicação do Sistema Único de Saúde (SUS), que se estabeleceu como instituição de confiança e democrática que leva vacina aos locais mais longínquos e atendimento amplo de saúde pública à população. Mas, depois de todo o movimento de contestação durante a pandemia, vindo de lideranças políticas, influenciadores digitais e outros grupos, vivemos o aumento da dificuldade que o próprio governo tem tido em conseguir que a população se vacine para prevenir doenças que até então estavam praticamente erradicadas no país. Em dois anos de pandemia, foram desestruturadas décadas de confiança institucional. Não é um processo fácil, e talvez precisaremos de mais alguns anos para recuperar.

Sem confiança na ciência perdemos as balizas principais de quais podem ser os caminhos recomendados a partir das evidências e observações de cientistas

CH: Veio desse contexto a iniciativa de fazer o relatório “Desafios e estratégias na luta contra a desinformação científica”? Como esse trabalho foi realizado?

TO: Levei a proposta à Academia justamente no período pós-pandemia, e a ideia foi muito bem acolhida porque se tratava de uma preocupação comum entre pesquisadores e cientistas. Criamos um grupo de trabalho de 20 especialistas, tanto da Academia Brasileira de Ciências quanto de outras instituições, que trabalhavam com essa temática ou temas correlatos à desinformação, como divulgação científica e comunicação. Fizemos um diagnóstico dos principais temas que deveriam ser abordados no relatório e depois nos dividimos em quatro subgrupos, de acordo com o assunto de domínio de cada membro. A partir das discussões, levantamos a literatura e os temas para debate, além de várias recomendações para lidar com o fenômeno. O material foi consolidado e transformado em um relatório único.

CH: Qual foi o principal diagnóstico que emergiu desse documento e como ele reforça a magnitude do fenômeno de desinformação científica?

TO: É difícil pensar num diagnóstico único, porque vários temas atravessam o fenômeno da desinformação científica. Mas um ponto muito importante do relatório é o reconhecimento de que existe um ecossistema lucrativo em torno da desinformação científica, tanto no que diz respeito aos produtos e serviços que são vendidos na internet e nas redes sociais ao redor de receitas milagrosas e soluções rápidas para problemas complexos quanto no que diz respeito à própria lógica mercadológica e lucrativa das plataformas, que acabam dando mais visibilidade à desinformação científica em si. Acontece assim muito por conta da lógica de lucro gerado pela polêmica, pelo sensacionalismo e pela controvérsia, que criam uma economia da atenção. Existe uma instrumentalização política da ciência e uma instrumentalização econômica da desinformação científica dentro desse fenômeno. Isso não chegou a ser uma surpresa, porque já vínhamos debatendo esse fenômeno. Mas nos surpreendeu ver, com base nas pesquisas e evidências que colhemos, que o problema afeta toda a comunidade acadêmica. Como grupo de trabalho multidisciplinar, percebemos que todas as áreas do conhecimento, de física, química e engenharias à comunicação e geografia, entre outras, estão expostas à desinformação científica em alguma medida. Nós acadêmicos nos tornamos vulneráveis a esse tipo de fenômeno, o que ressalta sua gravidade.

Um ponto muito importante do relatório é o reconhecimento de que existe um ecossistema lucrativo em torno da desinformação científica

CH: Qual é a importância de a própria comunidade científica e acadêmica assumir uma liderança nesse combate à desinformação?

TO: Não há lugar mais adequado para falar de desinformação científica do que a própria academia. Estamos expostos à desinformação nas nossas práticas cotidianas, nos laboratórios, salas de aula, junto aos profissionais que formamos nas universidades e nas pesquisas que realizamos nas instituições. A discussão é natural a partir dessa preocupação comum de muitas áreas do conhecimento. Acadêmicos e pesquisadores de forma geral já têm trabalhado em trazer evidências e achados que são extremamente importantes para pautar decisões políticas. É importante reconhecer nosso papel de fornecer subsídios e observações adequadas para a proposição de políticas públicas e tomadas de decisão qualificadas. E, assim como tem crescido o fenômeno da desinformação científica, tem crescido também a preocupação acadêmica de como lidar e enfrentar esse fenômeno. Para o grupo de trabalho ficou evidente que iniciativas de correção da desinformação são extremamente importantes. Reconhecemos a importância, por exemplo, da checagem de fatos com o apoio de cientistas para corrigir uma desinformação científica propagada especialmente no ambiente digital ou até mesmo na mídia. É uma iniciativa louvável e necessária. No entanto, é urgente pensar a nossa educação científica de base. Sem entender o processo de fazer ciência e a ciência em si, os cidadãos crescem muito mais vulneráveis à desinformação científica. O tratamento tem que vir daí. É menos o combate à desinformação depois de propagada e mais a criação de mecanismos e vacinas de prevenção à desinformação, e isso só pode ocorrer através da educação. Ao mesmo tempo, precisamos entender que os profissionais que formamos nas universidades e que atuam em diferentes áreas do conhecimento também são agentes fundamentais no processo de enfrentamento à desinformação depois de instaurada. Então pensar na formação desses profissionais para que tenham mais condições de lidar com a desinformação científica quando identificada nas suas atividades profissionais também é essencial nesse processo.

Sem entender o processo de fazer ciência e a ciência em si, os cidadãos crescem muito mais vulneráveis à desinformação científica

CH: Muitas vezes há um distanciamento entre a comunidade científica e acadêmica e a sociedade. Como melhorar essa comunicação e aproximar a população da Ciência baseada em conhecimento e evidências?

TO:  Os profissionais de Comunicação e divulgação científica exercem um papel fundamental neste processo, uma vez que têm conhecimento especializado e sabem utilizar linguagem acessível e que circula com mais facilidade no ambiente digital, além de saber como lidar com uma comunicação segmentada para diferentes públicos. Eles têm um papel estratégico importante e necessário para enfrentar a desinformação científica e apoiar o processo de comunicação de achados e descobertas, do processo de fazer ciência, do que a academia realiza para a população em geral. A comunicação também tem papel educativo e formativo. Enfrentar a desinformação cientifica não pode ser enxugar gelo pelo resto da vida, senão vamos sempre perder essa batalha. Como o próprio relatório mostra, a propagação da desinformação é muito maior do que o alcance da correção. Precisamos, sem dúvida, de esforços multisetoriais. Criar mecanismos de estreitamento para que o comunicador de ciência, o jornalista científico, tenha mais acesso a cientistas, universidades e suas assessorias de comunicação, para que seja uma ponte no processo de levar o que é desenvolvido nessas instituições para a sociedade em geral.

CH: O relatório reúne várias recomendações para combater a desinformação científica, entre elas a regulamentação de plataformas que lucram com a desinformação. Como isso poderia ser feito?

TO: É um tema que tem sido amplamente debatido, com derrotas em alguns projetos relacionados ao combate à desinformação, mas também vemos alguns avanços. Falta uma participação mais ativa e presente de acadêmicos, cientistas e pesquisadores que trabalhem nessa temática no debate público junto ao Congresso, para contribuir com a construção desses documentos regulatórios. A regulação é inevitável. Não conseguimos mais sustentar um modelo no qual a regulação da informação no ambiente digital não existe. É algo extremamente crítico não só para a ciência, mas para a própria democracia. E a participação da comunidade acadêmica ainda é muito tímida nas discussões, pela falta de espaço que ocupa nos debates com a classe política. Em contrapartida, representantes de grandes empresas e Big Techs debatem ativamente a regulação das próprias plataformas digitais, obviamente fazendo lobby a seu favor. Precisamos de um lobby a favor da ciência e desse espaço de defensores da ciência junto aos espaços deliberativos da sociedade para construir sistemas de regulação e legislação que reconheçam todos os desafios e busquem preservar a democracia e defender a sociedade. Como membros de instituições que sempre se posicionam em defesa da democracia, da justiça social e dos direitos, temos que exercer um papel atuante nesse processo de construção regulatória. E é algo que tem que ser feito de maneira conjunta.

Precisamos de um lobby a favor da ciência e desse espaço de defensores da ciência junto aos espaços deliberativos da sociedade para construir sistemas de regulação e legislação que reconheçam todos os desafios e busquem preservar a democracia e defender a sociedade

CH: Em muitas dessas plataformas digitais e redes, há cientistas, ou pseudocientistas, que ganham alcance difundindo conteúdo científico duvidoso. Como combater isso?

TO: Muitos usam inclusive elementos com referências à ciência, como jalecos, estetoscópios, criam cenários de laboratório etc., com o objetivo de aparentar legitimidade de que se trata de informação validada cientificamente. E compartilham estudos muitas vezes sem qualquer referência de publicações reconhecidas na área. Ou até mesmo pegam um artigo científico e subvertem completamente o que está colocado ali para fins e interesses próprios. Esse é um desafio gigante. Precisamos ter formas de nós mesmos, cientistas, apontarmos e denunciarmos o quanto isso pode ser prejudicial ao próprio entendimento da ciência em si para a população que não necessariamente tem uma educação científica forte a ponto de reconhecer a desinformação. Até porque todos os signos levam a crer que se trata de ciência, quando na verdade é uma pseudociência, uma epistemologia outra que não faz parte do que a ciência constrói em termos de evidências, consensos e direções validadas. Lidar com esse fenômeno é um dos maiores desafios que temos.

CH: Isso vale sobretudo para locais onde a informação de qualidade não chega? O relatório faz menção aos chamados desertos informacionais. O que são e qual é o tamanho desse desafio?

TO: Os desertos informacionais têm um problema crítico, que é a falta de profissional adequado que saiba trabalhar com informação científica para a população em geral. Pela ausência de um jornalismo, em especial de meios de jornalismo científico, em muitos municípios do nosso país, a população busca informações onde tem acesso, a partir de toda uma construção de acordos de zero rating (ou “tarifação zero”, uma prática de operadores e empresas de tecnologia), que é o consumo de determinados conteúdos na internet sem gastar o pacote de dados do celular. Então muita gente acessa mais WhatsApp, Facebook, Instagram. Outras pessoas só se informam por meio do TikTok, principalmente a nova geração. Não têm acesso à informação qualificada do jornalismo profissional, em especial o jornalismo científico, e buscam informação onde a encontram de maneira facilitada. Esse acaba sendo um espaço profícuo de circulação da desinformação por conta da lógica econômica que mencionei, da economia da atenção. A lógica algorítmica mostra o que é polêmico, sensacionalista, controverso, o que dá mais lucro à própria plataforma, porque gera mais clique e atenção. E a ausência de jornalistas especializados para tratar ciência nesses municípios e comunidades torna essa população extremamente vulnerável à desinformação.

A lógica algorítmica mostra o que é polêmico, sensacionalista, controverso, o que dá mais lucro à própria plataforma, porque gera mais clique e atenção

CH: Como envolver a sociedade também nessas ações, de maneira que ela assuma um papel ativo na identificação e no combate da desinformação?

TO: Sem formação, não é possível.  O primeiro passo é a educação científica. A sociedade precisa entender o que é a ciência. Temos um modelo educacional muito baseado nos resultados finais. Isso não estimula a curiosidade e vocação cientifica, não permite ao aluno entender o que é fazer ciência, como se dá o processo científico. Temos visto alguns programas voltados para os estímulos de vocações científicas junto aos alunos de Ensino Médio justamente para reverter esse quadro. Para que não pensem na ciência como o resultado que está no livro didático e que vão decorar. Trata-se de fornecer possibilidades e iniciativas para que o próprio aluno tenha curiosidade e questionamentos sobre ciência. Precisamos rever nosso modelo de educação científica para formar as próximas gerações menos suscetíveis à desinformação. E que pela própria educação de base que tenham recebido saibam distinguir informações sem evidência e identificar uma informação qualificada e validada cientificamente.

CH: Como isso pode se somar a outras medidas e recomendações que façam frente à desinformação científica? O que mais o relatório sugere?

TO: O relatório traz um conjunto de recomendações, como o fortalecimento da comunicação pública das universidades, instituições científicas, investimento em educação científica e na educação midiática. Também é fundamental o investimento em mais pesquisas sobre essa área. Ainda há lacunas de conhecimento sobre quais seriam as melhores estratégias para enfrentar a desinformação e sobre os impactos da desinformação científica na população em geral. Outra recomendação muito importante é o papel das universidades na formação de profissionais que atuem de maneira ética e comprometida, dado que todas as áreas do conhecimento, da saúde às engenharias, sofrem com algum tipo de desinformação científica. O combate à desinformação ambiental, por exemplo, ainda carece de grande investimento. É um tema muito vulnerável hoje à desinformação e com poucos estudos em comparação com a saúde, por exemplo. Precisamos de mais pesquisadores e estudos para que possamos desenvolver melhores práticas que forneçam não apenas diagnósticos sobre a circulação da desinformação, mas que também busquem traçar estratégias baseadas em evidências sobre como lidar com esse fenômeno. São estudos que ainda estão emergindo e precisam se consolidar.

Precisamos rever nosso modelo de educação científica para formar as próximas gerações menos suscetíveis à desinformação

CH: A inteligência artificial entrou como novo ator nessa dinâmica. Como garantir que ela sirva para propósitos benéficos, como contribuir na checagem de informações, e não como potencial propagadora de desinformação?

TO: Não podemos apostar na inteligência artificial como ferramenta possível de combate à desinformação, apesar do potencial que tem para isso, sem uma regulação adequada. Esse debate precisa avançar também. Sem regulação, ficamos vulneráveis à propagação de desinformação que também tem acontecido por meio de inteligência artificial.

CH: Quão urgente é a tomada de ações e que cenário podemos esperar caso medidas de combate à desinformação científica não sejam assumidas com mais vigor?

TO: É urgente, para ontem, já deveria ter sido feito. Devemos reconhecer esforços de programas voltados para a educação científica e popularização da ciência, que são extremamente louváveis, mas isso ainda é pouco perto da gravidade do fenômeno da desinformação científica. Faltam, de fato, políticas estruturantes para lidar com esse fenômeno, antes que os danos causados pela desinformação científica sejam ainda maiores, com uma população cada vez mais vulnerável e um processo crescente de contestação e descredibilização das instituições, que afeta a manutenção da própria ciência.

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