Contra fraudes e críticas, a missão das comissões que avaliam cotas raciais

Jornalista, especial para o ICH

Para psicóloga integrante da Câmara de Políticas Raciais e da Comissão de Heteroidentificação da UFRJ, Luciene Lacerda, episódios que colocaram em xeque a atuação das bancas fortalecem a certeza do quanto as políticas afirmativas para a população negra são necessárias

CRÉDITO: FOTO DANIELE GRAZINOLLI/ DIVULGAÇÃO

A repercussão gerada recentemente com o caso de dois alunos da Universidade de São Paulo (USP) que tiveram a matrícula negada por não atenderem aos critérios da cota racial colocou em xeque a atuação das chamadas comissões de heteroidentificação e motivou ataques ao próprio sistema de cotas. Mas, para os que atuam nessas bancas que avaliam a concessão da vaga de cotistas, os episódios reforçam a necessidade dessas políticas. “As comissões não são infalíveis, mas elas existem porque há fraudes”, afirma a psicóloga Luciene Lacerda, integrante da Câmara de Políticas Raciais e da Comissão de Heteroidentificação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Militante do movimento negro desde 1988, quando participou da Marcha contra a Farsa da Abolição, Luciene Lacerda conta em entrevista à CH que as comissões de heteroidentificação surgiram na esteira da onda de denúncias de falsas autodeclarações que se seguiram à Lei 12.711, aprovada em 2012 para ampliar a presença de pretos, pardos e indígenas nas instituições federais. As bancas fazem parte da defesa de políticas afirmativas que vão além das cotas para fortalecer outras ações relacionadas à população negra, explica a mestre em Saúde Coletiva, doutoranda em Educação e criadora da Campanha dos 21 dias de ativismo contra o racismo: “Por que a justificativa da miscigenação (contra as cotas raciais no Brasil) só aparece diante de uma política para melhorar e abrir espaços para negros?”.

CIÊNCIA HOJE: Como surgiram as comissões de heteroidentificação no Brasil?

LUCIENE LACERDA: Elas surgiram depois da Lei de 2012 sobre cotas raciais. Essa era uma proposta antiga do movimento negro. Abdias Nascimento já falava disso na década de 1940. E as comissões de heteroidentificação foram criadas porque ninguém imaginava que depois de finalmente existir uma lei dirigida à população negra haveria brancos que se colocariam como negros para ganhar as cotas. Começaram a surgir muitas denúncias de fraudes e vários coletivos e movimentos começaram a reivindicar a criação dessas comissões, que são chamadas de heteroidentificação porque é uma avaliação externa, feita por outras pessoas. A autodeclaração, em que a própria pessoa avalia e/ou diz como se percebe, passou a se mostrar insuficiente, porque algumas delas se mostraram inverídicas. Quando analisamos as denúncias de fraudes à UFRJ, vimos que em torno de 80% eram mesmo fraudes. É um número muito alto. Algumas pessoas sequer nos olhavam, tinham os olhos claros, eram loiras. Mesmo assim, juízes concederam a permanência de algumas dessas pessoas na universidade com a justificativa de que, na época em que entraram na universidade, ainda não existiam as comissões de heteroidentificação. Um absurdo, porque não deixou de ser fraude.

As comissões de heteroidentificação foram criadas porque ninguém imaginava que depois de finalmente existir uma lei dirigida à população negra haveria brancos que se colocariam como negros para ganhar as cotas

CH: As judicializações de casos continuam frequentes?

LL: As tentativas de fraude diminuíram muito com as comissões. Mas as judicializações ainda acontecem, embora também menos. Normalmente quem leva os casos à Justiça é quem tem condições de pagar advogados. Mas é importante dizer que todos os candidatos que têm a concessão negada pela instituição têm direito a uma comissão recursal. Os integrantes dessa outra comissão são diferentes da que avaliou a pessoa da primeira vez. Ela não se repete, mas tem a mesma diversidade de gênero e raça, e faz uma nova avaliação.

CH: Como são formadas as comissões, quem as integra?

LL: Cada instituição tem sua metodologia. Na UFRJ e na Fiocruz, por exemplo, para integrar as comissões é necessário fazer uma formação. No curso, as pessoas aprendem por que essa lei existe, o que é racismo, como isso se estabelece nas instituições e na sociedade, qual é nosso papel. E existe um comprometimento com o sigilo. A maioria das pessoas são da própria instituição. Em alguns lugares, também são chamados representantes do movimento negro, mas, no caso da UFRJ, já tínhamos militantes dentro da própria universidade. Quando são casos de concursos de servidores a comissão é composta por docentes e técnicos. Quando são de alunos, entram também representantes estudantis. E há sempre pretos, pardos e brancos, homens e mulheres. Não é permitido participar de avaliações quando se conhece o candidato, para não haver juízo de valor diferenciado. Também estamos sempre em número ímpar, para não haver empate na hora da discussão. E não se pode fazer nenhum tipo de expressão ou interferência durante a entrevista. A pessoa sai e cada integrante da comissão avalia. A decisão pode ser informada na hora ou posteriormente, em informativo da universidade ou pelo Diário Oficial. Depende da instituição.

Não é permitido participar de avaliações quando se conhece o candidato, para não haver juízo de valor diferenciado. Também estamos sempre em número ímpar, para não haver empate na hora da discussão

CH: E quais são os critérios usados para determinar a concessão das cotas?

LL: A revista policial marca quem é negro e quem não é, e sabemos que a prioridade é a revista de pessoas negras. Eu, por exemplo, já fui revistada nove vezes e fui roubada “só” cinco vezes. Existe diferença. Então o que analisamos são as características fenotípicas, quer dizer, os traços, e não o genótipo, ou seja, a existência de ancestrais negros. Já aconteceu de pessoas solicitarem as cotas raciais alegando que têm tios, avós ou bisavós negros. Se é assim, são eles que têm direito às cotas. Mas a pessoa que está solicitando tem traços negros? Teria dificuldades de ascensão profissional por conta de cor/ raça? Seria parada pela polícia para revista? As pessoas que poderiam ser discriminadas em algum momento pelo fenótipo negro são as que têm direito. Lembrando que alunos de escolas particulares não entram nessas cotas. Muitas pessoas se esquecem disso. O fato de morar numa comunidade também é outra coisa. Não existe cota para área de moradia. Aí seria cota de renda. Nas comissões analisamos características como cor da pele, lábios, nariz, o cabelo, que nem sempre é crespo. Negros como os da Etiópia, por exemplo, têm cabelo mais liso, mas a pele bem mais escura. Existem os que se chamam em alguns lugares do Brasil de “sarará”, com a pele um pouco mais clara, mas não igual à pele branca, e que têm o cabelo crespo, o nariz mais avantajado, os lábios mais grossos. Mesmo essas pessoas que não têm a pele retinta têm a característica negra. Vemos tudo isso para decidir. Além disso, na UFRJ, as entrevistas são sempre presenciais. Quando há candidatos de outros estados, em algumas instituições, são online. Na época da pandemia, tínhamos orientação sobre a luz, por exemplo, que os candidatos deviam usar. Vemos se a pessoa não está usando maquiagem, ou se se expôs mais ao sol para ter uma pele mais escura. Isso já aconteceu. A melhor avaliação é sempre presencial.

 

A pessoa que está solicitando tem traços negros? Teria dificuldades de ascensão profissional por conta de cor/ raça? Seria parada pela polícia para revista? As pessoas que poderiam ser discriminadas em algum momento pelo fenótipo negro são as que têm direito

CH: Como a repercussão do caso dos dois estudantes da USP que tinham solicitado as cotas raciais, mas tiveram o ingresso à universidade indeferido por não preencherem os critérios das comissões de heteroidentificação afeta o trabalho das bancas?

LL: Houve uma tentativa de descrédito desse tipo de avaliação. Claro que as pessoas têm o direito de questionar. Só que me parece contraditório um juiz dizer que um aluno pode entrar após a negativa da comissão, desqualificando uma defesa que o próprio Judiciário deveria fazer da lei sobre as comissões de heteroidentificação. E muita gente aproveitou para atacar o sistema de cotas como um todo. Mas casos assim só fortalecem nossa certeza do quanto essa política é necessária. Antes de começar uma rodada de avaliações na comissão de heteroidentificação, reunimos todos os candidatos e candidatas no mesmo espaço e informamos o que estamos fazendo ali, por que essa política existe, por que ela foi reivindicada, por quais movimentos, a quem ela serve. Explicamos o quanto é bom essas pessoas chegarem a espaços como o da universidade, majoritariamente branco entre alunos, docentes e técnicos. Ninguém é obrigado a estudar ou pesquisar apenas sobre isso, mas é importante ter esse tema como norte de muitas questões. Por exemplo, quando fiz um trabalho sobre saúde integral da população negra, havia uma pesquisa sobre a sobrevida de pessoas com diabetes com amputação de membro inferior. Sem os dados do quesito cor, não identificaríamos que existe uma população majoritariamente negra entre os diabéticos. Aliás, sou parte dela. Participei do Comitê de Ética e Pesquisa da Secretaria Estadual de Saúde e fizemos uma discussão para que todas as pesquisas contivessem obrigatoriamente o item cor/ raça. Embora tenham mencionado que dependeria do que o pesquisador quisesse, discutimos e avaliamos que não pode ser assim. É importante ter esses dados para uma melhor forma de fazer e implementar as políticas públicas de saúde para esse estado com um número tão grande de negros e negras. É só lembrar que, na covid, a maioria dos mortos era negra. Não podemos ignorar essas informações. E, quando olhamos a questão das cotas, nossa reivindicação é que a pessoa seja atendida e aquela que atende. Quantas vezes acontecem casos, por exemplo, de pacientes que se recusam a ser atendidos por pessoas negras? Ainda acontece em pleno século 21. Tudo isso nos mostra como essa política deve ser mantida até que não seja mais necessária, até que coisas assim deixem de acontecer. Por enquanto, ainda é.

 

Antes de começar uma rodada de avaliações na comissão de heteroidentificação, […] informamos o que estamos fazendo ali, por que essa política existe, por que ela foi reivindicada, por quais movimentos, a quem ela serve.

CH: Opositores às cotas normalmente alegam que a sociedade brasileira é miscigenada e que o sistema atual das comissões acaba favorecendo erros. Como vê essa discussão?

LL: É interessante como realmente o Brasil é um país miscigenado, mas o racismo permanece. Há pouco tempo, em uma escola, jogaram fezes numa aluna, chamaram-na de macaca, e a escola não se manifestou. Disse que não tinha nada a ver com o racismo. Por que pessoas de religiões de matriz africana que usam suas contas nem sempre são bem recebidas em unidades de saúde ou escolas, mas outras que entram com crucifixo não encontram nenhum problema? Por que são pouquíssimos os negros que são gerentes e que recebem altos salários? Por que a violência obstétrica acontece mais com mulheres negras? Eu mesma tive uma situação de aborto espontâneo e, quando cheguei na maternidade pública e o médico finalmente foi me atender, ele olhou para mim e, sem me perguntar nada, sequer meu nome, disse: “Com certeza não fez pré-natal”. Eu lá sangrando. Só falei: “Como assim? Você me conhece? Eu sou profissional de saúde”. Então o racismo não existe, o país é miscigenado, mas só com as pessoas negras acontecem essas coisas? Tem algo errado. Por que a justificativa da miscigenação só aparece diante de uma política para melhorar e abrir espaços para negros?

Há pouco tempo, em uma escola, jogaram fezes numa aluna, chamaram-na de macaca, e a escola não se manifestou. Disse que não tinha nada a ver com o racismo.

CH: O reitor da USP, Carlos Carlotti Junior, disse que a universidade adotaria mudanças no processo de análise de estudantes que se autodeclaram pretos e pardos. Uma das ações seria tornar presenciais as entrevistas com os candidatos. Qual é a validade dessa medida?

LL: Se existem tentativas de fraude mesmo nas entrevistas presenciais, que dirá nas on-line. É por isso que teve um período em que, mesmo durante a pandemia, a UFRJ fez presencialmente, com todos os cuidados de afastamento e máscara obrigatória. O presencial fortalece a ideia de a quem as cotas realmente se destinam e ajuda a evitar reclamações.

CH: Como fazer para que uma exigência do presencial não gere um novo viés de exclusão, considerando que muitos candidatos de outros estados podem não conseguir participar do certame? Qual é a importância de as universidades custearem esse deslocamento para entrevista, por exemplo?

LL: Para ser aprovado, o MEC deve colocar isso no orçamento, porque desde o governo anterior os orçamentos das universidades foram todos diminuídos. Não nego a importância deste custeio. Mas, para existir uma política dessa, é preciso ter isso em conta no orçamento.

CH: Que outras medidas poderiam ser adotadas no sentido de evitar questionamentos à credibilidade e eficácia das comissões de heteroidentificação e ao próprio sistema de cotas?

LL: É importante que os integrantes das comissões participem de cursos, com uma grade específica, por exemplo, de como se preparar para essas avaliações, entender os procedimentos, quais são as leis sobre o tema. Entender os privilégios. E não deveria ser só para as comissões, deveriam ser cursos obrigatórios para toda a instituição. O governo federal disse que ia diversificar mais a constituição das instituições federais e isso ainda está devendo. Seria importante que as gestões das instituições tivessem o tema em conta para não aplicar uma política fragilizada das cotas e poder defendê-las frente a um conteúdo já sabido. Falar mais sobre as cotas nos pré-vestibulares, cursinhos e escolas também fortalece o entendimento da sociedade no geral e dos que pretendem se candidatar às cotas. Para que saibam quem, de fato, tem direito a elas. Outro tema é que, se os juízes avaliam que podem decidir sobre isso, essa tem que ser uma discussão também no Judiciário. Até no Judiciário, em setores do Ministério Público e Defensoria, os concursos também demoraram a ter cotas.

Falar mais sobre as cotas nos pré-vestibulares, cursinhos e escolas também fortalece o entendimento da sociedade no geral e dos que pretendem se candidatar às cotas. Para que saibam quem, de fato, tem direito a elas

CH: Correntes que sugerem apenas a adoção de cotas sociais, restringindo-se ao critério da escola pública no lugar das cotas raciais, voltaram a ganhar espaço no debate. Por quê?

LL: É curioso como não permanece a discussão de que determinadas escolas públicas são também privilegiadas, como as escolas técnicas, o Pedro II, onde estudei, ou os CAps, que têm outra estrutura de conteúdo, carga horária e professores. A UFRJ já tentou restringir as cotas apenas para escolas públicas. E a Justiça impediu. Dentro dessas cotas sociais existe uma restrição de fato que é a vida do racismo. Quando meu filho ia à creche, que era da UFRJ, as primeiras fotos de crianças negras fui eu que levei. Porque se só se colocam fotos de bebês da Johnson se fortalece a ideia de que esses são os que merecem mais atenção. É essa a mensagem para as mães de crianças brancas e negras, para as profissionais da creche. Por que a miscigenação não aparece? Aí dizem que as instituições não estão preparadas. E quando vão estar? Antes das cotas muita gente dizia que o que se precisava era melhorar o ensino. Concordo, mas precisa esperar? Então, para quem acha que as cotas raciais só devem vir depois, deveria também defender que o orçamento volte a ser o que está na lei do orçamento público sobre a educação, a saúde. Por que as pessoas não se questionam sobre suas ações, sobre o que fazem para que o racismo não aconteça mais onde moram, trabalham, estudam? Observar, apenas, não torna as instituições menos racistas. Então, por enquanto, temos que fazer essas ações afirmativas. E ações afirmativas não são só cotas. Elas são o fortalecimento de várias políticas. Por exemplo, a doença falciforme acomete principalmente a população negra, mas ela só foi incluída por lei no teste do pezinho em 2002. Há muitas políticas contempladas nessa discussão. 

 

Por que as pessoas não se questionam sobre suas ações, sobre o que fazem para que o racismo não aconteça mais onde moram, trabalham, estudam? Observar, apenas, não torna as instituições menos racistas. Então, por enquanto, temos que fazer essas ações afirmativas. E ações afirmativas não são só cotas.

CH: Pelo cenário atual, qual é o risco de retrocesso na política de cotas raciais no país?

LL: Sempre há risco. E nada como uma discussão para colocarmos o que é importante. Mas é preciso dar todas as vozes. Um dos problemas dos setores que querem retroceder em alguns desses avanços é dizer que são privilégios. Em que privilégio a população negra está colocada? Se no passado havia uma lei que era chamada a lei do boi em cursos que envolviam donos de terra, que tinham cotas em vagas nas universidades. E ninguém questionava. Mas negros já foram proibidos de entrar em escolas e universidades. Por que há uma defesa da miscigenação da população, mas não há defesa da miscigenação dos espaços institucionais? Espero realmente que não haja retrocesso, porque essa lei é pontual. Não é eterna. Quando entrei na universidade em 1979, éramos apenas 1,25% de negros na universidade. Hoje estamos entre 12% e 15%, dependendo do lugar. Mas somos uma população de 56% no país. E existem menos ainda docentes negros. Essa é uma discussão que precisa ser estabelecida. É importante que todas as instituições tenham suas comissões de heteroidentificação, porque isso significa que dentro de cada uma vai estar essa política. E elas estão porque há fraudes. Sem as comissões, não vamos impedi-las. Pode haver problemas, não nego. Não são infalíveis. Gostaria que não precisasse. Mas sem elas os casos de fraudes vão aumentar e a população negra não vai entrar nesses espaços.

Comentário (1)

  1. FRANCISCO ASSIS DOS SANTOS

    Excelente entrevista… Sou pardo, professor de escola pública e concordo com as cotas, agora em paralelo devemos fazer pressão para que a realidade do ensino brasileiro mude… Mude para melhor..

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