É preciso superar a tradição do intervencionismo militar

Jornalista

Para o historiador Carlos Fico, da UFRJ, o golpe de 1964, ocorrido há 60 anos, deve ser mais estudado, assim como a colaboração de civis com a ditadura e o eterno fantasma da interferência das Forças Armadas na democracia, que voltou a assombrar o país nos atos de 8/1

CRÉDITO: FOTO ZÔ GUIMARÃES

Referência em estudos sobre o golpe de 1964 e a ditadura militar que o seguiu, o historiador Carlos Fico, professor do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), espera que 2024 seja um ano de reflexão. Para ele, essa é uma das importâncias das efemérides. “Nos 40 anos do golpe, em 2004, fizemos um grande evento, que atraiu a atenção. Nos 50 anos, corri o Brasil e o exterior fazendo palestras. Essas efemérides são importantes para as pessoas refletirem, para o assunto ultrapassar os limites da academia. E eu espero que, nestes 60 anos do golpe, seja assim”, diz Fico, que vê também uma oportunidade de se olhar para o futuro. “Talvez agora, quando já há uma quantidade significativa de pesquisas históricas, a reflexão possa se voltar para o que falta ser feito: superar a tradição negativa, empobrecedora, do intervencionismo militar”, completa.
Essa tradição é o tema do próximo livro de Fico, que pretende levar ao leitor não acadêmico “um manancial de fatos irrefutáveis” que demonstre como ocorreu a “constitucionalização desse intervencionismo militar” no país, uma história que começou no século 19 e que persiste até hoje, como foi visto nos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023. “Aqueles bolsonaristas que muitos achavam malucos, folclóricos, ridículos, não eram nada disso. Iam às ruas de verde e amarelo pedir a aplicação do artigo 142 da Constituição. Pois bem, há uma razão histórica muito concreta, e pouca gente conhece as causas, que meus colegas e eu estudamos há décadas”, diz ele. E completa: “Um problema estrutural de tão longa duração não se resolve a curto prazo, mas é possível dar passos importantes, como reescrever esse artigo [da Constituição] de maneira menos cretina. Talvez nos próximos governos, se a extrema-direita for novamente derrotada.”

CIÊNCIA HOJE: Quais os avanços mais significativos na análise e na compreensão histórica do golpe de Estado de 1964 e da ditadura militar que o seguiu?

CARLOS FICO: O golpe de 1964 é pouco estudado. Muita gente estuda, já estudou e continua estudando a ditadura militar. No senso comum, há uma confusão entre o golpe e a ditadura. O golpe tem peculiaridades, até porque ninguém previa, na sequência, uma ditadura que perdurasse por tantos anos. Ambos começaram a ser estudados, inicialmente, sobretudo pela ciência política, pela sociologia, de uma perspectiva mais teórica, em busca de modelos explicativos sobre a frequência da intervenção militar nos países latino-americanos, o que haveria de comum entre os diversos golpes nesses países envolvendo militares. Posteriormente, surgiu um conjunto significativo de estudos históricos. Em um primeiro momento, predominou a perspectiva do confronto entre golpistas versus resistência de alguma natureza, como a luta armada ou a resistência democrática. Depois, nos últimos 20, 30 anos, começou a haver, do ponto de vista dos estudos históricos, uma perspectiva de análise muito marcada pela abertura dos acervos documentais da própria ditadura.

Os estudos sobre a escravidão e sobre a ditadura militar são os mais abundantes na historiografia brasileira contemporânea. Esses dois temas atraem também o interesse de pesquisadores estrangeiros, haja vista as possibilidades de comparação e uma série de interveniências, como a presença dos governos dos Estados Unidos, da França, da Inglaterra, e suas relações com a ditadura militar. Sem dúvida, os estudos históricos sobre a ditadura militar são dos mais avançados na historiografia brasileira.

CH: O tema continua atraindo a atenção da juventude na academia?

CF: Sim, o tema não morreu dentro da academia para as novas gerações. Sempre atraiu a atenção, desde o dia seguinte ao evento, por se tratar de um golpe de Estado, mais um dentre os diversos registrados no Brasil. É um dos raros temas que suscitaram, já em 1964, os chamados instant books, por conta do caráter momentoso do golpe. A partir de meados dos anos 1960, ou seja, logo depois do golpe, mas sobretudo nos anos 1970 e adiante, houve muitos estudos de ciência política, de sociologia, muitos ensaios opinativos também, e depois a abordagem histórica.

É curioso notar que, a partir das efemérides relacionadas ao golpe do Estado Novo (1937), sobretudo a partir de 1987, data do seu cinquentenário, surgiu uma estratégia de análise do golpe de 1964. Durante a ditadura militar, e mesmo um pouco depois, nos anos 1970 e 1980, era complicado analisar o golpe de 1964, sob pena de ser reprimido. Essas efemérides possibilitavam a abordagem histórica do tema da ditadura, no caso do Estado Novo, e, de algum modo, introduziam questões também relativas à ditadura militar recente, haja vista as similaridades entre as duas.

A partir daí, evoluiu-se muito. Durante os anos 1990 e 2000, esse se tornou um dos temas mais focados por jovens no mestrado e no doutorado. Houve uma avalanche de estudos sobre a ditadura militar. Quando nós conseguimos a abertura dos documentos secretos, isso se ampliou muitíssimo. Hoje, se acalmou um pouco, mas há ainda uma grande quantidade de propostas sobre o tema. 

CH: Em abril de 2022, o senhor divulgou parte dos áudios de sessões do Superior Tribunal Militar (STM) que abordavam as torturas. São mais de 10 mil horas de gravações. De lá para cá, o que de mais relevante encontrou, além da confirmação de que os oficiais-generais tinham responsabilidade pela tortura e pelo assassinato de opositores?

CF: Estou escrevendo um livro sobre a história das intervenções militares do Brasil, que vou concluir neste ano e, em paralelo, estou terminando essa pesquisa das sessões de julgamento do Superior Tribunal Militar de 1979 a 1985. O estudo do material do período anterior, de 1975 até a Lei da Anistia, eu já concluí e publiquei um trabalho. Eu divulguei as descobertas mais impressionantes sobre tortura por meio da jornalista Miriam Leitão. Também levantei uma série de outros dados em relação à segunda parte do material, cuja audição devo concluir em fevereiro.

A minha preocupação em relação a essas sessões é mais teórica, diz respeito à moldura institucional da ditadura brasileira: como se lidava com o fato de haver atos institucionais, que eram leis de exceção, juntamente com uma Constituição que os militares consideravam legítima, embora não fosse. Os juízes do STM julgavam com base nos atos institucionais ou na Constituição? E, depois da Lei da Anistia, como ficou isso? Obviamente, as pessoas foram anistiadas, quase todas, e os julgamentos mudaram. Então, essa é a minha questão.

Os juízes do STM julgavam com base nos atos institucionais ou na Constituição? E, depois da Lei da Anistia, como ficou isso? Obviamente, as pessoas foram anistiadas, quase todas, e os julgamentos mudaram. Então, essa é a minha questão

CH: Mesmo após a redemocratização, havia tabus acerca da ditadura, inclusive entre a esquerda, que relutava em questionar suas próprias ações. Em que momento avalia que houve o ponto de inflexão nas análises desse período?

CF: Nós, especialistas em história do tempo presente, discutimos muito sobre a necessidade ou não do chamado distanciamento ou recuo temporal para abordagem de eventos traumáticos, como são classicamente o Holocausto, o Apartheid na África do Sul, as ditaduras de Franco e de Salazar, as ditaduras militares da América Latina, os genocídios de Kosovo (1999) e Ruanda (1994). Todos esses fenômenos, marcados pela violência no século 20, geram, no primeiro momento, a chamada memória confortável, ou seja, lembranças de eventos traumáticos que tentam eliminar as culpas, as conivências, os colaboracionismos, as matanças, o uso de armas de um lado e de outro. Os grupos sociais constroem, e as pessoas também, memórias confortáveis. Isso é inerente à guerra, às ditaduras, aos eventos traumáticos.

Tudo indica que, com o tempo, essas coisas vão se diluindo e possibilitando abordagens mais objetivas. Muitos colegas acham que isso é besteira, que não é necessário recuo temporal, outros acham que é fundamental, não como uma escolha do pesquisador, mas como um dado da realidade dos eventos traumáticos. Parece-me que, paulatinamente, certas questões traumáticas – ou temas tabus, como você mencionou – vão sendo abordadas. É claro que, no caso da história brasileira, o grande tema tabu, em um primeiro momento, foi a tortura, que demorou a vir à tona; as próprias vítimas frequentemente tinham dificuldades de tratar desse assunto. Em história do tempo presente, lidamos com muita cautela com o depoimento testemunhal, porque o testemunho da vítima é evidentemente enviesado pelo sofrimento. Temos empatia, é claro, em relação às vítimas, mas também buscamos a objetividade. Para a vítima, o torturador é um monstro, o que dificulta uma abordagem histórica razoável.

No primeiro momento, só tínhamos o depoimento das vítimas. Foi preciso uma evolução, não só do ponto de vista do recuo temporal, mas também da multiplicidade de vestígios, que são as fontes documentais, para não lidarmos apenas com testemunhos que construíram frequentemente, inclusive no ambiente da esquerda, uma versão heroica, romantizada. Não é denúncia ou crítica, mas um fato óbvio: a história de eventos traumáticos é, inicialmente, heroificada, romantizada, com lances espetaculares de resistência que ocultam a conivência ou a incompetência política.

Não é denúncia ou crítica, mas um fato óbvio: a história de eventos traumáticos é, inicialmente, heroificada, romantizada, com lances espetaculares de resistência que ocultam a conivência ou a incompetência política

Isso foi sendo superado, eu diria, ali pelos anos 1980, com o aparecimento de novos vestígios documentais, o recurso à imprensa, as entrevistas orais com pessoas de outra natureza, e assim por diante. Depois, com a enorme riqueza da documentação secreta da ditadura, por conta do manancial de documentos que a repressão deixou. O burocratismo dos militares e dos civis que agiram na ditadura favorece a nós, historiadores. 

Mas o problema do tema tabu existe até hoje. Uma das questões dramáticas que a esquerda não aborda – acho que somente [o sociólogo da Universidade Estadual de Campinas] Marcelo Ridenti e eu abordamos isso em livro – são os dilemas ético-morais sobre 1968. Naquele ano, houve protestos estudantis entre março e junho. Depois de junho, houve uma série de provocações da extrema-direita e dos militares linha-dura no sentido de manter uma sensação de problemas, de rebeliões, de confusões, porque eles queriam arrancar um novo ato institucional do general Costa e Silva. Foram várias provocações, invasões de universidades, sequestros de artistas, bombas na Associação Brasileira de Imprensa (ABI) etc. Para quê? Para gerar um clima de comoção que justificasse o Ato Institucional n.º 5, que Costa e Silva não queria dar. E eles conseguiram: teve o AI-5.

O que aconteceu na sequência? Aqueles estudantes que protestaram não eram todos comunistas, não eram necessariamente adeptos da luta armada, nem estavam envolvidos nisso, mas, quando chegou o final de 1968 e houve a decretação do AI-5, o que aconteceu? Depois de tanta expectativa, de esperança, de ir para as ruas, houve uma enorme frustração. Esses jovens universitários de classe média se tornaram, assim, facilmente recrutáveis pelos grupos que se chamavam revolucionários, as dissidências comunistas favoráveis à luta armada. E ingressaram na clandestinidade de uma maneira, vamos dizer assim, espontânea, sem convicção doutrinária, do ponto de vista do comunismo, e sem treinamento com armas. E foram mortos, massacrados. Presos, torturados e mortos. Os que sobreviveram dão depoimentos do tipo “eu não era comunista, mas fiquei muito chateado com o AI-5, entrei na clandestinidade, mas não sabia nem pegar em uma arma, fui mandado para um assalto a banco, fui para isso, fui para aquilo”, e aí relatam suas experiências.

Isso demonstra a responsabilidade das lideranças e quadros organizados, efetivamente comunistas e convictas – alguns com treinamento militar em Cuba, na China, na Coreia do Norte –, nesse recrutamento. Evidentemente, essas lideranças sabiam que estavam colocando a vida desses jovens em risco. O perfil dos presos políticos, então, mudou: depoimentos de pessoas de 40, 30 anos à época relatam a chegada de jovens de 20, 21, 22 anos. 

Esse assunto é mencionado, como eu disse, pelo colega Marcelo Ridenti nas páginas finais da sua tese. Eu já abordei aqui e ali, tentando, inclusive, suscitar o interesse para isso. Mas, ele não é abordado em razão da preocupação da esquerda de construir uma memória confortável, silenciando esse problema.

CH: Isso aconteceu na Argentina também.

CF: Isso aconteceu em quase todas as ditaduras do continente, e é um tema que, em outros lugares, é estudado. Nós, aqui no Brasil, também ainda não estudamos algo que é pesquisado em outros países, como Alemanha, Espanha e Argentina: os perpetradores, os agentes da repressão. Não sei bem o porquê, se é pela dificuldade de fontes, se é pela antipatia que, obviamente, a figura do perpetrador gera, ou pelo fato de que havia muitos civis envolvidos na repressão. Isso é um problema. Pode ser essa a causa da ausência, no Brasil, desse tipo de estudo: um antepassado, um avô, um pai, que era agente da repressão. Também denota a existência da memória traumática.

O próprio problema da tortura é frequentemente analisado apenas como denúncia, como deve ser mesmo, porque é uma coisa terrível. Mas precisamos compreender o funcionamento propriamente técnico da tortura – uma abordagem um pouco cruel, mas necessária, do ponto de vista histórico. Por que eu digo isso? Pensem nas mulheres e nos homens torturados em um ambiente fechado, escuro, uma sala enorme, dentro da qual havia uma cobra gigante, e, nessa sala, a temperatura passava de 10 graus negativos para mais de 40 graus em poucos minutos, para deixar a pessoa transtornada. Como é que, dentro de uma unidade militar, se instala uma coisa como essa? Quem fornecia esses equipamentos? Quem cuidava do animal? Quem fazia as instalações de refrigeração? A escuta telefônica, quem fazia? Esse tipo de estudo técnico, que não é o estudo da denúncia da tortura, dos que sofreram bravamente, é importante e não é feito porque mostra a participação de civis colaborando com a tortura ou torturando também.

Eu costumo dar o exemplo das datilógrafas que eram requisitadas do antigo INPS [Instituto Nacional da Previdência Social] e de outras agências do Estado para datilografar o depoimento das pessoas que estavam sendo torturadas. Uma pessoa comum, uma senhorinha, datilógrafa, ia lá para o DOI-Codi, ficava ao lado da pessoa sendo interrogada sob tortura. É muito desagradável para a sociedade perceber que a ditadura militar não era composta apenas por militares malvados, cruéis, torturadores, contra uma sociedade magnífica, democrática, resistente, heroica. Nenhuma ditadura se sustenta sem apoio social, sem a participação de civis, empresas civis, técnicos, funcionários públicos, médicos que eram chamados para reanimar as vítimas para que elas pudessem continuar sendo torturadas. E certamente há uma quantidade imensa de documentos, contratos etc. 

Nenhuma ditadura se sustenta sem apoio social, sem a participação de civis, empresas civis, técnicos, funcionários públicos, médicos que eram chamados para reanimar as vítimas para que elas pudessem continuar sendo torturadas. E certamente há uma quantidade imensa de documentos, contratos etc.

CH: Com relação aos militares, há um temor reverencial na política brasileira. Como vê o posicionamento do Congresso, em relação às Forças Armadas, durante e após o governo da extrema-direita? E o do governo Lula?

CF: São duas coisas aí. Uma é a razão da existência desse temor reverencial. É sobre isso que estou escrevendo, o livro deverá ter umas 500 páginas, e eu tive de voltar à guerra do Paraguai e à história do Império. A razão de haver no Brasil uma constitucionalização desse intervencionismo militar é histórica, estrutural e remonta ao século 19. Essa é a hipótese que vou demonstrar no livro. Essa licença para os militares intervirem na política vem da primeira Constituição, de 1891, e remonta à guerra do Paraguai. Os militares brasileiros desrespeitaram todas as constituições republicanas com atos subversivos, golpes de Estado etc. Então, essa tradição existe há muito tempo, não é obra do governo de Jair Bolsonaro, é uma tradição secular.

Essa licença para os militares intervirem na política vem da primeira Constituição, de 1891, e remonta à guerra do Paraguai. Os militares brasileiros desrespeitaram todas as constituições republicanas com atos subversivos, golpes de Estado etc. Então, essa tradição existe há muito tempo, não é obra do governo de Jair Bolsonaro, é uma tradição secular

Outra coisa é como eu vejo o governo Lula nesse aspecto. E eu vejo mal. Desde o início, antes mesmo da posse, eu falei em uma entrevista que esse problema do intervencionismo militar, infelizmente, não estaria resolvido durante o governo Lula, que quase não conseguiu se eleger (quase houve a reeleição do governo de extrema-direita) e, portanto, não teria força política para enfrentar o tema tão delicado, secular e estrutural do intervencionismo militar. Essa minha avaliação infelizmente se confirmou quando Lula, já eleito, antes da posse, cedeu às pressões para indicar um ministro da Defesa palatável aos militares. E pior: concordou em nomear os comandantes militares ainda durante o governo Bolsonaro, porque havia ameaças de não transmitirem os cargos, ficaram bufando, e Lula concordou. Foi um início muito negativo para o governo Lula em relação aos militares, e ele continua com essa perspectiva de acalmar, de negociar, de conversar e de contemplar com vantagens materiais e orçamentárias para acalmar os ânimos militares, o que me parece um equívoco. Mas é uma discordância política, não é uma análise histórica.

É claro que eu compreendo que o governo Lula surgiu em meio a uma enorme crise militar, que culminou com uma tentativa de rebelião militar, ou o que seja – ainda não sabemos bem o que foi o 8 de janeiro, mas foi gravíssimo. E há uma questão geracional. Quem tem em torno de 70 anos e enfrentou mais diretamente a ditadura militar desenvolveu uma relação complicada com os militares, que não é saudável para a proeminência do poder civil. Esse é o problema principal da democracia brasileira: a falta de proeminência do poder civil, o que torna a democracia brasileira institucionalmente frágil.

Esse é o problema principal da democracia brasileira: a falta de proeminência do poder civil, o que torna a democracia brasileira institucionalmente frágil

Mas, enfim, com o livro que estou escrevendo, quero dar ao leitor não acadêmico um manancial de fatos irrefutáveis que demonstrem a recorrência de padrões e, portanto, a necessidade de encararmos a questão do intervencionismo militar. Como isso se tornou uma cláusula constitucional? Aqueles bolsonaristas que muitos achavam malucos, folclóricos, ridículos, não eram nada disso. Iam às ruas de verde e amarelo pedir a aplicação do artigo 142 da Constituição. Pois bem, há uma razão histórica muito concreta, e pouca gente conhece as causas, que meus colegas e eu estudamos há décadas.

CH: O fantasma do comunismo é um tema bastante instrumentalizado pela direita. Esse eterno fantasma das Forças Armadas nasceu após a Intentona Comunista?

CF: Sim, foi lá que nasceu. O comunismo sempre foi muito frágil no Brasil, do ponto de vista eleitoral e da filiação doutrinária das pessoas, e continua sendo. Mas as revoltas comunistas de 1935 estão na origem do anticomunismo que se desenvolveu a partir daí. É claro que antes já havia, aqui e ali, por causa da Revolução de 1917 na Rússia e da criação do Partido Comunista no Brasil, em 1922. Mas a atitude anticomunista cresceu muito com os mitos criados em 1935 e que ganharam corpo na política. Getúlio Vargas e, depois, outros usaram esse evento para uma série de ações que se concretizariam na criação do Tribunal de Segurança Nacional, em 1936. Prenderam-se todos os comunistas, todos que eram de esquerda e todos que eram contra Vargas. O discurso anticomunista foi usado para justificar a manutenção de alguém no poder autoritariamente e isso se constituiu, ao longo da Guerra Fria, como um tema central. Na Segunda Guerra Mundial, que teve a União Soviética ao lado dos Estados Unidos contra o nazifascismo, a esquerda em geral se tornou mais palatável. Com o fim do conflito e o início da Guerra Fria, a propaganda anticomunista ganha um vulto enorme. 

O uso da suposta ameaça comunista, hoje em dia mais do que nunca, é uma falácia para justificar uma série de ações. As pessoas da extrema-direita veem comunistas por todos os lados. É uma loucura chamar o Lula de comunista, mas eles chamam; qualquer ação de esquerda, qualquer ato de justiça social é coisa de comunista. E não é apenas manipulação da verdade. Há quem genuinamente ache isso, embora nem saiba definir o que é comunismo.

O uso da suposta ameaça comunista, hoje em dia mais do que nunca, é uma falácia para justificar uma série de ações. As pessoas da extrema-direita veem comunistas por todos os lados. É uma loucura chamar o Lula de comunista, mas eles chamam

Isso é muito interessante como objeto de pesquisa histórica. Espero que colegas mais jovens se interessem por essa constituição de uma memória nova e tão deturpada do que é o comunismo nas últimas décadas. Se eu tivesse menos idade, certamente me interessaria.

Comentário (1)

  1. Ótima entrevista do Carlos Fico. Levanta questões importantes para o entendimento e compreensão do período da Ditadura Militar no Brasil e que podem e precisam ser abordados pelos historiadores.

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