A ciência compartilhada na rede

Já ouviu falar em altmetria, as métricas alternativas para acompanhar e avaliar a ciência? Pois é, elas estão aí! Redes sociais (Facebook, Twitter etc.), blogues, sites especializados e de notícias podem ser fonte para novas formas de medir o impacto da produção científica. Como essas novas mídias podem revelar a ciência em um ambiente onde a academia e a sociedade estão juntas, refletindo e se apropriando do debate, das controvérsias e das descobertas científicas? Será que poderemos transformar polegares de curtidas e corações em indicadores para a ciência?

 

A web já faz parte do cotidiano de pesquisadores, editoras e instituições científicas. Publicamos e lemos periódicos on-line, e utilizamos plataformas da web social (Twitter, Facebook, blogues, YouTube, etc.) para divulgar nossos trabalhos, fazer contatos, encontrar novos colaboradores… Nossas produções e resultados de pesquisa também circulam no ambiente on-line, recebendo curtidas e comentários, sinalizando um interesse que, até pouco tempo atrás, era muito mais difícil de acompanhar. O padrão ouro da avaliação dos artigos científicos até a década passada era a citação. Diante da possibilidade de se ver e monitorar todo esse diálogo da ciência em ação na internet, não seria interessante considerar essa uma nova forma de medir os impactos da ciência?

 

Muito além das citações

Quando olhamos para as citações que um artigo recebeu, estamos considerando um grupo relativamente limitado de pessoas que o usaram: aquele grupo que se interessou, leu e utilizou aquele texto para construir e publicar o seu próprio trabalho. Esse grupo com certeza é muito importante ‒ afinal, é assim que se faz ciência, com pesquisadores usando trabalhos de outros pesquisadores para construir conhecimento novo. Mas a citação não é o único uso que um artigo científico pode ter. Estudantes leem artigos como parte da sua formação profissional. Profissionais leem artigos para ficar em dia com novas tendências da área e para resolver questões específicas, como definir um diagnóstico médico. Pacientes, gestores, ativistas, amadores, wikipedistas, curiosos, muita gente pode se interessar pela literatura científica, pelos mais diversos motivos.

Hoje, nas redes sociais, encontramos traços desses interesses por artigos científicos e pela ciência. O biólogo compartilha seu artigo novo no Facebook. A astrônoma explica sua pesquisa em um vídeo no YouTube. A doutoranda cria seu caderno de pesquisa em formato de blogue. O observador de pássaros publica uma série de fotos no Instagram para identificar uma possível espécie nova. A cientista social escreve uma sequência no Twitter mostrando com o que a pesquisa acadêmica pode contribuir para a sociedade. São atos que não necessariamente geram citações, mas demonstram que a utilidade da ciência não se resume ao que é publicado formalmente em periódicos consagrados. E observar a repercussão do que foi publicado nesses ambientes digitais é cada dia mais viável por conta dos identificadores persistentes de documentos (ver ‘Nem tudo está perdido com o ‘erro 404’).

Nem tudo está perdido com o ‘erro 404’

Você já encontrou o erro 404 (página não encontrada) quando tentava acessar algo na internet? Às vezes isso acontece porque o conteúdo que você procura foi apagado, mas outras vezes a página ainda está lá, só que em um endereço diferente. Para resolver esse problema, existem os identificadores persistentes, códigos que identificam conteúdos específicos e que permanecem sempre os mesmos, não importa o que aconteça. Pense em uma caixa postal: sua correspondência vai para um endereço fixo e você pode mudar de casa sem deixar de receber nada. Do mesmo jeito, quando o endereço de uma página ou artigo com identificador persistente é alterado, basta associar esse identificador ao novo endereço. Alguns dos identificadores persistentes mais conhecidos são o DOI (Digital ObjectIdentifier, ou identificador digital de objeto), o PMID (usado na PubMed), o arXiv ID (do repositório arXiv) e o sistema Handle, entre outros.

As métricas dessa disseminação de trabalhos científicos nas redes sociais, que chamamos altmetrias, vão aos poucos se incorporando ao nosso cotidiano. Em alguns periódicos e repositórios, encontramos junto aos dados de download informações sobre quantas vezes o arquivo foi compartilhado. Para alguns, as altmetrias podem ser indicadores do impacto social da ciência, algo importante para a sociedade que quer e deve acompanhar o que se faz com os recursos públicos investidos em ciência. Grischa Fraumann, da Finlândia, fez sua dissertação de mestrado sobre o uso das altmetrias no financiamento à pesquisa. Uma das maiores agências de fomento no mundo, a britânica Wellcome Trust, já utiliza dados altmétricos em suas atividades.

Como surgiu a palavra ‘altmetria’

O termo ‘altmetria’ é um anglicismo, uma adaptação para o português de altmetrics, apropriadamente criado em 2010 em um tuíte de Jason Priem (@jasonpriem), um dos autores do manifesto altmétrico. Altmetrics ou altmetria é uma redução de alternativemetrics ou métricas alternativas. Há também uma discussão sobre se o termo seria adequado, já que estas não são métricas alternativas e sim complementares. O que se pode dizer é que tanto o termo altmetrics quanto o termo altmetria são os mais estabelecidos em seus idiomas.

Métricas do século 21

Mas quais seriam essas medidas? Pode-se dizer que hoje usamos alguns tipos de métricas alternativas, e que, a partir delas, podemos fazer diferentes estudos. Podemos lançar o olhar para a disseminação dos conteúdos em tuítes e posts de divulgação, ver a interação dos usuários a partir desses posts (as tais curtidas e reações do Facebook e corações do Twitter), os downloads dos artigos e sua incorporação em gestores de referência como o Mendeley e a geração de conteúdo a partir do uso dos artigos em documentos como blogues, sites e Wikipedia. Podemos avaliar quantitativamente as diferentes reações (no caso do Facebook), redes de relações e compartilhamentos dos usuários, ler os comentários e respostas, enfim, ver todo esse processo que vai da divulgação científica ao diálogo entre pares, em um olhar sobre a ciência e sua disseminação e comunicação.

Especificamente no caso do Facebook, para além dos 3C´s (curtidas, comentários e compartilhamentos), vemos também um quarto tipo de interação, que é o dos ‘chamados’, onde usuários marcam outras pessoas para as quais indicam aquele conteúdo postado. Muitas dessas facetas são ainda pouco exploradas em função das limitações das ferramentas que agregam esses conteúdos e também das próprias limitações de acesso a dados impostas pelas redes sociais. O risco que temos para a altmetria está no fechamento desses acessos e na possibilidade de não mais podermos auscultar o coração da ciência batendo e a circulação de conhecimento acontecendo no dia a dia. Mas se esse é um desafio hoje, certamente é um que estamos dispostos a achar caminhos para resolver.

Por outro lado, enquanto alguns veem as altmetrias como possíveis indicadores de impacto social, outros procuram entender a relação entre essas métricas sociais e as citações. Por exemplo, será que as altmetrias poderiam ser utilizadas para ‘prever’ o número ou a ordem de grandeza das citações recebidas por um artigo? Estudos realizados com o gerenciador de referências Mendeley indicam que, quando um artigo tem muitos ‘leitores’ no Mendeley (ou seja, muita gente salvou o artigo nas suas bibliotecas no site), tende a ter mais citações no futuro. Isso faz todo sentido quando pensamos que a maioria das pessoas no Mendeley são acadêmicos, que usam o gerenciador para organizar suas leituras e até inserir citações nos seus trabalhos. Mas essa correspondência entre altmetrias e citações nem sempre é observada em outros contextos.

Na nossa opinião, há que se transcender essa necessidade de ver a altmetria como uma resposta ao velho modelo de citações. Embora estejamos falando de métricas, do quantitativo, a riqueza inquestionável da altmetria é qualitativa. É fundamental levar em conta que o guarda-chuva ‘altmetria’ reúne dados de fontes com características muito próprias, com curvas de adoção e distribuição entre segmentos sociais e países muito distintos. Em vez de tentar reunir e normalizar todas essas fontes em um indicador único, consideramos que seria mais proveitoso entender e estudar os diferentes contextos que geram dados altmétricos.

Outro ponto importante é reconhecer os diferentes níveis de engajamento representados por cada ato nas redes sociais. Um clique no botão ‘curtir’, por exemplo, é um tipo de engajamento superficial, que pode ser uma demonstração de interesse mas demanda pouco esforço do usuário. Já um comentário, como os que vocês fizeram para nos ajudar a construir este artigo, pedem um pouco mais de energia e demonstram um engajamento maior com o conteúdo. Se queremos transformar os tais polegares e corações em indicadores, eles precisam estar refletindo mais do que mera repercussão viral e ir mais fundo. É preciso gerar um olhar macroscópico, mas também ser capaz de subsidiar uma observação e recortes temáticos, com dados também localizados para se entender melhor essa interface. É um grande desafio, mas os dados podem nos ajudar nisso.

Contra os números mágicos

Além disso, as altmetrias, assim como as demais métricas da produção científica, estão sujeitas a formas de uso equivocadas, ou mesmo fraudulentas. Porém, observamos hoje uma crescente reflexão para se buscar um uso adequado de todas as métricas, incluindo aí as provenientes de redes sociais e de acesso a conteúdos. Um dos principais exemplos desse movimento é a DORA, ou Declaração de São Francisco sobre Avaliação da Pesquisa, feita durante o Encontro Anual da Sociedade Americana de Biologia Celular, em 2012. O que precisamos sempre é fugir de números mágicos que prometem resumir em um único indicador todo o valor de uma pesquisa. Pensemos, por exemplo, no que seria de diversas áreas centrais para algumas instituições se o único foco fosse ganhar outrora citações, e hoje em dia likes? Será que isso não levaria à uma ciência midiatizada e focada em gerar notícias e não resultados concretos e sólidos de pesquisa?

Assim, é muito importante que os processos de avaliação sejam focados em uma multiplicidade de formas de se medir resultados, e que esses resultados sejam devidamente contextualizados. Mas, principalmente, o importante é identificar se a ciência que está sendo produzida é de qualidade teórico-metodológica para além da repercussão por si só. Ciência se produz construindo caminhos, com sucessos e insucessos, não é uma sequência de acertos contada em uma saga do herói. Pode ser que as altmetrias passem por um período mais ‘violento’ de interação com a ciência, com erros e acertos na sua exploração. Mas, com o tempo, cremos que o monitoramento necessário das repercussões nas mídias sociais trará mais pontos positivos que negativos.

 

Divulgação científica X ‘fakenews

As altmetrias e o monitoramento de redes sociais podem nos ajudar também no desenvolvimento de estratégias de divulgação científica. Nas plataformas da web social, cientistas e não-cientistas compartilham o mesmo espaço, e há cada vez mais oportunidades para a disseminação de informação e para o diálogo. Mas a pseudociência e as chamadas ‘fakenews’ também encontram nessas plataformas um terreno fértil para se propagar. Dar acesso à informação é importante, mas não é necessariamente a solução. Precisamos aproximar ao máximo a ciência dos demais ramos da sociedade.

Para auxiliar nessa aproximação, o uso da altmetria deve ir além da simples contagem de curtidas e compartilhamentos. E isso já é possível: ferramentas como a da Altmetric.com ou a da ImpactStory.org permitem aos cientistas acompanhar a repercussão social de seus artigos. É possível ver que perfis se interessaram pelo seu trabalho e o que estão dizendo, abrindo caminho para uma interação mais direta com o público, sanando dúvidas e fomentando colaborações.

Com o monitoramento de mídias, é possível identificar os temas ‘quentes’ do momento e planejar intervenções eficazes, que levem em conta as características específicas do público que se quer atingir e da plataforma onde acontece a discussão. Mas o mais importante para a divulgação científica é entender que pequenas mudanças são grandes mudanças e que a construção de uma sociedade informada e com competência nos temas de ciência demora tempo, porém a qualidade do exercício de cidadania resultante no futuro vale muito a pena!

Fábio Castro Gouveia
Museu da Vida, Casa de Oswaldo Cruz,
Fundação Oswaldo Cruz

Iara Vidal Pereira de Souza
Doutoranda em Ciência da Informação
Universidade Federal do Rio de Janeiro

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