A cachaça é a bebida alcoólica tradicional brasileira, feita a partir da destilação do sumo (mosto) fermentado obtido do caldo de cana-de-açúcar. É o segundo destilado mais consumido no Brasil – e o terceiro no mundo.
A produção brasileira de cachaça é feita por cerca de 40 mil produtores – em torno de 98% dela vêm de pequenas e microempresas. O volume anual é estimado em 1,4 bilhão de litros, com 70% dele correspondendo à cachaça industrial (ou cachaça de coluna), e o restante, à cachaça de alambique (figura 1). Mas se exporta só cerca de 1% da produção nacional.
Pesquisas relevantes sobre o processo de produção da cachaça começaram a ser feitas principalmente a partir do ano 2000. Os principais trabalhos tinham como tema os microrganismos responsáveis pelo processo fermentativo, os compostos químicos responsáveis pelo aroma e sabor da bebida, bem como os contaminantes presentes no destilado.
Esses estudos mostraram que a produção da bebida envolve não só processos complexos, mas também únicos, se comparados aos de outras bebidas. Esses trabalhos ajudaram a criar uma base de dados científicos que tem ajudado a dar identidade única à cachaça em relação a outras bebidas fermentadas e destiladas.
A fermentação é conduzida principalmente pela levedura Saccharomyces cerevisiae – leveduras são organismos unicelulares do reino dos fungos. Em regiões mais quentes, outra levedura, Schizosaccharomyces pombe, pode ter papel importante nesse processo.
Como o caldo de cana não é esterilizado, estão também presentes nele bactérias que produzem ácido acético ou ácido lático. Esses microrganismos podem contribuir com produtos responsáveis pelo aroma e sabor da cachaça, mas eles têm um lado indesejável: podem contaminar a fermentação, por meio da produção elevada de compostos que aumentam a acidez do fermentado, tornando a bebida inadequada para consumo.
Estudos mostram que, em um único recipiente (dorna) de fermentação, pode haver diversas linhagens de S. cerevisiae. Isso significa que, em uma mesma destilaria, diferentes dornas podem produzir cachaças com aromas e sabores distintos.
A diversidade de linhagens de S. cerevisiae ocorre até em destilarias onde uma única linhagem é usada para iniciar a fermentação. Como a fermentação dura entre 20h e 24h – e o processo é repetido diariamente, ao longo dos meses de produção –, linhagens ‘naturais’ (ou indígenas) dessa levedura podem não só passar a dominar o processo, mas também provocar o desaparecimento da linhagem inicial.
Estudo publicado em 2018 mostrou que as linhagens de S. cerevisiae responsáveis pela fermentação da cachaça são originárias de linhagens europeias vínicas – ou seja, provenientes da produção de vinho –, introduzidas, no Brasil, com o plantio da uva.
As linhagens vínicas dessa levedura são consideradas ‘domesticadas’, por terem acompanhado os humanos desde o início da fabricação do vinho. As análises do material genético (genoma) dessas leveduras mostraram que as linhagens vínicas são diferentes daquelas dos S. cerevisiae presentes naturalmente em cascas de árvores, como os carvalhos na Europa e em outras regiões de clima temperado no mundo.
Os genomas das S. cerevisiae de cachaça também são únicos: formam um ramo evolutivo (filogenético) completamente diferente daquele de outras linhagens da espécie. Com isso, é possível concluir que, nestes mais de 400 anos de produção de cachaça no Brasil, com ciclos diários de fermentação, as populações de S. cerevisiae divergiram das linhagens parentais vínicas, formando um agrupamento único, diferente também de linhagens presentes no meio ambiente ou usadas na produção de cerveja, pão ou saquê – este último, vinho de arroz de origem japonesa.
Portanto, um segundo processo de domesticação das linhagens de S. cerevisiae ocorreu na cachaça, dando origem às populações atuais dessa levedura no Brasil.