Mesmo com pouca ou nenhuma base científica, o senso comum costuma associar, neste século 21, o uso de aplicativos de encontro ao número crescente de casos de HIV (vírus da imunodeficiência humana) e de mortes por coinfecção com a tuberculose entre homens que fazem sexo com homens. Mas essa conexão entre as novas tecnologias, nossas relações e as dinâmicas de transmissão do HIV realmente existe? Em caso positivo, como isso se daria? Responder a essas perguntas é fundamental para atualizar o conhecimento sobre a questão e possibilitar um diálogo real com as pessoas que vivem em situações de vulnerabilidade.
Homens que fazem sexo com homens (HSH) é um termo introduzido em 1992 para tentar compreender uma série de comportamentos sexuais entre homens e evitar a caracterização apenas por orientação sexual (homossexual, bissexual, heterossexual ou gay). Os HSH incluem homens identificados como gays, homens heterossexuais que fazem sexo com homens, homens bissexuais, profissionais do sexo masculinos, homens envolvidos nesses comportamentos em todos os ambientes (como prisões) e a rica e ampla variedade de identidades e termos tradicionais para esses homens.
Antes de analisar comportamentos contemporâneos, no entanto, é preciso voltar no tempo para revisitar a trajetória da epidemia de Aids (síndrome da imunodeficiência adquirida), evento que mobilizou o mundo como poucos, seja por seu dano à saúde (degeneração do sistema imunológico, que deixa os pacientes indefesos à menor das infecções), sua clínica complexa (infecção por um retrovírus altamente mutável, até hoje sem uma cura concreta) ou por sua capacidade de nos fazer repensar aspectos tão íntimos em nossas estruturas sociais, como o sexo.
Em 2020, o Dia Mundial de Combate à Aids, criado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 1987, completa 33 anos. O cenário hoje, porém, é diferente daquele vivido no epicentro da infecção, que, até 1989, matou 89.343 pessoas, mais do que a Guerra do Vietnã, na qual 58.318 soldados sucumbiram.
Esses milhares de casos, no entanto, nunca foram distribuídos igualmente entre a população, com um corte histórico-político-social relacionado à população LGBTI+. Mais especificamente, no auge da epidemia, nos anos 1980, se associava a doença a gays e travestis, uma vez que os primeiros relatos da Aids apareceram, há 40 anos, com a descrição de casos de jovens homossexuais saudáveis que, subitamente, desenvolveram pneumonia. Reconhecer essas iniquidades é fundamental para compreender a infecção e a saúde como um todo.
A ideia de que o advento da terapia antirretroviral de alta eficácia, ainda conhecida como ‘o coquetel’, seja suficiente para reduzir sozinha a incidência da doença não se sustenta, mesmo que esteja presente no senso comum. Basta verificar os números de novos casos, que ainda crescem no Brasil, revelando uma epidemia descontrolada. E, mais uma vez, os homens que fazem sexo com homens (HSH), principalmente os mais jovens e os mais velhos, são grande parte das pessoas afetadas. Fica a pergunta: até que ponto realmente avançamos nestas últimas décadas?
Existem alguns fatores que contribuem para esses homens ainda figurarem entre os mais afetados pela infecção. Esses fatores podem ser classificados em três níveis: individual, social e programático.
O nível individual está relacionado a aspectos intrínsecos, como idade, ser sexualmente ativo, ter uma prática sexual anal (que possui uma chance de transmissão do vírus maior do que a vaginal ou oral, por exemplo; em parte pela maior chance de sangramento) e um nível de informação insuficiente para se proteger.
No nível social, está a homofobia, que impede um diálogo aberto sobre saúde sexual e fragiliza a disseminação de informações sobre a prevenção combinada.
Os fatores programáticos dizem respeito ao papel dos órgãos e unidades de saúde pública em prover um serviço adequado a essa população. Quando essas estruturas governamentais não têm conhecimento sobre práticas e como se dão as relações entre esses homens, torna-se quase impossível oferecer assistência de qualidade. Em muitos casos, esses serviços reproduzem a homofobia e a sorofobia que afasta ainda mais a comunidade LGBT.
Diante desses fatores, fica claro que é preciso superar esses obstáculos e o desconhecimento sobre esse grupo de pessoas. Daí a necessidade, em tempos de relações pessoais tão digitais, de investigar a vulnerabilidade ao HIV/Aids de homens que fazem sexo com homens (HSH) e que são usuários de aplicativos de encontros.
Para reduzir essa lacuna, foi conduzida uma pesquisa para avaliar as vulnerabilidades e as experiências de HSH usuários de aplicativos de encontro à infecção pelo HIV. Esses resultados compõem a dissertação de mestrado: ‘HIV vulnerability of men who have sex with men users of geossocial dating applications’, defendida na Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (EERP-USP). O estudo compõe o macroprojeto: ‘Comportamentos, práticas e vulnerabilidades de homens que fazem sexo com homens usuários de aplicativos geossociais para encontros’, que envolve a EERP e as universidades federais do Piauí (UFPI) e Fluminense (UFF), que desde 2017 investigam mais de dois mil HSH em todo o Brasil, com manuscritos publicados em outros periódicos nacionais e internacionais.
Até pouco tempo atrás, sequer havia estudos brasileiros sobre o tema. Foi necessário fazer uma revisão extensa da literatura científica mundial. Após analisar 850 artigos, foi possível sintetizar várias realidades e evidências científicas sobre o assunto.
Uma dessas realidades, talvez, seja surpreendente para muitos: em aplicativos de encontro e também nos relacionamentos travados a partir deles, há aspectos que aumentam o risco de infecção, mas outros que contribuem, sim, para a prevenção.
Entre os que elevam a possibilidade de contaminação por HIV, estão o chamado chemsex (uso de drogas para prolongar o ato sexual e o prazer), a probabilidade de aumentar o número de parceiros sexuais e o conhecimento insuficiente dos usuários sobre o HIV e sua prevenção.
Por outro lado, os usuários que usam os aplicativos por mais tempo tendem a se proteger melhor. Nesse ambiente, também é possível ter mais informação sobre o parceiro, o que permite uma negociação melhor. Além disso, muitos aplicativos já criaram novas ferramentas que deixam a conversa sobre prevenção mais fácil e aberta. Da mesma forma que há espaços para informar peso e altura, também é possível indicar na maioria deles o status para o HIV (positivo, negativo, negativo em PREP – ou seja, quem está passando pela profilaxia pré-exposição ao HIV com medicamentos antirretrovirais – e positivo indetectável), além de encontrar perfis verificados de embaixadores que servem como canais de disseminação de informação.
Para conhecer melhor a realidade brasileira, foram feitas entrevistas com 30 homens de duas cidades diferentes, nas quais foi possível conhecer suas experiências e entender como os aplicativos afetam sua vida sexual. A conclusão foi que a interface do usuário com os aplicativos permite formar um ambiente híbrido, em que se destacam os ideais de praticidade, anonimato e conveniência, permitindo conhecer outros parceiros com mais segurança, na tentativa de fugir de situações de homofobia e violência, além de gerir e revelar a identidade sexual de forma personalizada.
De certa forma, os aplicativos são percebidos como uma evolução das antigas salas de bate-papo on-line, comuns nos anos 2000. Pessoas LGBT+ sempre se aliaram à internet para buscar proteção, seja para manter discrição quanto a suas identidades ou para se conectar e formar comunidades. Hoje, os aplicativos também permitem moldar esses espaços seguros.
As entrevistas mostraram também que a prevenção ao HIV é baseada, quase que exclusivamente, na camisinha, o que pode estar de acordo com as políticas públicas das últimas décadas, mas não é o suficiente para garantir a proteção. Centrar todo o potencial de prevenção em um único item torna esse objetivo muito frágil. Uma vez removido o preservativo da equação, fica-se sem opções, já que os entrevistados revelaram pouco conhecimento sobre PEP (profilaxia pós-exposição, baseada em medicamentos antirretrovirais prescritos depois de possível exposição ao HIV) e PREP (profilaxia pré-exposição ao HIV).
Esse desconhecimento de alternativas demonstra como tentar aplicar uma lógica heterossexual para todos os relacionamentos não funciona. É necessário conhecer a vida e história de pessoas LGBTI+ para criar estratégias de prevenção que se adequem a esse grupo, e não fazer com que esse se adapte ao comportamento considerado padrão.
Com esses dados preliminares, a pesquisa caminhou para a próxima etapa, em que foram analisados 2.250 homens, em todas as cinco regiões brasileiras. A partir daí, foi possível traçar um perfil desses homens que fazem sexo com homens e são usuários de aplicativos. A maioria são jovens de até 25 anos, universitários, que se identificam como gays e adotam um posicionamento versátil, utilizando os aplicativos todos os dias, em busca de sexo principalmente. A exceção são os usuários do Tinder, no qual o comportamento é diferente.
Entre os usuários acima de 50 anos, um dos subgrupos com maior número de novos casos, foi revelada uma realidade preocupante: quase metade deles nunca se testou para o HIV. Compreender essa realidade nos remete para o início da infecção, em que o medo instaurado da Aids fazia com que muitos não se testassem, seguindo o ditado de “quem procura acha”. Infelizmente, esse grupo não é alvo de campanhas. No entanto, existem, sim, homens gays idosos e que fazem sexo; um quarto dos entrevistados revelou ter feito sexo anal no último mês. Esse dado reforça a ideia de que um serviço de saúde que não conhece a realidade de sua população não oferece cuidado adequado.
Entender a saúde sexual vai além do HIV. A pesquisa mostra que menos de 20% dos HSH estão vacinados contra a hepatite B, uma doença que também pode ser transmitida sexualmente. Quando comparados aos dados da população geral do Brasil, o número de HSH com a doença é, aproximadamente, 2,5 vezes maior, o que demonstra uma lacuna na atenção às pessoas LGBTI+. Não se pode ignorar a complexidade dos indivíduos e reduzir as políticas somente à prevenção ou ao tratamento do HIV.
Seria cômodo apontar os aplicativos como os vilões e responsáveis pelo aumento de casos de HIV/Aids. No entanto, como toda plataforma digital, eles apenas refletem e potencializam problemas do mundo analógico. Seu potencial para ser uma ferramenta no combate às doenças sexualmente transmissíveis pode, e deve, ser mais bem explorado. Mas isso só será possível quando as políticas públicas se dedicarem a conhecer a realidade da comunidade LGBTI+.
Artur Acelino Queiroz
Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto,
Universidade de São Paulo e
Escola Nacional de Saúde Pública,
Universidade Nova de Lisboa
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Marcos Silva
Gostei muito da matéria
Oliveira do Carmo de Moura
Gostaria de inserir no grupo
Rosalvo Pedro Tavares Filho
eu sou soropositvo a mais de 20 anos tenho 55 anos e estou bem não tenho problemas em tomar meus remédios diariamente eu desejo a todos que estejam na mesma situação que eu tome seus medicamentos e da pra viver uma vida normal