Curadoria digital em arquivos, bibliotecas e museus

Casa de Oswaldo Cruz
Fundação Oswaldo Cruz

Arquivos, bibliotecas e museus têm um papel importante na preservação e na disseminação de conhecimentos registrados em diferentes formatos. Com o avanço da internet e o crescimento de acervos digitais, surge uma nova área de pesquisa e práticas chamada ‘curadoria digital para a gestão ativa, o acesso e a preservação ao longo de todo ciclo de vida dos acervos digitais’. O objetivo é tornar os objetos digitais acessíveis para um público maior e disponíveis para gerações futuras.

CRÉDITO: FOTO ADOBE STOCK

Arquivos, bibliotecas e museus exercem um papel importante na preservação e na disseminação de conhecimentos e saberes produzidos pela sociedade que estão registrados em diferentes formatos, como livros, documentos, obras de arte, vídeos, fotografias, entre outros. 

Tais lugares coletam, organizam, preservam e dão acesso a esses registros para fins culturais, educacionais ou de pesquisa. Eles também podem ser reconhecidos como instituições de cultura e memória ao contribuírem para a construção de identidades e memórias por meio da disponibilização de parte de testemunhos e representações do passado de determinados grupos sociais. 

Com o desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação, em especial da internet, cresceu a necessidade de disponibilizar acervos arquivísticos, bibliográficos e museológicos no ambiente virtual, especialmente durante a suspensão das atividades presenciais decorridas das medidas de distanciamento social adotadas por causa da pandemia de covid-19. 

Em 2021, segundo dados do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), 81% da população brasileira com 10 anos ou mais era usuária da internet. Desses, cerca de 40% a utilizaram para realizar pesquisas escolares ou estudar por conta própria, 54% leram jornais, revistas ou notícias, e somente 10% viram exposições ou visitaram museus virtuais. 

No entanto, apesar de a maior parte da população brasileira fazer uso da internet, a desigualdade no acesso ainda persiste. Entre a população de baixa renda, é expressivo o número de usuários que acessam a internet somente pelo celular ou não que possuem banda larga. Nesse cenário, também cabe a essas instituições de cultura e memória, principalmente às bibliotecas públicas, escolares e comunitárias, promover a inclusão digital.

Apesar de a maior parte da população brasileira fazer uso da internet, a desigualdade no acesso ainda persiste

Acesso virtual em maior escala

No contexto de maior demanda por serviços on-line, alguns arquivos, bibliotecas e museus estão digitalizando seus acervos analógicos para possibilitar o acesso virtual para pessoas de diferentes regiões do país e do mundo ao mesmo tempo. 

Além de promover o acesso, a digitalização contribui para a preservação física dos documentos, uma vez que reduz o manuseio físico desses itens. O aumento do número de acervos digitalizados, também chamados ‘representantes digitais’, está sendo acompanhado do crescimento de objetos nato-digitais, ou seja, aqueles que já ‘nascem’ digitais.

Além de promover o acesso, a digitalização contribui para a preservação física dos documentos, uma vez que reduz o manuseio físico desses itens

A transição do formato analógico para o formato digital impõe a essas instituições mudanças nos seus processos de trabalho de modo a preservar, agregar valor e tornar os acervos digitais acessíveis para a sociedade e gerações futuras.

Diante desse desafio, surge uma nova área de pesquisa e práticas denominada de curadoria digital. De natureza interdisciplinar, essa área conta com a contribuição de diversos campos do conhecimento para promover a gestão ativa, o acesso e a preservação ao longo de todo ciclo de vida dos acervos digitais.

O termo ‘curadoria digital’ foi utilizado pela primeira vez em 2001 e, ao longo dos anos, foram desenvolvidos diversos modelos. Entre eles, o modelo proposto em 2008 pelo Digital Curation Centre – DCC (em português, Centro de Curadoria Digital) é um dos mais utilizados. 

Apesar de a área ter sido pensada inicialmente para dados coletados ou gerados em pesquisas científicas, ela também está sendo aplicada pelos arquivos, bibliotecas e museus para promover o acesso e a preservação dos seus acervos. Por meio da utilização de técnicas de curadoria digital, por exemplo, é possível que uma inteligência artificial ou uma pessoa organize, recupere, atribua valor, acesse e difunda os objetos digitais. 

Cabe destacar que o termo ‘curadoria’ não é novo. Ele já era usado por algumas instituições de cultura e de memória, principalmente pelos museus, para indicar o trabalho dos curadores que atuam na supervisão e no desenvolvimento das atividades de aquisição, pesquisa, organização, preservação e difusão de acervos analógicos.

Curadoria digital

Entre as etapas da curadoria digital aplicadas aos arquivos, bibliotecas e museus, destacam-se:

  • ETAPA 1. Planejar, estabelecer diretrizes e criar objetos nato-digitais ou representantes digitais por meio da digitalização, ou seja, da conversão do documento e do objeto produzido em mídia analógica para a digital;
  • ETAPA 2. Descrever os objetos nato-digitais ou os representantes digitais por meio da atribuição de metadados descritivos, administrativos e estruturais. Entendem-se como metadados as informações estruturadas que descrevem e permitem a recuperação, a utilização e o gerenciamento dos objetos digitais;
  • ETAPA 3. Estabelecer diretrizes de acesso e uso aos objetos digitais, conciliando a legislação de direitos autorais, da personalidade e de proteção de dados pessoais ao direito constitucional de acesso à informação, à cultura e à educação; 
  • ETAPA 4. Estabelecer diretrizes de preservação digital por meio de uma política institucional;
  • ETAPA 5. Avaliar, selecionar e transferir os objetos digitais para um repositório digital confiável para preservação a longo prazo;
  • ETAPA 6. Descartar, caso necessário, os objetos não selecionados para preservação digital de longo prazo;
  • ETAPA 7. Disponibilizar os objetos digitais ao público de acordo com as diretrizes de acesso e uso previamente definidas;
  • ETAPA 8. Desenvolver e aplicar estratégias de difusão cultural para fazer conhecer, estimular o acesso e promover a valorização dos acervos digitais. 

Assim, a curadoria digital envolve a escolha dos documentos que devem ser digitalizados ou criados e que devem ser preservados para o acesso pelas gerações futuras. Ao reconhecermos que a memória e a história também são campos de disputas pela decisão do que deve ser lembrado, os profissionais que atuam nessas instituições de cultura e memória (arquivistas, bibliotecários, documentalistas, historiadores e museólogos) devem incluir representantes de grupos populares no processo de curadoria, em especial nas decisões sobre seleção e descarte. Desse modo, não ficarão disponíveis para gerações futuras somente os registros de saberes e conhecimentos produzidos por grupos dominantes.

A curadoria digital envolve a escolha dos documentos que devem ser digitalizados ou criados e que devem ser preservados para o acesso pelas gerações futuras

O processo de digitalização

A digitalização é um processo que envolve diferentes áreas e o uso de equipamentos, softwares e hardwares que contribuem para a presunção de autenticidade, fidedignidade e integridade dos representantes digitais. É recomendado que a imagem capturada digitalmente seja o mais fiel possível do documento analógico, e que se levem em consideração as características físicas e o estado de conservação do documento, bem como a finalidade de uso do representante digital.

Os objetos devem ser disponibilizados em bases de dados na internet para serem acessados pelo público em geral. Entretanto, para que isso ocorra, é necessário que eles sejam descritos de forma que promovam a recuperação dos acervos pelo público e o intercâmbio de dados entre as diferentes instituições. Entre os formatos de metadados mais utilizados para a descrição de objetos digitais, destaca-se o Dublin Core. 

Conforme as orientações da Federação Internacional de Associações e Instituições Bibliotecárias (IFLA), alguns princípios devem reger o processo de descrição dos acervos digitais, sendo o principal deles o interesse do usuário. Isto é, as descrições devem ser compreensíveis e adequadas para as pessoas ou os grupos que buscam os objetos digitais.

Alguns princípios devem reger o processo de descrição dos acervos digitais, sendo o principal deles o interesse do usuário. Isto é, as descrições devem ser compreensíveis e adequadas para as pessoas ou os grupos que buscam os objetos digitais

Outro ponto importante a ser observado no processo de curadoria digital são as limitações de reprodução e de disponibilização dos acervos devido à Lei de Direitos Autorais (Lei nº 9.610/1998) e Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei nº 13.709/2018), além das restrições de uso de imagem e voz de terceiros previstas no Código Civil. Os arquivos, bibliotecas e museus, portanto, devem buscar alternativas para equilibrar o respeito e a proteção dos direitos autorais, de personalidade e de proteção dos dados pessoais e o direito público de acesso à informação e à cultura. 

Devido às mudanças tecnológicas e à fragilidade dos suportes digitais, a definição e a aplicação das estratégias de preservação digital devem promover o acesso contínuo aos acervos digitais pelo tempo que for necessário. Para tal, pode-se adotar como modelo conceitual de referência de preservação digital o Sistema Aberto de Arquivamento de Informação (em inglês Open Archival Information System – OAIS). 

Atualmente, o OAIS é reconhecido como uma norma internacional pela International Organization for Standardization (ISO) 14721:2012. É fundamental, ainda, implementar um repositório digital confiável baseado no OAIS para auxiliar na preservação digital de longo prazo, como o Archivematica e o RODA. 

As etapas de disponibilização e difusão cultural também devem prever o acesso às pessoas com deficiências ou com necessidades específicas, incluindo deficiência visual, auditiva, física, intelectual, entre outras. Para tal, as instituições podem seguir algumas diretrizes de acessibilidade para conteúdo web. Indica-se também, sempre que possível, disponibilizar os metadados e os objetos digitais através de licenças livres, com a única exigência de que os autores das obras sejam citados.

As etapas de disponibilização e difusão cultural também devem prever o acesso às pessoas com deficiências ou com necessidades específicas, incluindo deficiência visual, auditiva, física, intelectual, entre outras

Em resumo, a curadoria digital é um processo complexo que envolve a identificação, a seleção, a organização, a descrição, a preservação, a divulgação e a difusão de acervos digitais. As etapas elencadas anteriormente visam a garantir a gestão ativa dos objetos digitais, torná-los acessíveis para um público maior e disponíveis para gerações futuras. A curadoria digital é, portanto, fundamental para a preservação dos saberes e conhecimentos produzidos pela sociedade, sendo uma prática indispensável para arquivos, bibliotecas e museus na atualidade.

Comitê Gestor da Internet no Brasil. Pesquisa sobre o uso das tecnologias de informação e comunicação nos domicílios brasileiros [livro eletrônico]: TIC Domicílios 2021. São Paulo: CGI.br, 2022. 

Disponível em:

https://www.cgi.br/media/docs/publicacoes/2/20221121125504/tic_domicilios_2021_livro_eletronico.pdf. Acesso em: 20 abr. 2023.

International Federation of Library Associations and Institutions. Declaração dos Princípios Internacionais de Catalogação (PIC). Haia: IFLA, 2016. 

Disponível em: https://repository.ifla.org/bitstream/123456789/89/1/icp_2016-pt.pdf.  Acesso em: 20 abr. 2023.

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