Rio de Janeiro, 17 de maio de 1888. Passados quatro dias desde a assinatura da lei que declarou extinta a escravidão no Brasil, a Gazeta de Notícias seguia enchendo páginas inteiras do jornal sobre o tema. Naquela quinta-feira, o Campo de São Cristóvão seria tomado por uma multidão durante a celebração da Missa Campal em Ação de Graças pela abolição, e as pessoas, em suas semelhanças e diferenças, pareciam não querer interromper as atividades comemorativas. A rotina de trabalhadores e estudantes estava bastante alterada. Com muitos expedientes sendo encerrados mais cedo, a Rua do Ouvidor se enchia de gente em festa bem antes do pôr do sol. Para o domingo seguinte, outra grande manifestação pública já estava agendada na capital do Império e prometia mais agitação.
Para além da princesa Isabel, de parlamentares e escravistas contrariados, bastante gente naqueles dias se sentia participante da História ou, digamos, de um momento digno de se fazer lembrar pelas gerações futuras. Pessoas que tinham muito o que contar sobre os caminhos da liberdade e da cidadania no país, que há tempos vinham disputando os significados e as expectativas sobre o que estava acontecendo naquele momento. Entre elas, havia uma expressiva quantidade de mulheres e homens “de cor” escura, em sua maioria nascidos livres ou vivendo na condição de libertos.
Talvez a figura mais conhecida desse grupo e sempre lembrada nos livros didáticos seja José do Patrocínio, mas ele não era o único abolicionista negro. Se naquele 17 maio, um grupo de “amadores da arte dramática” anunciava a ocupação das dependências da Cidade do Rio para a preparação de um espetáculo intitulado “José do Patrocínio”, cuja renda seria aplicada na compra de “uma medalha de honra ao denodado batalhador da causa da redenção dos cativos” e editor-chefe da Gazeta de Notícias, havia muito mais coisas acontecendo. Dois dias antes, a Sociedade dos Cucumbis Carnavalescos tinha se reunido e deliberado “que quatro comissões angariassem donativos para auxiliar os festejos iniciados pela Sociedade Cooperativa da Raça Negra”. Esse, aliás, era um desdobramento da reunião feita às vésperas do 13 de Maio entre “os delegados de diversas corporações de descendentes da mesma raça, a fim de deliberarem sobre os meios de agradecer àqueles que trabalharam para o acontecimento glorioso”.
Trata-se de uma presença atestada em diversos registros da época, de modo que, atualmente, a atuação de abolicionistas negros, afora outros temas próximos, tem ganhado cada vez mais atenção de historiadores e cientistas sociais. As pesquisas acabam por se debruçar sobre os projetos de liberdade e de nação formulados por esses indivíduos; suas origens e estratégias de atuação, os caminhos que tomaram depois da abolição etc. São experiências que nos ajudam a redimensionar certas verdades sobre a história.
Estamos falando de postulados que, repetidos de modo automático ao longo de décadas, têm nos afastado de tão fatos relevantes quanto aqueles incorporados ao senso comum. Por exemplo, sabemos que o Brasil foi a última nação do continente americano a abolir a escravidão, em 1888. Isso, de um jeito ou de outro, tem sido tratado como algo lamentável. O que muitos ignoram é que, desde o início do século 19, o país também respondia pela maior população de gente negra livre e liberta das Américas. Além disso, de acordo com o censo de 1872, para cada dez pretos e pardos, seis desses indivíduos viviam legalmente na liberdade.
No diálogo do presente com o passado, saber como se vivia nessa condição no período do governo monárquico deveria ser tema do maior interesse, ainda mais neste momento em que cotidianamente casos e mais casos de racismo são denunciados nas redes sociais, na imprensa e em outros espaços públicos, apontados como prova de desrespeito aos valores republicanos. Mesmo assim, há quem mantenha a dúvida: a verdadeira desigualdade no Brasil não é de classe?
A despeito dos esforços para desviar do incontornável, a ação de intelectuais-ativistas dos diferentes segmentos do Movimento Negro e a renovação de pesquisas acadêmicas fizeram com que o mito da democracia racial não sobrevivesse imaculado à passagem para o século 21. Dados estatísticos oficiais, ademais, demonstram que negros e não negros acessam direitos, bens e serviços de modo desigual. Existe, portanto, um problema racial que precisa ser pensado em sua historicidade e os termos desse debate devem ser compartilhados.
Se nem tudo era cativeiro e grilhões no século 19, por que nos parece estranho associar pessoas negras aos lugares sociais da liberdade? Uma vez que a maioria da população de origem africana já estava livre quando da promulgação da Lei Áurea, a ideia de uma abolição inacabada daria conta da complexidade da pergunta anterior? O problema estaria no episódio da abolição? Três séculos de um sistema socioeconômico que absorveu o maior contingente de africanos/as escravizados/as do lado de cá do Atlântico poderia, por uma disposição natural da brasilidade, ter resultado numa sociedade racialmente harmônica, livre de “preconceito de cor” ou “ódio de raça”? Como foi ou é possível acreditar nisso? O que a nossa dificuldade em pensar para além da escravidão, com detalhes e alguma precisão, tem a ver com a naturalização/negação do racismo em nossas políticas de memória e na própria organização social antes e depois da abolição?
A liberdade “não veio do céu, nem das mãos de Isabel”, bradou em forma de samba a Estação Primeira de Mangueira na Marquês de Sapucaí no carnaval de 2019, chamando a atenção para as fragilidades da narrativa histórica por muito tempo reproduzida nos currículos oficiais das nossas escolas públicas e particulares. Os versos, que convocam à escuta de vozes silenciadas, estabelecem fina sintonia com as disputas intensificadas no campo do ensino de história desde a década de 1980, em defesa da representatividade de diferentes sujeitos sociais.
Essas lutas resultaram, entre outras conquistas, na promulgação das Leis n. 10.639/2003 e 11.645/2008, que instituíram a obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana, afro-brasileira e indígena em toda rede da educação básica, gerando, portanto, demandas no âmbito da formação de professores. Tais dispositivos legais atualizaram a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, mais conhecida pela sigla LDB (Lei n. 9394/1996), que segue em vigência e autorizando professores a, no exercício de sua autonomia profissional, renovar e inovar práticas didáticas.
Nesse sentido é que o trabalho com fontes documentais em sala de aula se confirma como um valioso recurso para a promoção desse letramento histórico atualizado e da reeducação das relações étnico-raciais solicitada na legislação. Graças a bases de dados digitais como a Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, docentes de diferentes partes do país têm condições básicas para promover esse diálogo crítico sobre os conteúdos juntamente com estudantes.
Entre essas múltiplas possibilidades, a edição da Gazeta de Notícias,citada no início deste texto, nos serve como um bom parâmetro do que está disponível. Nela, encontramos uma série de vestígios acerca de articulações antiescravistas e antirracistas que, associados ao que está em outros periódicos compartilhados na mesma plataforma, nos levam a projetos de liberdade protagonizados por muito mais pessoas que aquelas já incorporadas nos melhores livros didáticos recentes.
A Sociedade Cooperativa da Raça Negra, por exemplo, foi uma organização fundada em 8 de abril de 1888, por um grupo de quinze homens negros presidido por Estevão Roberto da Silva, pintor e professor do Liceu de Artes e Ofícios, de associações de artistas e operários da cidade do Rio de Janeiro. A organização anunciava ter propósitos muito bem definidos, a saber: “encaminhar os descendentes da raça africana ao trabalho, criando […] para isso um registro onde serão lançadas as pessoas desempregadas com as suas respectivas profissões e com o maior número de informações que possam ser colhidas”; “promover a instrução primária, comercial, artística e agrícola”; e, a fim de garantir sustentabilidade às atividades de auxílio mútuo, fundar “uma caixa beneficente e uma funerária com 15% da renda” (Cidade do Rio, 11 de abril de 1888).
Na contramão das teorias raciais que legitimavam investidas contra a humanidade de trabalhadores negros, a organização buscava combater o desemprego e fortalecer a capacitação tecnológica entre esse segmento populacional. Desautorizava, portanto, o argumento de que a gente negra era carente de habilidades para atuar no mercado de trabalho livre, até porque o capitalismo não passava por uma profunda e instantânea transformação em seu funcionamento no Brasil. A valorização de segmentos profissionais específicos, como os artífices e os ligados ao comércio e à agricultura, sugere que a organização tentava se contrapor a estratégias de exclusão racial já em curso, a exemplo das políticas de imigração de trabalhadores europeus, em substituição da mão-de-obra escravizada.
Outro fato interessante é que Estevão da Silva era amigo do destacado abolicionista negro José do Patrocínio, aquele que seria homenageado pela turma do teatro. Num episódio repleto de tensionamentos por volta de 1879 e 1880, avistamos provas dessa amizade. Chamado Diamante Negro, Estevão ficou conhecido como o primeiro estudante “de cor” a se destacar na Academia Imperial de Belas Artes. Todavia, sua trajetória na instituição não foi de puro acolhimento. Por pouco não foi até mesmo expulso da instituição após se manifestar contrário ao que considerou ser uma premiação injusta à qualidade do seu trabalho. Negou-se a receber uma medalha de prata das mãos do Imperador Pedro II.
A atitude irritou o colegiado de professores que, apesar do desejo de expulsão sumária, disse tomar “em conta de circunstância atenuante ainopia intelectual do aluno delinquente”, e deu a Estevão da Silva um ano de suspensão (Gazeta da Noite, 1º de março de 1880). Em resposta a tamanho constrangimento, José do Patrocínio foi um dos que acudiram o amigo, destinando a renda obtida em uma conferência para a ajudá-lo a terminar os estudos na Europa, se fosse o caso. Mas, acabou que Estevão ficou pelo Brasil mesmo, trabalhando e atuando como um companheiro de Patrocínio nas lutas contra a escravidão, como vimos na Gazeta de Notícias.
Não foi por falta de assunto que múltiplas presenças negras estiveram subdimensionadas ou mesmo ausentes nas narrativas sobre a abolição e outros momentos da História do Brasil. Se, por um lado, já ficou evidente o quão rasa foi a valorização personalista da figura da princesa Isabel; por outro, sabemos que o reconhecimento da importância de Zumbi e do Quilombo dos Palmares é apenas uma porta de entrada. Diante do compromisso assumido com a educação nacional, não interessa substituir uma simplificação por outra. Há, por certo, ainda muito trabalho a fazer para resolver esse problema do apagamento das vidas e lutas negras na memória coletiva. Seja como for, mais uma vez é tempo de falar em liberdade!
Ana Flávia Magalhães Pinto
Departamento de História
Universidade de Brasília
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