Universidade Federal do Rio de Janeiro
CRÉDITO: FOTOS ADOBE STOCK
Morder um chocolate e falar que a guloseima é uma delícia, em meio a suspiros de deleite, pode ser considerado um pleonasmo pelos falantes mais puristas da língua portuguesa. Além disso, já sabemos que a felicidade contida em uma barra de chocolate não é fruto apenas de seu aroma irresistível, da sua textura agradável ou do seu sabor inconfundível para o nosso paladar. O consumo desse alimento pode favorecer a produção de um importante neurotransmissor, a serotonina. Associada a sensações de prazer, essa substância está ligada a importantes funções cerebrais, e modula processos comportamentais como aqueles ligados ao humor, à memória e à resposta a situações de estresse.
O elo entre o chocolate e a serotonina se dá por meio de um aminoácido, o triptofano. Abundante no chocolate, ele é utilizado pelo nosso organismo como material de partida para a produção da serotonina.
Porém, você sabia que esse mesmo aminoácido é utilizado por plantas para a produção de um potente veneno, a estricnina?
Introduzida no imaginário popular pelas histórias de Agatha Christie (1890-1976) e Arthur Conan Doyle (1859-1930), a estricnina é obtida, principalmente, a partir das sementes de uma árvore nativa da Ásia, a Strychnos nux-vomica, e foi isolada pela primeira vez em 1818. No entanto, sua complexa estrutura química só foi elucidada em 1946, pelo cientista britânico Robert Robinson (1886-1975) e confirmada no ano seguinte, de forma independente, pelo cientista norte-americano Robert B. Woodward (1917-1979). Na época, a molécula foi considerada a mais complexa do mundo.
Em 1954, Woodward conseguiu o notável feito de preparar a estricnina em um laboratório. No entanto, os detalhes de como a planta era capaz de fazer isso foi um mistério até o ano de 2022, quando o grupo liderado pela pesquisadora Sarah E. O’Connor, do Max Planck Institute, finalmente resolveu o problema. Os cientistas demonstraram que, a partir do triptofano, em uma série de etapas, a planta era capaz de produzir essa complexa molécula. Devido à relevância da pesquisa, o feito foi publicado na revista Nature (edição 607).
É bastante comum utilizarmos o termo “substância química” de forma pejorativa, associando-o a substâncias nocivas para o nosso organismo. No entanto, esse é um grande erro, que nos faz esquecer não só que o nosso corpo é composto por substâncias químicas, mas também que estamos o tempo todo cercados por substâncias químicas, respiramos substâncias químicas, nossos alimentos são compostos por substâncias químicas… Nesse contexto, não é de se espantar que químicos sejam cientistas que apresentam uma relação bastante próxima com a natureza. Estudamos as moléculas presentes em plantas, fungos, bactérias e organismos marinhos e buscamos aplicações para elas. Para termos uma ideia, cerca de 38% dos fármacos aprovados para o consumo humano entre os anos de 1981 e 2019 são produtos naturais, derivados de produtos naturais ou tiveram sua estrutura química inspirada em algum produto natural.
Além disso, entendemos que não apenas as moléculas fornecidas pela natureza nos podem ser úteis, mas também os processos químicos que levam à formação delas. Esses processos naturais podem servir como fonte de inspiração para o desenvolvimento de novos processos utilizados em laboratórios ou na indústria. O preparo de uma substância química por um organismo vivo é chamado de biossíntese e quando ela é utilizada como inspiração para o desenvolvimento de um novo processo, este é chamado de biomimético ou bioinspirado. Uma vantagem desse tipo de estudo é desenvolvermos processos mais limpos, que causem menos impactos para o meio ambiente e garantam o abastecimento de substâncias químicas de forma sustentável.
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