Uma educadora de ciências com os olhos voltados à ancestralidade

Instituto de Física
Universidade Federal da Bahia

A física Katemari Rosa combate racismo, sexismo, LGBTQfobia, capacitismo, elitismo em sua área e busca, com o ensino, revelar a importância dos saberes dos povos africanos e não-europeus

CRÉDITO: SIMONE MARINHO

Meu nome é Katemari Rosa, e sou cientista. Eu gosto de ler, cozinhar, costurar e viajar. Há algumas semanas eu embarquei para a cidade de Londres, na Inglaterra, para participar de uma conferência sobre energia de fusão. Essa forma de energia sempre me faz pensar, automaticamente, no Sol. É que tanto o calor quanto a luz que recebemos aqui na Terra são resultados dos processos de fusão que ocorrem no interior do Sol. Mas eu não trabalho com física nuclear. 

A viagem para Londres me traz memórias de 21 anos atrás, quando morei na cidade, participando de um projeto que investigava as influências do Sol no clima da Terra. O estágio foi no Imperial College, no Departamento de Física Atmosférica. Mas eu não trabalho com física atmosférica. 

Em Londres, fui ao Museu Britânico, um lugar sempre muito impactante para mim. Fiquei emocionada na primeira visita àquele museu, e dessa vez não foi diferente. Ver tantos artefatos da história da humanidade que foram roubados do continente africano e levados para aquele museu me causa tristeza. Por outro lado, ver a pedra de Roseta é fascinante porque é um fragmento de uma coluna de um templo que existia na região do delta do Nilo. Nessa pedra, tem um trecho de um texto legislativo, em três idiomas: hieróglifo, demótico e grego. Apenas a partir da descoberta dessa pedra, foi possível começar a decifrar os hieróglifos. Amo essa história! Estudei um pouco de egiptologia e pratiquei escrita de símbolos do idioma do Egito Antigo. Mas eu não sou historiadora, nem linguista.

Hieróglifos para as crianças

A partir desses códigos da pedra de Roseta, desenvolvi um material para crianças trabalharem com decodificação, que é a base para entender criptografia computacional. Criei diversos modelos e, depois de muita prototipagem, utilizando impressoras 3D, cheguei em uma versão final desse material, que é todo coloridinho, bonitinho e tem a minha caligrafia dos hieróglifos. Mas eu não sou cientista da computação, nem engenheira!

Para além da importância de criar um material para desenvolver habilidades de codificação e decodificação, eu queria usar a tecnologia da manufatura aditiva, impressão 3D nesse caso, para aproximar crianças de conhecimentos sobre o que nossos ancestrais fizeram e das genialidades que o continente africano desenvolveu ao longo da história. A sofisticada língua  dos povos egípcios é um exemplo disso. 

Quando eu digo “ancestrais”, estou falando de humanidade, de onde o ser humano começou, estou falando de África. Aliás, isso me lembra que visitei o chamado “Berço da Humanidade”, as grutas de Sterkfontein, quando viajei para um evento acadêmico da minha área, lá na África do Sul. Nesse sítio arqueológico, foram encontrados os fósseis mais antigos descobertos até hoje, indicando seres humanos que viveram entre 3,4 e 3,7 milhões de anos atrás! Não, não sou arqueóloga.

Dentre as várias coisas que eu faço, no meu trabalho, está tentar entender que conhecimentos foram produzidos ao longo da história e que nos foram negados, escondidos, ou foram veiculados como sendo de origem europeia quando, na verdade, eram conhecimentos africanos ou de povos originários

Astronomia ancestral

Dentre as várias coisas que eu faço, no meu trabalho, está tentar entender que conhecimentos foram produzidos ao longo da história e que nos foram negados, escondidos, ou foram veiculados como sendo de origem europeia quando, na verdade, eram conhecimentos africanos ou de povos originários de outros territórios. Por exemplo, diversos povos africanos desenvolveram conhecimentos profundos sobre astronomia. Povos egípcios, há mais de 4000 anos antes da Era Comum já utilizavam um calendário de 365 dias. Mas pouco aprendemos sobre isso, e muitos materiais didáticos ainda ensinam astronomia sem trazer as contribuições de povos africanos. A astronomia é deslumbrante e ancestral e, quando eu era criança, foi esse conhecimento que me atraiu para as ciências, mas eu não sou astrônoma.

Eu queria ser astrofísica e foi por isso que ingressei no curso de Física. Entretanto, depois de fazer disciplinas de astrofísica, vi que não me interessava tanto pelo assunto. Mas há um vasto universo de conhecimentos apaixonantes na física. Os caminhos acadêmicos me levaram para o ensino de física. Eu sou uma pesquisadora na área de educação científica, fiz doutorado nessa área na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, e tento compreender o que faz as pessoas se interessarem ou não por física e o que podemos fazer para transformar esse campo (de saber e de trabalho) para que não seja um espaço de reprodução das opressões que encontramos na sociedade, de forma mais ampla, tais como racismo, sexismo, LGBTQfobia, capacitismo, elitismo etc. Essa busca é parte fundamental do meu trabalho, por isso faço parte de grupos como a National Organization of Gay and Lesbian Scientists and Technical Professionals e da Associação Brasileira de Pesquisadoras/es Negras/os.

Tento compreender o que faz as pessoas se interessarem ou não por física e o que podemos fazer para transformar esse campo para que não seja um espaço de reprodução das opressões que encontramos na sociedade, de forma mais ampla, tais como racismo, sexismo, LGBTQfobia, capacitismo, elitismo etc

Caminhos para a física

Nossa sociedade tem muitos problemas, guerras, preconceitos, opressões; e não há campo profissional que exista isolado da sociedade. Dessa forma, não importa a área que se escolha, haverá mais dificuldades se você fizer parte de um grupo que, historicamente, é marginalizado, de alguma forma ou de outra. A física tem sido um campo particularmente inóspito para mulheres e pessoas não-brancas, mas estamos trabalhando para mudar isso.

Há uma infinidade de possibilidades dentro da física, e espero ter mostrado um pouco disso. Hoje sou coordenadora de Programas e Projetos na Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal da Bahia. E assim, eu gosto de convidar as pessoas para se aproximarem da física porque eu tenho certeza de que há sempre alguma coisa para a gente se apaixonar nessa ciência. Para quem está pensando – e principalmente para quem não está cogitando – vir para a física, traga o que você gosta e veja como isso se conecta com a física. Você pode construir um caminho único e contribuir para transformar a ciência! Inclusive, ando querendo desenvolver projetos ligados a artesanias tradicionais… Para onde será que isso vai?

A física tem sido um campo particularmente inóspito para mulheres e pessoas não-brancas, mas estamos trabalhando para mudar isso

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