Lacunas da biodiversidade

Programa de Pós-Graduação em Ecologia e Evolução
Universidade Federal de Goiás
Departamento de Biologia Animal
Universidade Estadual de Campinas
Departamento de Ecologia
Universidade Federal de Goiás

A ciência já catalogou mais de 2 milhões de espécies. Mas estima-se que esse total seja só pequena fração do que há para se conhecer sobre a biodiversidade. Essas lacunas de conhecimento dificultam a conservação de ecossistemas importantes para a humanidade.

CRÉDITO: ADOBE STOCK

A biodiversidade engloba toda a variedade de formas de vida (espécies) existentes em nosso planeta, bem como as interações que ocorrem entre elas e as funções que desempenham. Além da variedade de formas, a biodiversidade também inclui a diversidade genética. Cada indivíduo tem uma combinação única de genes que atuam como um ‘manual de instruções’, determinando suas características e funções.

A variedade genética contribui para a sobrevivência em longo prazo das espécies. E, quanto maior a riqueza genética, maior a capacidade de adaptação e sobrevivência de uma espécie a condições adversas.

Cada espécie desempenha papéis ecológicos específicos no ambiente onde vive. Há, por exemplo, os produtores primários, que convertem energia solar em energia química, por meio da fotossíntese; os decompositores, que ‘quebram’ a matéria orgânica; os predadores, polinizadores e ‘engenheiros’ de ecossistemas – estes últimos criam ou modificam hábitats, como os castores, ao represarem cursos d’água.

A diversidade de espécies e suas funções são um indicador-chave da saúde ecológica de ecossistemas naturais, como florestas tropicais e recifes de corais. Por sua vez, cada ecossistema (e suas espécies associadas) tem características físico-químicas e biológicas que o tornam único.

Em conjunto, os ecossistemas atuam na regulação do clima (pela absorção de gás carbônico, CO2), purificação da água por processos naturais e ciclagem de nutrientes, bem como na prestação de serviços ecossistêmicos, como a polinização.

Além de ser responsável pela beleza única de cada paisagem natural, a biodiversidade desempenha papel vital na estabilidade do planeta, fornecendo inúmeros benefícios à humanidade – de fato, ela é recurso inestimável para a ciência e áreas correlatas, sendo a base para o desenvolvimento de diversos produtos.

A diversidade de espécies e suas funções são um indicador-chave da saúde ecológica de ecossistemas naturais, como florestas tropicais e recifes de corais

Entender e proteger

Como curiosidade, já ouviu falar em PCR? Esse termo ficou famoso na pandemia de covid-19. O PCR (sigla, em inglês, para reação em cadeia de polimerase) é uma técnica usada para amplificar pequenos trechos de DNA (material genético).

A técnica teve grande impacto em diversas áreas, incluindo diagnóstico de doenças, pesquisas em biotecnologia e na área forense. Mas qual sua relação com a biodiversidade?

Uma proteína-chave no PCR é a Taq polimerase, capaz de suportar altas temperaturas sem perder suas funções. Com isso, quando adicionada à reação do PCR, ela permanece estável nos ciclos de aquecimento.

O que é de pouco conhecimento público é que essa enzima foi isolada da bactéria Thermus aquaticus, que habita fontes termais e gêiseres (figura 1). Sem ela, vários avanços científicos observados atualmente não seriam realidade.

A compreensão da biodiversidade e o reconhecimento de sua importância são essenciais para promover sua conservação, garantindo futuro sustentável para as novas gerações. Mas ainda há lacunas consideráveis em nosso conhecimento sobre as espécies.

E isso é um dos grandes desafios atuais para cientistas que buscam entender e proteger a diversidade de vida e suas funções em nosso planeta.

Figura 1. Fonte termal no Parque Nacional de Yellowstone (EUA), onde a bactéria Thermus aquaticus foi descoberta e isolada

Crédito: Wikimedia commons/Brian W. Schaller

A compreensão da biodiversidade e o reconhecimento de sua importância são essenciais para promover sua conservação, garantindo futuro sustentável para as novas gerações

Natureza da defasagem

Imagine que extraterrestres amigáveis chegassem à Terra. Possivelmente, uma das primeiras perguntas que nos fariam seria: “Quantas espécies existem neste planeta?” Infelizmente, não teríamos resposta precisa para essa questão tão fundamental. E isso se dá por diversas razões.

Até o momento, pouco mais de 2 milhões de espécies foram descritas pela ciência. Mas abordagens conservadoras estimam que cerca de 80% (portanto, pelo menos, 8 milhões) ainda ‘aguardam’ um nome e descrição – especialmente, em regiões pouco exploradas.

Essas estimativas variam bastante. Muitas desconsideram, por exemplo, a diversidade microbiana, mesmo que esses organismos desempenhem papéis cruciais nos ecossistemas. Para se ter uma ideia, menos de 10 mil espécies de bactérias foram formalmente descritas até hoje – vale mencionar que estudos mostraram que 30 g de solo florestal rico pode conter até um milhão de espécies desses micro-organismos, o que sugere que o número de espécies de bactérias poderia ultrapassar um bilhão.

Há outra agravante nesse cenário: ainda não sabemos muita coisa sobre as espécies que conhecemos. Para a grande maioria delas, conhecemos pouco sobre seus hábitats, suas interações, seus papéis ecológicos e tantos outros aspectos de sua história natural.

Essas lacunas de conhecimento são obstáculo significativo para o futuro sustentável do planeta: afinal, para conservar o que temos, primeiramente, precisamos conhecer. Portanto, compreender melhor as espécies, bem como suas características e seus ambientes, é essencial não só para implementarmos medidas eficazes de conservação e gerenciamento dos recursos naturais, mas também para desenvolvermos soluções para problemas globais, como perda de hábitat, mudanças climáticas e extinção das espécies.

Identificar as lacunas de conhecimento nos permite otimizar os recursos escassos para pesquisas e acelerar a compreensão da biodiversidade

Por exemplo, temos poucas informações detalhadas sobre a distribuição geográfica da maioria dos organismos. Essa informação é essencial para identificarmos áreas prioritárias para conservação, como locais com alta biodiversidade, mas que vêm sofrendo com intensas pressões humanas.

Além disso, conhecer com precisão em que regiões as espécies ocorrem e saber quais fatores influenciam suas distribuições nos ajudam a entender o impacto das mudanças climáticas sobre esses organismos e seus ecossistemas, possibilitando definir metas e programas para mitigar possíveis problemas.

Outras lacunas vitais de nosso conhecimento sobre biodiversidade incluem: i) as funções ecológicas das espécies; ii) as complexas redes de interações entre elas. Quando uma espécie é extinta (por exemplo, por causa do desmatamento), isso pode gerar um efeito cascata, levando a desequilíbrio ambiental com consequências imprevisíveis.

Sabemos que ecossistemas com maior biodiversidade têm maior resiliência a perturbações ambientais, porque possuem maior redundância ecológica, ou seja, espécies com funções similares.

Mas a falta de informações robustas sobre as funções e interações entre organismos dificulta entendermos como as rápidas mudanças globais podem afetar as dinâmicas ambientais – especialmente, no longo prazo.

Identificar as lacunas de conhecimento nos permite otimizar os recursos escassos para pesquisas e acelerar a compreensão da biodiversidade. Isso representa uma etapa fundamental para mitigarmos os impactos das atividades humanas na natureza e, consequentemente, sobre nós

Impactos das lacunas

As lacunas de conhecimento sobre a biodiversidade têm implicações importantes não só para o conhecimento científico, mas também para a tomada de decisões sobre a conservação e o manejo sustentável dos recursos naturais. A falta de conhecimento adequado sobre as espécies e seus hábitats pode levar à implementação de ações falhas ou insuficientes de conservação.

Podemos ir além nessa argumentação. Por exemplo, nosso conhecimento sobre a biodiversidade é também enviesado: certas espécies e ecossistemas são desproporcionalmente mais bem estudados do que outros (figura 2). Assim, corremos o risco de subestimar a importância de áreas ou organismos.

Isso limita também a generalização de resultados de pesquisas. Em casos mais graves, isso poderia levar a conclusões equivocadas, as quais dificultariam, por exemplo, a compreensão ampla dos impactos das mudanças ambientais e reduziriam nossa habilidade de desenvolver estratégias eficazes para solucionar o problema.

A mera existência de tantas espécies desconhecidas é outra barreira: muitas delas podem ser extintas antes mesmo de serem descritas. Com isso, estariam perdidos não só os papéis que elas desempenhavam nos ecossistemas, mas também seus potenciais benefícios para a sociedade – vale lembrar da história da bactéria Thermus aquaticus e de quantos avanços não teriam sido obtidos ou teriam sido adiados caso essa espécie tivesse sido extinta antes de ser descoberta e estudada.

No Brasil, áreas naturais equivalentes a milhares de campos de futebol foram completamente desmatadas, inviabilizando a sobrevivência de espécies que ocorriam só nesses locais. Com a extinção delas, perdemos (talvez, para sempre) conhecimento sobre suas funções, interações e seus valores potenciais.

As lacunas de conhecimento podem dificultar também a descoberta e exploração de recursos naturais. Espécies desconhecidas ou ecossistemas pouco estudados podem abrigar substâncias valiosas ou processos biológicos únicos que poderiam levar a avanços tecnológicos significativos, como nos ensina a história.

Consequentemente, preencher essas lacunas nos permite compreender as muitas propriedades e potencialidades não só das espécies, mas também dos locais que elas habitam.

Figura 2. Registros de ocorrência de espécies de anfíbios, aves e mamíferos baseados em dados do GBIF, o maior banco de dados on line do mundo na área; locais sem registro (cinza); com poucos (azul) e muitos registros (vermelho); o Brasil, apesar da alta biodiversidade, tem menos registros que Europa e EUA, menos biodiversos

Crédito: Adaptado de Meyer, C. et al./Nature Communications 6:8221, 2015

É importante ressaltar que espécies não reconhecem fronteiras políticas, e, muitas vezes, as lacunas de conhecimento transcendem limites geográficos

Estudar para reduzir

Nas últimas décadas, abordagens e métodos têm sido desenvolvidos para o estudo da biodiversidade. Alguns incluem grandes avanços na biologia molecular, no sensoriamento remoto (mapeamento por satélite ou drones) e na modelagem computacional.

Técnicas como o rápido sequenciamento de DNA permitem identificar espécies e caracterizar ecossistemas de modo ágil e com baixo custo, contribuindo para monitorar comunidades, elucidar a diversidade genética das populações e descobrir novas espécies.

A genômica (estudo da totalidade do material genético, ou seja, do genoma, de um organismo) e a metagenômica (análise genômica da comunidade de micro-organismos de determinado ambiente) são áreas em franca expansão. Ambas têm fornecido informações valiosas sobre, especialmente, a diversidade microbiana e suas funções.

Essas duas técnicas, além de revelarem incrível riqueza microbiana ainda desconhecida, abrem novas perspectivas para a compreensão tanto da biodiversidade ‘invisível’ a nossos olhos quanto de seu papel na manutenção da saúde dos ecossistemas.

Já o sensoriamento remoto vem sendo cada vez mais usado na avaliação e no monitoramento da biodiversidade em grandes escalas, possibilitando identificar mudanças na cobertura vegetal, detectar desmatamento e avaliar a qualidade dos hábitats.

Somados aos avanços recentes na computação, inúmeros modelos ecológicos e bioestatísticos têm sido desenvolvidos para simular padrões de distribuição de espécies e prever o impacto das mudanças ambientais na biodiversidade.

A modelagem computacional permite explorar cenários futuros e propor diretrizes para a tomada de decisões sobre a conservação das espécies e o manejo eficiente dos ecossistemas.

É importante ressaltar que espécies não reconhecem fronteiras políticas, e, muitas vezes, as lacunas de conhecimento transcendem limites geográficos. Colaborações entre cientistas, instituições de pesquisa, governos, ONGs e comunidades locais podem maximizar os esforços de pesquisa.

A mobilização e o compartilhamento de dados, bem como a disponibilização de espécimes depositados em coleções biológicas, além da troca de conhecimentos, contribuem para o estabelecimento de abordagens multidisciplinares, abrangentes e inovadoras.

Essas medidas são essenciais para preencher lacunas – especialmente, em países em desenvolvimento onde, geralmente, o investimento em ciência é baixo e a biodiversidade é gigante

Cientistas e público geral

A chamada ciência cidadã tem crescido em importância. Essa abordagem envolve a participação do público geral na coleta de dados e no monitoramento da biodiversidade. Por meio de aplicativos móveis e plataformas on-line, pessoas com acesso à internet e um smartphone podem contribuir com observações e registros.

Sabe aquelas fotos de animais ou plantas que tiramos quando estamos fazendo uma caminhada na natureza ou até mesmo da janela de casa? Esses registros têm se tornado cada vez mais valiosos para pesquisadores mundo a fora.

Essa abordagem colaborativa entre cientistas e grande público amplia a escala e abrangência dos estudos, ajudando a preencher lacunas em áreas e grupos de organismos pouco estudados.

A ciência cidadã também promove a conscientização e o engajamento da sociedade sobre a importância da biodiversidade, seu estudo e sua conservação.

Investir é preciso

Vale destacar que, além dos esforços colaborativos, o investimento maciço em ciência continua sendo de suma importância. A recente pandemia provocada pelo coronavírus Sars-CoV-2 sumariza bem esse ponto.

O desenvolvimento de vacinas é um processo lento, podendo demorar décadas. Parte dessa lentidão se dá pela falta de investimentos e colaboração limitada entre cientistas. Porém, na pandemia de covid-19, tivemos investimentos robustos e colaborações nunca vistos antes – tudo direcionado para a descoberta de uma vacina para essa doença.

Em tempo recorde (cerca de 10 meses), tínhamos as primeiras doses sendo aplicadas nas populações, o que foi fundamental para o controle da pandemia. Esse exemplo também demonstra como o conhecimento abrangente sobre a biodiversidade (nesse caso, um vírus) é necessário para tomarmos decisões informadas e desenvolvermos políticas públicas.

Esses e tantos outros métodos, tecnologias e abordagens têm permitido avanços significativos na compreensão da biodiversidade e suas muitas facetas, adicionando novas peças nesse importante quebra-cabeça.

Mas é importante ressaltar que nenhuma abordagem isolada é suficiente para preencher todas as lacunas. A integração entre elas é fundamental para obtermos panorama mais abrangente sobre a vida na Terra.

À medida que aprimoramos métodos e desenvolvemos novas abordagens, ficamos mais bem equipados para enfrentar os desafios da conservação da biodiversidade e promover um futuro sustentável, no qual a exuberante variedade de formas de vida em nosso planeta possa ser apreciada pelas futuras gerações.

MOURA, M. R. & GUEDES, J. J. M. Influenciadores escamados da natureza. Ciência Hoje, n. 397, pp. 56-57, abril de 2023. Disponível (para assinantes) em: https://cienciahoje.org.br/artigo/influenciadores-escamados-da-natureza/

MOURA, M. R. Biodiversidade brasileira, uma recompensa desconhecida. Folha de S. Paulo, 2 de junho de 2021. Disponível (para assinantes) em: https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/

LADLE, R. J. & WHITTAKER, R. J. Biogeografia e preservação ambiental. São Paulo (SP): Editora Andrei. 502 p., 2014.

SISTEMA DE INFORMAÇÃO SOBRE A BIODIVERSIDADE BRASILEIRA. Projetos brasileiros de ciência cidadã. Disponível em https://www.sibbr.gov.br/cienciacidada/projetos.html

Comentário (1)

  1. Herval André cota carneiro

    É sabido que existe uma grande interação entre as espécies, umas dependentes de outras para sobreviverem.
    O estudo mostra a importância do conhecimento, da manutenção dos biomas e consequente preservação das espécies, para manter a interação e a vida do, e no planeta.
    Com o aumento constante do consumo, existe a real possibilidade de muitas espécies desaparecerem e desta forma, comprometer a interação benéfica a vida, com consequências desconhecidas.
    Parabéns Jhonny!

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