‘Bets’: os jogos viraram vilões?

Físico e divulgador de ciência no canal Ciência Nerd
Universidade Federal de Juiz de Fora

Cassinos e casas de apostas on-line, principalmente do ramo esportivo, vêm crescendo cada vez mais no Brasil, sem qualquer fiscalização, transparência ou arrecadação de impostos, e geram problemas econômicos, sociais e de saúde

As casas de apostas on-line, chamadas ‘bets’, invadiram o Brasil após uma lei de 2018 que autorizava a prática, mas sem estabelecer regras

CRÉDITO: FOTO ADOBE STOCK

Já faz tempo que jogos eletrônicos são acusados de estimular violência nos jovens e são apontados como responsáveis por ataques e atentados a outras pessoas, embora essa associação não encontre respaldo na ciência.

Nos últimos anos, uma nova onda de críticas tem surgido. Mas os alvos da vez não são os jogos eletrônicos violentos, mas sim os jogos on-line de azar e de apostas. Esses jogos, também conhecidos como ‘bets’, têm suscitado um intenso debate na sociedade, e pesquisas e instituições importantes vêm atribuindo a eles consequências graves para a saúde e a economia.

Será que as críticas às ‘bets’ procedem? Elas causam tanto mal assim, ou isso é apenas mais uma onda de ataques aos jogos que, em questão de tempo, será desmentida pela ciência?

Os jogos de azar no Brasil

Em 2020, uma jornalista perguntava ao artista Zeca Pagodinho se ele era a favor da legalização do jogo do bicho no Brasil. Surpreso, o sambista respondeu: “É ilegal?”. 

O jogo do bicho nasceu no Rio de Janeiro em 1892, com a intenção de melhorar as finanças do Jardim Zoológico. Ao comprar um ingresso para o zoológico, o visitante ganhava uma figurinha de um dentre 25 animais. Ao fim do dia, um desses animais era sorteado e aqueles que tivessem a figurinha desse animal recebiam um prêmio em dinheiro. O que era uma simples atração de um zoológico se espalhou pelo Rio de Janeiro e para outras cidades e se tornou uma fábrica de dinheiro, tendo financiado escolas de samba e times de futebol e mantido uma relação crescente com o crime organizado e a milícia.

Em 1946, um decreto assinado pelo então presidente Eurico Gaspar Dutra proibiu todos os jogos de apostas ou de azar, incluindo o jogo do bicho. Estima-se que 71 cassinos foram fechados no país, deixando 60 mil pessoas desempregadas. O único jogo de azar que permaneceu operando dentro da legalidade foi a Loteria Federal, que foi devidamente regulamentada em 1962, mas já existia muito antes disso.

Embora tenha sido proibido em 1946, o jogo do bicho, criado em 1892, permanece operando até hoje, com lucros gigantescos

CRÉDITO:FOTO PEDRO GALDINO / FLICKR

A Loteria Federal é um jogo de apostas controlado pelo Estado brasileiro. Ela segue regras rígidas de transparência, incluindo a possibilidade de o resultado ser auditável, e repassa quase metade da verba arrecadada nos jogos para investimentos em saúde, educação, esporte, cultura, entre outros.

Desde a proibição, algumas empresas vêm operando jogos de azar e até cassinos no Brasil de forma clandestina. Mas, em 2018, no final do seu curto mandato como Presidente da República, Michel Temer assinou uma medida provisória autorizando as chamadas ‘apostas de quota fixa’. Nessa modalidade, a pessoa aposta sabendo quanto ganhará em caso de acerto. O problema é que a lei apenas autorizava a prática, sem estabelecer regras. Sem a devida regulamentação, o país se viu inundado pelo crescimento das chamadas ‘bets’, casas de apostas on-line (principalmente no ramo esportivo) com sede em paraísos fiscais, sem qualquer fiscalização, transparência ou arrecadação de impostos.

Com essa brecha legal e falta de regulamentação, as ‘bets’ cresceram exponencialmente. Dos 60 times que disputam o Campeonato Brasileiro de Futebol (Brasileirão) nas séries A, B e C, 52 são patrocinados por ‘bets’. Até mesmo a Copa do Brasil precisou mudar seu nome para Copa Betano do Brasil, pelo patrocínio que recebe da Betano, casa de apostas com sede na Grécia.

Além das empresas de aposta esportiva, muitos cassinos on-line passaram a atuar no Brasil, oferecendo uma gama de jogos de azar, como o famoso jogo do tigrinho, que traz uma estética mais infantil e divertida e atrai um público cada vez mais jovem.

As casas de apostas on-line têm investido em propaganda pesada para atrair apostadores. No futebol, dos 60 times que disputam o Campeonato Brasileiro nas séries A, B e C, 52 são patrocinados por ‘bets

CRÉDITO: FOTO DIVULGAÇÃO/CORÍNTHIAS

O jogo psicológico

Você deve ter algum parente ou conhecido que tem, ou já teve, problemas graves com jogos de azar. Não são raras as histórias de pessoas que perderam muito dinheiro para sustentar essa prática. Os manuais internacionais de doenças, como o CID 10 e o DSM 5 (referente aos transtornos mentais), reconhecem o vício em jogos de azar – assim como o vício em jogos eletrônicos – como uma patologia que causa danos às pessoas e pode ser tratada por profissionais da saúde.

Muitos pensavam que esse era um problema superado e que só persistia entre pessoas mais velhas. Afinal, os cassinos físicos são proibidos há muito tempo e não fizeram parte da vida das gerações mais novas. 

Acontece que os cassinos on-line estão hoje no bolso de qualquer pessoa, à distância de um toque, não possuem meios para impedir o acesso de menores de idade e suas propagandas estão em todos os lugares, inclusive sendo feitas por ídolos de jovens e adultos, como atletas e youtubers.

Mas esses jogos realmente causam dependência? É possível uma pessoa ficar viciada em jogos, assim como poderia ficar em drogas? 

Quando fazemos alguma atividade que nos mantém vivos ou contribui para a perpetuação da nossa espécie (como comer, socializar, ter relações sexuais e se exercitar), nosso cérebro libera substâncias chamadas neurotransmissores, como a dopamina. Essas substâncias químicas são responsáveis por transmitir informações entre neurônios e nos proporcionam a sensação de prazer e satisfação.

Algumas substâncias (como o álcool e outras drogas) e alguns comportamentos podem estimular drasticamente a produção desses neurotransmissores, nos levando a estados de extremo prazer.

O problema de inundar nosso organismo de dopamina, em doses muito mais altas do que estamos acostumados, é que nosso cérebro entende que pode produzir cada vez menos dessa substância e nosso corpo vai ficando cada vez menos sensível aos efeitos desse neurotransmissor, ou seja, vai sentindo cada vez menos prazer. A consequência disso é que precisaremos buscar estímulos cada vez mais intensos, o que significa utilizar drogas mais pesadas, jogar por mais tempo, apostar valores cada vez mais altos, sempre em busca de sentir aquele prazer que sentimos nas primeiras vezes.

Os estudos científicos vêm mostrando que o jogo patológico é uma dependência comportamental similar à dependência química, e acredita-se que uma pessoa adquira esse vício por causa desse desequilíbrio de produção de neurotransmissores. 

Pesquisas também mostram que são práticas comuns de jogadores patológicos cometer atos ilegais para sustentar a atividade, apresentar índices mais elevados de divórcio e desenvolver distúrbios cardiovasculares, alergia, problemas respiratórios, transtornos do sistema nervoso, perturbações de sono, problemas de coluna, problemas orais ou dentais, obesidade, cansaço crônico, gripes e resfriados, enxaquecas, dores gástricas e outros sintomas físicos. Também são relatadas com frequência associações entre jogo patológico e uso abusivo de drogas, desenvolvimento de depressão e transtorno de ansiedade e aumento do risco de suicídio.

Você pode pensar que está imune a tudo isso. Você pode achar que seu conhecimento em futebol, por exemplo, o fará ganhar muito dinheiro fazendo apostas esportivas, ou que cada derrota nos cassinos faz com que você esteja um passo mais perto da vitória. Mas os jogos de cassinos on-line são muito bem projetados para te deixar cada vez mais preso ao jogo e apostando valores cada vez mais altos. Os algoritmos desses jogos não são transparentes, a fiscalização é precária ou inexistente. E, quando olhamos para os números (a quantidade de pessoas buscando esses jogos e os valores apostados), só podemos concluir que as estratégias dos cassinos on-line estão sendo muito bem-sucedidas.

Impactos econômicos do vício em jogos

Em setembro de 2024, o Banco Central do Brasil publicou uma análise técnica sobre o mercado de apostas on-line no país e o perfil dos apostadores. Segundo esse estudo, enquanto as loterias arrecadaram uma média de 1,9 bilhão de reais por mês em 2024, as 56 empresas que foram identificadas como atuantes no ramo dos jogos de azar (mas sem estarem devidamente registradas) arrecadaram 20,8 bilhões de reais só em agosto de 2024. 

Um dos maiores problemas é que muitas pessoas estão apostando quantias que deveriam ser destinadas à própria alimentação, à quitação de dívidas, à compra de bens essenciais para suas vidas. Como afirma Renato Meirelles, chefe do instituto de pesquisas Locomotiva, um dinheiro que normalmente iria para o lojista do bairro, impulsionando a economia local, agora está sendo devorado pelas apostas. 

Gabriel Galípolo, futuro presidente do Banco Central, afirmou que os bancos estão se questionando: por que, em um momento de crescimento da renda como estamos vivendo hoje, não se observa um crescimento do consumo da população e dos seus investimentos financeiros? Essa quantidade alta de dinheiro sendo perdida para empresas, em sua maioria estrangeiras e que pagam pouco ou nenhum imposto, está levando a profundas mudanças econômicas.

Se os impactos na economia nacional causam preocupação, as consequências para os indivíduos são de entristecer. São muitos os relatos de pessoas que adquiriram dívidas permanentes com jogos, que venderam seus bens, que apostaram toda a herança da família e que passam por graves dificuldades financeiras. As consequências são devastadoras para toda a família.

Os mais afetados

Talvez a parte mais chocante dessa história seja o impacto dos jogos para os jovens. Muitas evidências levam a crer que algumas dessas plataformas atuam ativamente para atrair o público infanto-juvenil, mesmo que oficialmente divulguem que seus produtos são para maiores de idade, como manda a lei.

Muitas plataformas de apostas, como o famoso jogo do tigrinho, trazem uma estética mais infantil, para atrair um público cada vez mais jovem

CRÉDITO: FOTO DIVULGAÇÃO

Vários desses jogos possuem estética infantil, são bem coloridos e trazem personagens fofos. Muitos dos influenciadores contratados para fazer propagandas das ‘bets’ têm conteúdos voltados para crianças e adolescentes (ou se comunicam amplamente com esse público). Não há um mecanismo rigoroso e confiável para assegurar que menores de idade não acessem os jogos. E a mais grave de todas as evidências: a contratação de influenciadores mirins.

Uma investigação do Instituto Alana (ONG que atua na defesa dos direitos da criança e do adolescente) mostrou que influenciadores mirins têm sido pagos para fazer propaganda de cassinos on-line. Uma dessas influenciadoras tem apenas 6 anos de idade e divulga em seu Instagram, com mais de 3 milhões de seguidores, cassinos, ‘bets’, rifas e sorteios de produtos (como motos e iPhones).

Como afirma o psiquiatra Rodrigo Machado em entrevista à BBC, crianças e adolescentes são especialmente vulneráveis à dependência, porque não possuem o cortex pré-frontal totalmente desenvolvido e, por isso, tendem a se comportar de maneira mais impulsiva, tendo menos condições de avaliar riscos.

Quais as soluções?

O governo brasileiro vem tomando algumas medidas diante desse cenário, colocando regras de atuação para essas empresas, instituindo impostos para as empresas de jogos on-line e bloqueando o uso do cartão do Bolsa Família para gastos com ‘bets’. Órgãos públicos e setores da sociedade vêm cobrando respostas do governo quanto à publicidade feita por essas empresas, principalmente as direcionadas ao público infantil.

Mas a dificuldade de controlar e fiscalizar empresas que se tornaram tão poderosas é tamanha que muitas dessas medidas parecem ser totalmente ineficientes. O próprio presidente Lula afirmou que, se a regulamentação não der o resultado esperado, o governo brasileiro pode proibir esses serviços no país.

Paralelamente ao controle das propagandas, é muito importante que se invista na educação da população. O desconhecimento de probabilidade e do funcionamento básico dos jogos de azar leva as pessoas a acharem que podem realmente lucrar com os jogos. Da mesma forma, a crença de que apostas podem ser uma renda complementar e de que é possível aprender a ganhar dinheiro com esses jogos por meio de vídeos na internet tem levado famílias de baixa renda a enxergarem nos jogos uma saída para a condição financeira em que se encontram.

A famosa máxima “a banca sempre ganha” tem sua razão. Essas empresas são milionárias porque a estatística está sempre a favor delas. A longo prazo, as casas sempre ganham e o apostador sempre perde.

Diante de todo esse cenário, fica muito claro que a falta de uma regulação rigorosa das ‘bets’ representa um problema nacional de saúde pública, um problema econômico e um problema social.

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