Instituto de Microbiologia Paulo de Góes
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Numa época em que as pessoas morriam de simples infecções, o alemão Gerhard Domagk desenvolveu, em 1935, o que pode ser considerada a primeira droga sintética para combater bactérias em humanos, o Prontosil, salvando milhões de vidas.

CRÉDITO: REPRODUÇÃO

Quando a Primeira Guerra Mundial começou, em 1914, o jovem alemão Gerhard Domagk (1895-1964) era estudante de medicina na Universidade de Kiel (Alemanha). Com a impetuosidade da juventude, Domagk se alistou e foi para a frente de batalha, onde acabou ferido na perna. Após sua recuperação, trabalhou como médico de campo, atendendo combatentes feridos. Sua experiência na guerra foi aterrorizante; o que viu nos campos de batalha determinou o curso de sua vida e carreira. 

A Primeira Grande Guerra foi muito diferente das guerras dos dias atuais. Não que estas sejam menos violentas ou brutais, mas, hoje, há aeronaves modernas, mísseis teleguiados, drones e todo tipo de tecnologia. Em 1914, os soldados ainda dependiam de espadas e baionetas, explosivos de mão, como granadas, e as lutas corpo a corpo em trincheiras enlameadas eram comuns. 

Não havia ainda tratamento para infecções bacterianas, e pequenos ferimentos podiam facilmente se transformar em feridas mortais. Infecções resultantes de feridas, como a gangrena gasosa e a sepse (infecções da corrente sanguínea), eram abundantes, e as péssimas condições sanitárias favoreciam surtos de doenças, como tuberculose, cólera e disenteria. Domagk jurou tentar de tudo para encontrar tratamentos para as infecções, fazendo disso um objetivo de vida.

Quando a guerra terminou, Domagk voltou para casa e terminou seus estudos em medicina, especializando-se em patologia. Atuou como pesquisador e professor de patologia na Universidade de Munster (Alemanha); mas acabou sendo recrutado para trabalhar na IG Farbenindustrie (IG Farben), associação de gigantes da indústria química e farmacêutica alemã.

A IG Farben se especializava na fabricação de corantes, entre outros produtos químicos. Domagk foi convidado a trabalhar em um programa específico de desenvolvimento de drogas para tratar infecções bacterianas, e recebeu muito mais recursos – financeiros, equipamentos e pessoal – para desenvolver sua pesquisa do que um professor universitário poderia sonhar.

Antibiótico ou antibacteriano?

A penicilina foi o primeiro antibiótico descoberto na história (1928), mas outras drogas com atividade antibacteriana já eram conhecidas. A diferença está na terminologia. Antibióticos são moléculas produzidas por microrganismos que são purificadas e usadas para combater outros microrganismos. Já as drogas sintéticas, fabricadas em laboratórios, são chamadas de antibacterianos. A indústria farmacêutica investia muito nesse setor. 

Em 1910, o médico alemão Paul Ehrlich (1854-1915), considerado o pai da imunologia e criador da quimioterapia, desenvolveu a primeira droga antibacteriana, o Salvarsan. Ehrlich também descreveu o conceito da ‘bala mágica’ (magic bullet), que mais tarde viria a ser conhecido como ‘toxicidade seletiva’ – a ideia de que seria possível matar o(s) microrganismo(s) que estão causando uma doença, sem prejudicar o próprio corpo (ou as células) do paciente. 

Na tentativa de descobrir novos antimicrobianos, Domagk e a equipe da IG Farben seguiram os passos de Ehrlich. Naquela época, havia um conceito muito difundido entre os cientistas de que corantes sintéticos teriam atividade antibacteriana (realmente, muitos a têm). 

Em um programa colaborativo de pesquisa, dois químicos alemães da IG Farben, Fritz Mietzsch (1896-1958) e Josef Klarer (1898-1953), desenvolveram centenas de corantes sintéticos que Domagk testava contra bactérias em seu laboratório. Muitos eram do tipo azocorantes, compostos orgânicos que contêm uma ligação entre dois átomos de nitrogênio do tipo -N=N-.

A descoberta do Prontosil

Os azocorantes pareciam promissores, mas dentre as centenas testadas, nenhum matava bactérias. Até que o chefe do programa, o farmacêutico alemão Heinrich Horlein (1882-1954) sugeriu acrescentar compostos contendo átomos de enxofre aos azocorantes. Foi assim que surgiu o composto KL695, que continha um grupo sulfonamida ligado a um dos nitrogênios de um azocorante. 

Esse composto não tinha atividade contra as bactérias de laboratório, mas Domack acreditava que os medicamentos poderiam interagir com o sistema imune do paciente. Então, mesmo que uma droga testasse negativo no laboratório (in vitro), ele continuava os ensaios em camundongos (in vivo): e a KL 695 parecia funcionar in vivo

Esse composto não tinha atividade contra as bactérias de laboratório, mas Domack acreditava que os medicamentos poderiam interagir com o sistema imune do paciente

Gerhard Domagk (1895-1964)

CRÉDITO: FOTO ARQUIVO FUNDAÇÃO NOBEL/REPRODUÇÃO

Seus colegas químicos continuaram trabalhando na molécula e fizeram várias substituições. Em 1932, chegaram ao composto KL730, que, apesar de não funcionar nos tubos de ensaio, era excelente nos animais infectados. O composto era o cloridrato de 4-[(2,4)-diaminofenil)azo]benzenossulfonamida, também conhecido como sulfamidocrisoidina, e foi patenteado como Prontosil rubrum. 

Finalmente, após muitos estudos, em 1935, Domagk publicou seus resultados, e o Prontosil começou a ser distribuído para testes clínicos em humanos. Os primeiros testes foram controversos, e não houve muitos progressos em seu uso clínico nesse ano.

A confiança que Domagk tinha na droga foi posta à prova no início de dezembro de 1935, quando sua filha de 6 anos, Hildegarde Domagk, se machucou com uma agulha de tricô enquanto preparava decorações de Natal. A menina caiu da escada, quebrou o pulso e ficou com a agulha presa na mão. Foi preciso uma cirurgia para removê-la. 

Apesar a cirurgia, ela desenvolveu uma infecção causada por uma bactéria do gênero Streptoccocus. Essa bactéria pode causar infecções de pele, como a erisipela e o impetigo, mas quando penetra na pele através de feridas, o risco é muito maior. A doença pode progredir para uma celulite infecciosa e, pior, para uma fascite necrosante, a temida gangrena. A bactéria também pode se espalhar pela corrente sanguínea e causar uma infecção mortal. 

Hildegarde teve o azar de desenvolver uma celulite infecciosa, que se espalhou pelo braço. Os médicos recomendaram a amputação, mas a menina já apresentava febre alta e Domagk sabia que isso seria uma solução temporária: a doença já se espalhava pelo corpo.

O teste na própria filha

Ele não teve dúvidas, mesmo sem ter sido bem testado em humanos, Domagk administrou o Prontosil na filha e esperou. Horas, dias, semanas… Mesmo mantendo o tratamento, a febre da sua filha piorou. O alívio só veio na noite de Natal, quando a menina começou a reagir, a febre diminuiu e seu apetite voltou. Domagk salvou a vida de sua filha, sem ter precisado amputar o braço. O único efeito colateral foi uma coloração vermelha na pele da menina, devido ao corante da droga. 

Domagk salvou a vida de sua filha, que nem precisou amputar o braço. O único efeito colateral foi uma coloração vermelha na pele da menina, devido ao efeito corante da droga

CRÉDITO: FOTO SCIENCE MUSEUM, LONDON/REPRODUÇÃO

No ano seguinte, Domagk e o Prontosil começaram a ganhar notoriedade, graças à cura de outro paciente: Franklin Roosevelt Jr., o filho do presidente dos Estados Unidos. Franklin Jr. tinha apenas 22 anos quando apresentou uma faringite, a famosa garganta estreptocócica, que, em 1936, podia ser uma doença fatal. O rapaz se recuperou rapidamente após injeções com Prontosil. 

No mesmo ano, vários testes clínicos começaram a apresentar resultados positivos. A droga era um sucesso no tratamento de febre puerperal (doença gravíssima de bebês recém-nascidos), de pneumonia e até de gonorreia. 

Simultaneamente, cientistas franceses descobriram que era a porção da molécula contendo enxofre (sulfonamida) que tinha atividade antibacteriana. Isso explicou por que a droga era ativa nos camundongos de laboratório, mas não nos tubos de ensaio. 

O Prontosil era uma pró-droga (uma forma inativa), que precisava ser processada por enzimas do corpo do animal para liberar a sulfonamida e atingir seu potencial – processo chamado de biotransformação. Essa descoberta possibilitou o desenvolvimento de drogas do mesmo tipo, as chamadas sulfas, mais eficientes e menos tóxicas para humanos. 

Entre muitos outros prêmios, Gerhard Domagk foi agraciado com o Nobel de Medicina em 1939. Infelizmente, não pode recebê-lo, pois o partido nazista alemão já estava no poder, e proibiu os cientistas alemães de receberem o prêmio. Domagk chegou a aceitá-lo, mas foi preso pela Gestapo (a polícia secreta nazista) que o obrigou a escrever uma carta rejeitando a premiação.

Após a Segunda Guerra, em 1947, ele conseguiu receber sua medalha do Nobel, mas o dinheiro já havia sido redistribuído. Ele continuou trabalhando na IG Farben até sua aposentadoria, onde continuou estudando ‘balas mágicas’; dessa vez, para combater o câncer. 

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