Engodos evolutivos

Departamento de Genética, Ecologia e Evolução, Instituto de Ciências Biológicas
Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares
Universidade Federal de Minas Gerais

Características que iludem, confundem e enganam outras espécies

CRÉDITO: WIKIMEDIA COMMONS

Algumas estratégias evolutivas envolvem vantagens adaptativas de espécies para manipular a percepção de outras por meio, por exemplo, da emissão de sinais enganosos que exploram os sistemas sensoriais de presas, predadores, polinizadores ou potenciais parceiros reprodutivos. Esses sinais enganosos são chamados de engodos evolutivos e podem ocorrer em diversos contextos de predação, reprodução, dispersão, alimentação, parasitismo e defesa, em microrganismos, plantas e animais. 

A sobrevivência e a reprodução dos organismos dependem da comunicação entre membros de mesma espécie e entre algumas espécies que interagem. O engodo — ou sinalização enganosa — é uma forma sofisticada de manipulação que surgiu independentemente em diferentes linhagens, moldada por pressões seletivas específicas. A fixação desses sinais enganosos depende do balanço entre os custos e os benefícios da manipulação pelos emissores (enganadores) e da capacidade dos receptores (enganados) de discernir os sinais falsos dos verdadeiros nesse cenário dinâmico de coevolução.

Um dos casos mais notáveis de engodo reprodutivo ocorre em diferentes espécies de orquídeas do gênero Ophrys na Eurásia e no norte da África, cujas flores mimetizam fêmeas de insetos na forma, na cor e no cheiro. Por exemplo, machos da vespa Dasyscolia ciliata tentam copular com a flor de Ophrys speculum, um ato que é, na verdade, uma pseudocópula que promove a polinização da orquídea, que engana a vespa em seu próprio benefício (uma adaptação).

Em um contexto parasitário, o chupim ou vira-bosta (Molothrus bonariensis), que ocorre em várias partes do Brasil, deposita seus ovos nos ninhos de mais de 50 espécies de aves hospedeiras (principalmente o tico-tico), “forçando” os pais adotivos a criarem seus filhotes. Os ovos do chupim também enganam as espécies hospedeiras por sua coloração parecida aos delas. Além disso, os filhotes de chupim eclodem antes e têm crescimento mais rápido, prejudicando a reprodução das espécies hospedeiras, para se beneficiarem.

Nas interações que envolvem predação, muitas presas possuem características vantajosas, ou seja, adaptações que permitem estratégias de camuflagem e mimetismo que confundem, iludem ou enganam predadores. Um exemplo é o mimetismo entre borboletas do gênero Heliconius que possuem forma e coloração muito parecidas entre si. Como todas as Heliconius são tóxicas, essa semelhança permite que sejam evitadas pelas aves predadoras, que as reconhecem como uma única variedade impalatável. 

Em outra relação de mimetismo, a borboleta tóxica Parides ascanius tem seu padrão imitado por outra palatável, a Eurytides lysithous harrisianus, que, assim, se protege da predação por aves que reconhecem o padrão de cor e forma da espécie impalatável. Ambas as borboletas são endêmicas da região costeira do Rio de Janeiro e estão ameaçadas de extinção pela destruição das matas e restingas fluminenses.

Outros tipos de engodo evolutivo podem ser identificados em nível molecular: algumas bactérias patogênicas se mascaram de células do organismo hospedeiro com proteínas que lhes conferem uma “capa de invisibilidade” ao sistema imune. Em outras situações, algumas moléculas de espécies enganadoras podem se ligar a receptores ou outros sinalizadores celulares que desencadeiam respostas nas espécies enganadas, e isso foi selecionado por ser vantajoso para as primeiras. 

Por exemplo, as pimentas americanas do gênero Capsicum produzem o composto pungente capsaicina, que desencadeia uma sensação de queimação e oferece proteção contra mamíferos predadores. As aves, bons vetores para a dispersão de sementes das pimentas, são indiferentes aos efeitos dolorosos da capsaicina que se liga aos receptores vaniloides (VR1) ativados por calor. Embora esses receptores existam nas células de mamíferos e aves, só os dos mamíferos são estimulados pela capsaicina, provocando hipersensibilidade térmica. Esse é um fenômeno ecológico de dissuasão direcionada que sugere que mamíferos trazem desvantagens à reprodução das pimentas. Portanto, da próxima vez que comer pimenta, lembre-se de que é apenas um engodo evolutivo: sua boca só “parece” estar queimando. No entanto, algumas pessoas hipersensíveis à capsaicina podem ter sérias consequências.

O engodo evolutivo é uma ilustração sofisticada do processo adaptativo promovido pela seleção natural, que atua sobre características surgidas de forma aleatória (por mutação e recombinação) nas populações da biodiversidade terrestre e se mostram vantajosas para sua sobrevivência e reprodução. Se esta vantagem envolve enganar outros indivíduos e espécies, o engodo é selecionado positivamente e fixado como uma adaptação.

A fixação desses sinais enganosos depende do balanço entre os custos e os benefícios da manipulação pelos emissores (enganadores) e da capacidade dos receptores (enganados) de discernir os sinais falsos dos verdadeiros nesse cenário dinâmico de coevolução.

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