Oceano, aliado contra a crise climática

Jornalista, especial para a Ciência Hoje

Professor da USP e coordenador da Cátedra Unesco para a Sustentabilidade do Oceano, Alexander Turra destaca a importância da proteção ao ambiente marinho para regular temperatura da Terra, promover segurança alimentar, gerar energia limpa e fomentar economia azul

CRÉDITO: ARQUIVO PESSOAL

“A Terra é azul”, disse o primeiro ser humano a vê-la do espaço, em 12 de abril de 1961. A bordo da missão soviética Vostok, o cosmonauta Iuri Gagarin (1934-1968) ficou fascinado durante sua viagem ao redor do nosso planeta, e não é para menos: cerca de 70% da superfície terrestre são cobertos por água. O dado é amplamente conhecido, assim como é famosa a frase do cosmonauta soviético. Mas parece que temos nos esquecido disso. O oceano que ajuda a regular o clima, que é berço de uma biodiversidade gigantesca e fonte de alimento para bilhões de pessoas, está sob ameaça. A emergência climática, a poluição e a crise ambiental acelerada pela ação humana afetam em cheio a vida marinha – e a nossa, também.
“O oceano poderia ser um grande aliado para superarmos esses desafios, mas hoje é vítima das ações humanas que promovem essas transformações”, diz o biólogo Alexander Turra, professor do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador da Cátedra UNESCO para a Sustentabilidade do Oceano. Às vésperas da Semana Nacional de Ciência e Tecnologia, cujo tema é cultura oceânica, em outubro, e da COP30, em novembro, ele explica como o oceano pode passar de vítima a agente crucial no combate às mudanças climáticas. A pesquisa científica tem papel fundamental nesse caminho, afirma, produzindo dados e apontando soluções baseadas na natureza, com aplicações práticas que envolvem também a sociedade e os tomadores de decisão. Confira na entrevista a seguir.

CIÊNCIA HOJE: A ciência tem dado inúmeros alertas sobre o impacto do aumento de temperatura da Terra sobre a vida no planeta. Como isso já afeta a vida nos oceanos?

ALEXANDER TURRA: O mundo vive grandes crises como as do clima, da biodiversidade, da poluição, da pobreza. Todas estão interconectadas e conectadas direta ou indiretamente ao oceano. O oceano poderia ser um grande aliado para superarmos esses desafios, mas hoje é vítima das ações humanas que promovem essas transformações. Sofre impactos indiretos relacionados à tomada de decisões políticas que influenciam o que acontece na sociedade e na natureza. Outras ações o influenciam diretamente, como a destruição ou a supressão de ambientes como manguezais, recifes de coral, praias etc. Também há exploração exagerada de recursos na pesca e na mineração, por exemplo. Fora a poluição, com fatores estressores que vão de esgoto a microplásticos. E temos as mudanças climáticas, com seu efeito forte e peculiar no oceano. O aumento da temperatura da Terra acelera o derretimento das geleiras, aumenta a entrada de água no oceano e ajuda a elevar o nível do mar. Além disso, o aumento de gás carbônico na atmosfera, por conta das emissões derivadas das atividades humanas, eleva o efeito estufa, subindo também a temperatura da água do mar. O aumento de gás carbônico no mar causa acidificação do oceano, afeta a calcificação dos organismos, a produção de esqueletos de corais, de peixes e as conchas de moluscos. Isso sem contar o desbalanço no ciclo da água. Com a atmosfera mais quente, há mais evaporação, e esse maior volume de água no ar pode se precipitar de forma espalhada ou concentrada. Isso se traduz em eventos extremos com maior frequência e magnitude. Estamos estressando os sistemas naturais de tal forma que a biodiversidade, e nós mesmos, ficamos mais vulneráveis. Se isso fosse uma luta de boxe, o ambiente marinho seria aquele lutador que sofre uma sequência de golpes e perde cada vez mais vitalidade e energia. O oceano está perdendo sua capacidade de funcionar e reagir.

CH: O que a descoberta de lixo humano em regiões remotas, como ilhas inóspitas e a Fossa das Marianas, a 11 mil metros abaixo da superfície da água, diz sobre a dimensão da poluição e contaminação dos oceanos?

AT: O lixo no mar é icônico, vultoso e pula na nossa frente. Não vemos o microplástico, mas ele também está lá, dura muito e se distribui por todos os lugares. Inclusive dentro da gente, no pulmão, na corrente sanguínea, na placenta. O lixo no mar é um problema global. E os locais de destino dele, os sumidouros, não necessariamente estão perto das fontes desse lixo. Estamos criando uma pegada irreversível no planeta, num suicídio homeopático deliberado. Não é “só um canudinho”. Cada contaminante tem efeito sinérgico, cumulativo, que cria comorbidades ambientais para o oceano. Precisamos diminuir essas fontes de estresse e controlar as atividades humanas que aumentam os riscos e as tendências de poluição nos rios, no oceano, na atmosfera. Isso significa não avançar com políticas públicas desastrosas como o PL da Devastação (Projeto de Lei 2.159/2021), que fragiliza a avaliação de impacto ambiental no país. Também é preciso dar condições de o oceano funcionar adequadamente. Isso significa criar mais áreas protegidas. Essa é uma meta da Convenção sobre Diversidade Biológica (tratado da ONU estabelecido na Eco-92, aprovado pelo Brasil e ratificado no país em 1998), de ter pelo menos 30% das áreas degradadas de ecossistemas terrestres, de águas interiores e costeiras e marinhas efetivamente protegidas até 2030. O Brasil ainda precisa fazer um esforço grande nesse sentido.

Se isso fosse uma luta de boxe, o ambiente marinho seria aquele lutador que sofre uma sequência de golpes e perde cada vez mais vitalidade e energia. O oceano está perdendo sua capacidade de funcionar e reagir

CH: Qual dos oceanos vive a situação mais crítica e como isso compromete o equilíbrio entre eles, considerando que estão interligados e que o que acontece a um afeta todos?

AT: Há um movimento forte de “One ocean” (um oceano). Por outro lado, a ONU, e o Brasil, não têm entendido dessa forma. O Brasil, especialmente, tem preferido não endossar tal movimento ao entender que ele anula ou gera visões desproporcionais sobre algumas coisas, como as diferenças entre os diferentes compartimentos oceânicos, como Atlântico Sul, Atlântico Norte, Pacífico Sul e Pacífico Norte. O Atlântico Sul, por exemplo, é uma das bacias oceânicas menos estudadas do planeta. É uma zona de cooperação e paz do Atlântico, não há guerras, não há pirataria, é um ambiente diferenciado geopoliticamente falando. Por isso, há uma corrente que entende que falar em um só oceano seria também um movimento hegemônico do Norte sobre o Sul Global para tentar anular diferenças positivas para essas regiões. Embora, obviamente, se entenda que a Terra tem um grande e único oceano conectado. Mas claramente vemos uma concentração de riscos e ameaças no Norte global, especialmente na Europa e na costa leste dos Estados Unidos. E ainda temos o Sudeste Asiático. São as áreas mais contaminadas e alteradas do planeta por conta das atividades humanas. Por isso, defendo falar oceano com ou sem “s”, dependendo da intenção do que se quer dizer. Minha amiga, a bióloga Simone Pennafirme (parceira da Cátedra UNESCO para Sustentabilidade do Oceano) deu uma solução brilhante para isso: é um oceano plural.

CH: Como é possível fazer que os oceanos passem de vítimas das consequências da ação humana e da crise climática para agentes importantes no combate a essa emergência?

AT: O oceano é uma fonte gigantesca de energias renováveis e traz uma vastidão de opções para trilharmos um caminho distante da energia fóssil. E o Brasil tem o maior potencial de geração de energia eólica offshore do mundo. É energia com baixa emissão de carbono, por meio de aerogeradores instalados no mar, aproveitando-se dos ventos que sopram sobre os oceanos. O país também tem potencial para energia solar offshore, e mais, energia a partir de marés, correntes, ondas, e outro negócio maravilhoso que é usar os gradientes de temperatura ou de salinidade. Além disso, o oceano tem imensa capacidade de sequestrar e estocar carbono. Chamamos de carbono azul. Sem contar o dinheiro que o Brasil pode fazer com essas possibilidades no mercado de carbono. É uma quebra de paradigma possível a partir dos próprios potenciais da natureza.

Estamos criando uma pegada irreversível no planeta, num suicídio homeopático deliberado. Não é “só um canudinho”. Cada contaminante tem efeito sinérgico, cumulativo, que cria comorbidades ambientais para o oceano

CH: : O que a pesquisa científica indica de evidências e caminhos possíveis para a preservação do oceano?

AT: Nossa ciência oceânica é madura, mas ainda precisa romper com as fragilidades de fomento, especialmente de médio e longo prazo. Participei da criação, na Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), de um programa dedicado ao Atlântico Sul e à Antártica. A Fapesp hoje tem o oceano como uma prioridade. Outras fundações de amparo à pesquisa dos estados têm fortalecido essa agenda também. Assim como o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e o Ministério da Ciência e Tecnologia. Há uma comunidade científica numerosa e comprometida. E temos avançado com a ciência para sustentabilidade, em contextos que façam sentido para a população e os tomadores de decisão. Isso pressupõe a valorização de diferentes sistemas de conhecimento, inclusive o tradicional. Um dos princípios com que temos trabalhado é o da economia sustentável do oceano dado pelo Painel de Alto Nível para uma Economia Sustentável do Oceano, que tem três pilares: proteção efetiva, produção sustentável e prosperidade equitativa. Isso envolve pensar em soluções e tecnologias transformativas a partir de novas formas de se relacionar com a natureza. Falamos de biotecnologia, inovação social, de soluções que emergem das comunidades tradicionais para fortalecer os seus ativos. Inclui até aplicativos de celular que usam big data e inteligência artificial para diminuir a vulnerabilidade de pescadores a eventos extremos. Há hoje fundos com centenas de bilhões de dólares para investimento em negócios associados ao oceano. Vi isso em Mônaco, no Blue Economy and Finance Forum. E aqui, eventos como a São Paulo Ocean Week e a Rio Ocean Week estão focados em potencializar hubs de inovação. Criamos o Centro de Inovação Oceânica e Tecnologias Transformativas da Organização dos Estados Americanos na USP. Dele sairá um mestrado profissional que vai unir pessoas da indústria, do poder público e de ONGs em busca de soluções com aplicações práticas. É um movimento crescente.

CH: A Década da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável foi proclamada pela ONU de 2021 a 2030 justamente com a ideia de alertar sobre a necessidade de unir esforços que consigam reverter o declínio da saúde dos oceanos. Como está esse processo?

AT: A Década é um movimento que inocula o oceano nas pessoas, nas instituições, no diálogo com os países. É um movimento incrível com sinais extremamente positivos de capilarização e de estruturação. Já temos quase 30 países com comitês da década do oceano instituídos. O Brasil foi o primeiro, o que insere o oceano inclusive no discurso institucional. O presidente Lula fez dois discursos de cinco minutos sobre o oceano em Nice (na 3ª Conferência das Nações Unidas sobre o Oceano) e em Mônaco (no Blue Economy & Finance Forum). Nunca um presidente brasileiro tinha falado tanto sobre o tema. É um reflexo dessa mudança. E que se desdobra em ações também dentro do país. O Brasil pode ser um grande líder nesse caminho. Já tivemos o dia do oceano, agora a Década, e temos de usá-la de forma estratégica para não precisarmos de um século do oceano.

O oceano é uma fonte gigantesca de energias renováveis e traz uma vastidão de opções para trilharmos um caminho distante da energia fóssil. E o Brasil tem o maior potencial de geração de energia eólica offshore do mundo

CH: A Semana Nacional de Ciência e Tecnologia, ligada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e prevista para de 20 a 26 de outubro, terá como tema a cultura oceânica. Como o evento pode ajudar a ampliar essa conscientização sobre a saúde do oceano?

AT: Efemérides como essa são fundamentais para fortalecer a cultura oceânica. A Semana Nacional de Ciência e Tecnologia vem, então, em um momento muito importante. Pode ajudar a enraizar essa temática também nas escolas, na sociedade. É um pouco do que fazemos na Cátedra UNESCO para a Sustentabilidade do Oceano com o “Movimento Pororoca” que, a partir da “Virada da Maré”, promove a cultura oceânica e que, no ano passado, envolveu 600 mil pessoas. A meta da próxima ação é alcançar um milhão de pessoas, com atividades no Brasil inteiro e no exterior. Trata-se de um movimento colaborativo que precisa ser amplificado, e a Semana Nacional de Ciência e Tecnologia tem grande potencial para alavancar a temática. Ela acontecerá, inclusive, na mesma semana da Rio Ocean Week. São eventos que se somam e formam parte da educação ambiental e da ressignificação da nossa relação com o oceano. Afinal, o Brasil é o país do futebol, do samba, da malemolência, e é o país do oceano também. Isso é inequívoco, mas nem sempre está no imaginário das pessoas. O oceano está em todo lugar. Basta a gente olhar.

CH: Como engajar a sociedade na defesa dos oceanos e mostrar que essa preservação vai além de não jogar lixo no mar?

AT: Por meio da cultura oceânica, busca-se fortalecer o conhecimento que as pessoas têm sobre o oceano, sobre o que ele é, como afeta a vida delas e como elas afetam o oceano. E uma educação efetiva e transformadora inclui informações que levam a escolhas coletivas. Tem a ver também com o que cada pessoa compra, as escolhas que faz, as atitudes que toma quando vê lixo fora de lugar e toma iniciativa de mostrar a outras pessoas que podemos realmente fazer a diferença. Isso não é piegas, nem romântico, nem irreal, é um fato. Além disso, há atitudes coletivas que são fundamentais, como a de eleger tomadores de decisão que se preocupem com esse mesmo posicionamento. Entender quais políticos têm os mesmos valores ligados a sensibilidade, atualidade e consciência das quais o oceano faz parte.

O Brasil é o país do futebol, do samba, da malemolência, e é o país do oceano também. Isso é inequívoco, mas nem sempre está no imaginário das pessoas. O oceano está em todo lugar. Basta a gente olhar

CH: Quais são os maiores riscos para o futuro da vida marinha e humana se ações urgentes de proteção e conservação não forem tomadas?

AT: Os estudos mostram que, se seguirmos nesse ritmo de degradação, a tendência é de mais perda ambiental, destruição de habitats e da biodiversidade. Algumas ameaças são mais desarvoradas e outras mais silenciosas. Por exemplo, se pararmos de jogar lixo no mar hoje e seguirmos tendências de recuperação, esse problema não vai aumentar, ainda que seu legado seja percebido por longo tempo no mar. Com a poluição por esgoto é a mesma coisa, com a exceção de que o ambiente se recuperará mais rapidamente. Mas um dos grandes problemas, efetivamente, são as mudanças do clima, e para que estas sejam revertidas vai demorar muito tempo, décadas, senão séculos. As mudanças do clima nos forçam a ter um sentido de urgência maior. Há também poluentes que são muito perigosos, como metais pesados, e eles precisam ter uma produção controlada, pois se houver vazamentos esses elementos vão permanecer no ambiente para sempre. É necessário realmente controlar as atividades humanas de transformação do território. Isso passa pela avaliação do impacto ambiental, que tem de ser feita de forma muito objetiva e estratégica, com redução dos impactos, e não com projetos como o PL da Devastação. .

CH: Como a COP30, chamada de “COP da floresta”, pode ser também a “COP dos oceanos” e dar mais visibilidade ao tema na agenda climática?

AT: Belém oferece o ambiente perfeito para fortalecer a ligação entre a Amazônia verde e a Amazônia azul, a grande área de oceano sob a jurisdição do Brasil. A ciência já entende o papel do oceano e o nexo oceano-clima na mitigação e na adaptação às mudanças climáticas. Faltam os tomadores de decisão. Sabemos que o oceano é um grande aliado na mitigação dada sua capacidade de sequestrar e estocar carbono e ainda a possibilidade de fontes renováveis de energia. Além disso, se reduzirmos as agressões e as comorbidades ambientais associadas à poluição, sobrepesca, invasão de espécies exóticas e outras questões que tiram sua saúde, o oceano pode nos ajudar a continuar promovendo segurança alimentar, com oportunidades de desenvolvimento da economia azul, que são essenciais para a adaptação às mudanças do clima. Quando governos e tomadores de decisão dialogarem com os cientistas e entenderem esses aspectos, a chance de o oceano se fortalecer como aliado da humanidade aumentará. A Cátedra UNESCO para a Sustentabilidade do Oceano lançou um manifesto pela valorização do oceano e de medidas que precisam ser colocadas em prática para que o oceano cumpra esse papel. É um chamado por compromissos concretos de proteção e investimentos em defesa do oceano dirigido aos membros da COP30. E precisa ir além dela.

A Cátedra UNESCO para a Sustentabilidade do Oceano lançou um manifesto pela valorização do oceano e de medidas que precisam ser colocadas em prática para que o oceano cumpra esse papel. É um chamado por compromissos concretos de proteção e investimentos em defesa do oceano dirigido aos membros da COP30. E precisa ir além dela

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