O papel do oceano no aquecimento global

Instituto Oceanográfico da USP

Cátedra Unesco para Sustentabilidade do Oceano, Rede Ressoa Oceano

O destino do excesso de calor na Terra pode ser indefinido, mas o oceano, como poderoso componente do sistema climático, pode mudar o rumo da história.

CRÉDITO: ADOBE STOCK

A temperatura de nosso planeta é regulada pela quantidade de energia solar que fica retida dentro do sistema climático terrestre, formado por cinco esferas em interação: atmosfera, hidrosfera, criosfera, litosfera/geosfera e biosfera.

Antes de as atividades humanas interferirem significativamente nesse sistema, as maiores ‘mudanças climáticas’ ocorreram por variações na quantidade de energia solar irradiada na Terra. Atualmente, nosso planeta está aquecendo por alterações na quantidade de energia retida/aprisionada, e não de energia recebida.

As ações humanas influenciam de diversas formas a quantidade de energia na Terra; por exemplo: a alteração da paisagem natural (desmatamento, agricultura, urbanização etc.) consiste na troca de superfícies mais claras por outras mais escuras, que refletem menos luz e retêm calor. Mas a principal interferência humana é impedir que a radiação volte para o espaço.

Influência humana

Desde o fim da Revolução Industrial, o crescimento exponencial da queima de combustíveis fósseis tem aumentado drasticamente a quantidade de gases de efeito estufa na atmosfera, retendo energia solar na forma de calor. Se pensarmos na atmosfera como um cobertor em torno da Terra, os gases do efeito estufa tornam esse cobertor ainda mais espesso. A causa e a consequência desse processo são bem estabelecidas. Mas é importante reforçar dois pontos.

Se pensarmos na atmosfera como um cobertor em torno da Terra, os gases do efeito estufa tornam esse cobertor ainda mais espesso

Primeiro, a queima de combustíveis fósseis representa uma grande interferência em ciclos naturais terrestres (sobretudo, o do carbono), já que substâncias que se formaram ao longo de milhões de anos foram introduzidas de volta na atmosfera em poucas décadas. Segundo, ao tornar o cobertor que envolve a Terra mais espesso, a temperatura global aumenta: menos calor volta para o espaço, mais calor fica retido no sistema climático.

O aquecimento global não é uniforme. Regionalmente, ele ocorre como ‘mudanças climáticas’, caracterizadas sobretudo pelo aumento da intensidade e frequência de eventos extremos / desastres naturais, conforme os componentes do sistema climático (as cinco esferas) se reajustam e fazem trocas para redistribuir a energia dentro desse sistema.

Esponja no sistema climático

Os principais componentes atuando nessa redistribuição são a atmosfera e o oceano. Contudo, a alta densidade e o elevado ‘calor específico’ das águas no oceano o tornam o verdadeiro regulador do ‘clima’, enquanto a atmosfera domina o ‘tempo’ (condições meteorológicas de curto prazo). Os primeiros 2,5 metros do oceano tem a mesma capacidade de armazenamento de calor de toda a atmosfera.

Atuando como uma esponja no sistema climático, o oceano já absorveu mais de 30% do excesso de CO₂ e 90% do excesso de calor adicionados na atmosfera pelas atividades humanas desde a Revolução Industrial. Agora, as questões fundamentais para definir a evolução do clima da Terra são: o quanto mais o oceano poderá absorver, como essas propriedades em excesso serão transportadas por suas águas, e o que controla a liberação de calor/CO₂ do oceano.

Um fator determinante é a dinâmica que rege a circulação do oceano. O movimento horizontal e vertical das águas do oceano global é regido pela ‘circulação gerada pelo vento’ e a ‘circulação termo-halina’. Ambas são formas de transferência de energia da atmosfera (o ‘cobertor’ que retém o excesso de energia) para o oceano. A primeira é regida pelo efeito dos ventos na superfície do oceano, modulado pela rotação da Terra; a segunda, por diferenças de densidade, através de aquecimento, resfriamento, evaporação e precipitação.

Na prática, elas atuam de forma inseparável, formando a ‘circulação de revolvimento global’ ou ‘circulação de revolvimento meridional do Atlântico’ (AMOC, em inglês), por ser centrada nessa bacia oceânica. Nas regiões polares, conforme as águas na superfície esfriam e ficam mais salinas, elas atingem uma densidade suficiente para que afundem, pois se tornam mais ‘pesadas’ do que as águas abaixo delas. Então, seguindo o princípio físico de ‘conservação de massa’, é como se as águas fossem se empurrando, pois não podem ocupar o mesmo espaço. 

A partir disso, as águas circulam: as mais densas fluem em altas profundidades para o Equador e outras bacias oceânicas, contornando os continentes, até que sua densidade vai diminuindo ao ponto de retornarem em direção à superfície. Tanto essa ascendência para a superfície quanto o movimento de retorno das águas ‘em superfície’ (os primeiros mil metros) de volta aonde foram formadas são processos influenciados pelos ventos sob o efeito de rotação da Terra. Dessa forma, a AMOC controla a distribuição tridimensional de calor, CO₂ e outras propriedades fundamentais, que moldam, além do clima, outras características químicas, biológicas e geológicas do ambiente, da forma como hoje conhecemos.

O excesso de energia provocado pelo aquecimento global de origem humana afeta todos esses processos envolvidos na AMOC. O aquecimento das águas de superfície, junto ao derretimento de gelo e à intensificação do ciclo hidrológico (aumentando a precipitação regionalmente) implicam a diminuição da densidade das águas, prevenindo que elas afundem. Enquanto a alteração dos padrões de ventos se reflete na alteração de correntes e da estrutura dos giros oceânicos formados por elas. Ou seja, tanto os movimentos verticais quanto os horizontais associados à AMOC passam por uma reorganização para se adaptar ao excesso de energia.

Assim, o oceano Atlântico Sul ocupa uma posição central em meio a mudanças termo-halinas e geradas pelo vento. O cenário final da modulação de seus padrões de circulação por essas interações é especulado, mas ainda incerto.

Para nós, as consequências são a alteração de padrões de tempo e clima, precipitação/seca, nível do mar, tempestades e furacões, ondas de calor e outros fenômenos climáticos, que ainda se estendem a impactos ecossistêmicos e socioeconômicos.

Por um lado, o ‘aquecimento global’ afeta os padrões de funcionamento dos componentes do sistema climático e, por outro, a evolução desses padrões – difícil de prever – dita tanto a distribuição regional quanto a magnitude de futuras taxas de aquecimento global.

A característica mais marcante da mudança climática atual é o fator velocidade: o clima está aquecendo pelo menos 25 vezes mais rápido do que em períodos ‘interglaciais’. Isso dificulta a previsão de como os componentes do sistema climático vão interagir para acomodar o excesso de calor, que cresce a uma taxa sem precedentes.

A mensagem final é: i) o aumento da temperatura global em resposta à emissão de gases do efeito estufa pelas atividades humanas é inequívoco e incontestável; ii) já o destino desse excesso de calor no sistema climático é incerto. De todos os seus componentes, o oceano é o que carrega o maior poder em relação a esse destino. Ele guarda a história da humanidade, o que lhe dá o poder de ditar o rumo dessa história.

*A coluna Cultura Oceânica é uma parceria do Instituto Ciência Hoje com a Cátedra UNESCO para a Sustentabilidade do Oceano da Universidade de São Paulo e com o Projeto Ressoa Oceano, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

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