Cátedra Unesco para Sustentabilidade do Oceano, Rede Ressoa Oceano

Universidade Estadual de Campinas
Rede Ressoa Oceano

A PEC das Praias, que visa a transferir os terrenos de marinha da União para ocupantes particulares, estados e municípios, vai na contramão de iniciativas que buscam proteger a costa brasileira

CRÉDITO: ADOBE STOCK

Foi por volta de 4.000 a.C., quando as pessoas começaram a se organizar em sociedade, que o direito surgiu. É claro que era muito diferente do direito moderno. Mas, basicamente, ele determina o que é certo ou errado, por meio de um conjunto de leis, para uma convivência pacífica entre as pessoas, interferindo na conduta de cada um, com obrigações, punições ou restrições.

O Brasil tem mais de 30 mil leis, e um dos direitos que poderão ser modificados diz respeito às praias. Essa modificação, que vai na contramão de iniciativas que visam à proteção da costa brasileira, surgiu como a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 03/2022, em 2011, na Câmara de Deputados. A autoria é do então deputado federal Arnaldo Jordy (Cidadania-PA) e foi aprovada em fevereiro de 2022. A proposta ficou conhecida como PEC das Praias e visa a transferir os terrenos de marinha da União para ocupantes particulares, estados e municípios.

Segundo o Decreto-lei 9.760/1946, os terrenos de marinha são definidos como todos aqueles de frente para o mar, para rios ou lagos navegáveis que sofrem influência das marés e se estendem em uma faixa de até 33 metros contados a partir da linha do preamar médio (LPM). Essa linha corresponde à média das marés altas em um determinado período, que, nesse caso, se refere ao ano de 1831.

Somam-se a esses terrenos, aqueles acrescidos de marinha – terras que se formaram de forma natural ou artificial, que antes eram cobertas por água ou vegetação e se encontram adjacentes aos terrenos de marinha.

Em algumas regiões, a União permite o uso dos terrenos de marinha como área particular, por meio de dois mecanismos legais. Um deles é o ‘regime de ocupação’, um direito pessoal precário concedido pela União a um particular, para que utilize o imóvel mediante o pagamento da taxa de ocupação, 2% do valor de avaliação do terreno da União, excluídos os direitos sobre o terreno.

Outro mecanismo se refere ao ‘regime da enfiteuse’, também chamado de aforamento, que é o direito real ao particular sobre o imóvel, mediante autorização da Secretaria de Patrimônio da União (SPU). Hoje, existem cerca de 500 mil imóveis cadastrados no país considerados como terrenos de marinha, segundo o Governo Federal. Mas esse número é ainda maior, totalizando quase 3 milhões de imóveis.

Agravantes da PEC das Praias

A fim de retirar a posse da União sobre os terrenos de marinha, a PEC das Praias considera que a legislação que rege atualmente esses terrenos é obsoleta, uma vez que foi criada há 150 anos com a finalidade de exploração econômica (extração de sal, atividade pesqueira, controle da entrada de mercadorias), além das questões de defesa do território nacional.

Contudo, a proteção desses terrenos pela União é hoje de suma importância socioambiental, uma vez que pode garantir a proteção da linha de costa, a preservação de ecossistemas costeiros, como restingas e manguezais, e o uso deles pelas comunidades tradicionais. Por isso, a proposta representa um retrocesso relacionado à preservação e conservação de ecossistemas costeiros e marinhos.

Além disso, essa PEC poderá facilitar a expansão de empreendimentos imobiliários no litoral, comprometendo os ambientes costeiros que protegem a costa e ameaçando o direito ao acesso à praia pela população, o que significa que qualquer pessoa ou empresa poderá fazer o que bem entender com esses terrenos.

Aí é que mora o perigo! Várias praias do Brasil têm locais bastante inacessíveis à população, com residências, resorts e condomínios que bloqueiam ou dificultam o acesso à praia de maneira ilegal, como acontece em Angra dos Reis, Paraty e Guarujá. A PEC, então, ajudaria a regularizar muitos imóveis que estão ilegais, em vez de estimular o cumprimento da lei.

De acordo com o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro (Art. 10 da Lei 7.661/88), as praias são bens públicos de uso comum e, portanto, não podem ser privatizadas. Mas, se a PEC for aprovada, os ocupantes dos terrenos em frente ao mar passariam a ter livre domínio sobre eles, o que poderia dificultar significativamente o acesso público às praias, com proibição parcial ou mesmo total.

Se a PEC for aprovada, os ocupantes dos terrenos em frente ao mar passariam a ter livre domínio sobre eles, o que poderia dificultar significativamente o acesso público às praias, com proibição parcial ou mesmo total

Entre os principais defensores da PEC, estão os setores imobiliário e turístico, que buscam ocupar de forma mais intensiva os espaços costeiros, independentemente das consequências que isso poderá acarretar. Um exemplo é a pressão imobiliária que está acontecendo na região dos Lençóis maranhenses.

A PEC conta com o apoio de Neymar, que tem interesse em concretizar o projeto ‘Caribe brasileiro’, estabelecido por uma parceria do jogador e a DUE Incorporadora, para construção de imóveis de alto padrão à beira-mar, em uma região de 100 quilômetros entre Alagoas e Pernambuco. Além desse, outros projetos apoiam a PEC, como o da Bellavista Portogalo Empreendimentos, que está por trás de condomínios de luxo na cidade de Angra dos Reis (RJ), região em que a família Bolsonaro defende, há anos, transformar em uma ‘Cancún brasileira’.

As intervenções humanas na zona costeira podem causar prejuízos econômicos, sociais e ambientais. Inúmeros especialistas e organizações demonstram a ameaça dessa proposta para o litoral brasileiro. A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), por exemplo, alerta para o risco de aumento da especulação imobiliária e turística, com danos aos biomas.

Já são diversas as regiões de destruição de ecossistemas costeiros, que exercem papel fundamental na proteção da costa contra a erosão, contenção das ondas e alagamentos, que vão ficar mais expostos aos efeitos das mudanças climáticas, como em regiões litorâneas no Ceará e em Santa Catarina.

O Ministério da Pesca e Aquicultura mantém-se contrário à PEC, destacando os riscos às comunidades pesqueiras e aquícolas do país, e a possibilidade de ampliar os conflitos socioambientais, as desigualdades sociais e a especulação imobiliária, deslocando as comunidades tradicionais pesqueiras e outras populações vulneráveis que, historicamente, ocupam essas regiões.

Iniciativas que deveriam inspirar

Mais da metade da população brasileira vive no litoral. Muitas regiões estão ocupadas de maneira intensa, suprimindo ecossistemas costeiros como dunas e praias para dar lugar a calçadas e avenidas à beira-mar.

Em busca de nadar a favor da maré, devemos juntar esforços para lutar contra a aprovação da PEC das Praias e fomentar iniciativas que busquem restaurar e proteger a linha de costa, como o Programa Nacional para Conservação da Linha de Costa (Procosta), o Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima (PNA) e o Guia de Diretrizes de Prevenção e Proteção à Erosão Costeira – ações governamentais que visam a orientar, planejar e promover a gestão de risco e proteção ambiental da costa brasileira com foco na adaptação das mudanças climáticas.

Além dessas ações, há outras que são chaves para a preservação da costa que deveriam inspirar políticas públicas e sociedade. O Projeto CO2 Manguezal, desenvolvido pela Fundação Vovó do Mangue, contribui para a preservação ambiental da Baía de Todos os Santos, a segunda maior do mundo, com a adoção de ações de restauração ambiental em locais impactados por manguezais.

Entre 2001 e 2023, esse projeto produziu 69 mil mudas de mangues nativos, recuperou 8,5 hectares de áreas degradadas dentro da Área de Proteção Ambiental (APA) da baía de Todos os Santos, além de promover a capacitação de diversos pescadores, marisqueiras e estudantes em técnicas de produção de mudas, reflorestamento e educação ambiental.

A PEC das Praias, que teve sua votação adiada devido à pressão popular, não deveria sequer existir, pois é uma proposta que claramente beneficia apenas alguns e gera prejuízo extremo para muitos. É necessário avaliar, seja na esfera municipal, estadual e federal, de que maneira essas regiões – bens comuns de todos os brasileiros – estão sendo conservadas para que possam coexistir em sociobiodiversidade, especialmente para que as pessoas possam usufruir desses ambientes, tornando-as mais felizes e saudáveis. E não apenas aquelas que têm poder de compra de um imóvel à beira-mar.

A PEC das Praias, que teve sua votação adiada devido à pressão popular, não deveria sequer existir, pois é uma proposta que claramente beneficia apenas alguns e gera prejuízo extremo para muitos

*A coluna Cultura Oceânica é uma parceria do Instituto Ciência Hoje com a Cátedra UNESCO para a Sustentabilidade do Oceano da Universidade de São Paulo e com o Projeto Ressoa Oceano, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

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