Físico e divulgador de ciência no canal Ciência Nerd
Universidade Federal de Juiz de Fora

Muito presente em enredos de filmes de super-heróis, a ideia de que há diferentes universos paralelos e que é possível transitar entre eles é uma interpretação da teoria da mecânica quântica bastante investigada por cientistas, mas ainda sem comprovação científica

A existência de universos paralelos, em que uma pessoa tem versões diferentes de si mesma em cada um deles, é um elemento que permeia os enredos dos filmes mais recentes dos Estúdios Marvel

CRÉDTIO: MARVEL WORLDWIDE/MARVEL ENTERTAINMENT

Você já assistiu a algum filme de super-heróis e, no final, após uma grande batalha e a derrota de um poderoso vilão, ficou com a sensação de que estava tudo resolvido para sempre e nenhuma ameaça nova iria surgir?

Esse era o exato sentimento dos físicos no final do século 19, quando muitos acreditavam que tudo estava descoberto, que não havia mais mistérios da natureza para a física descobrir.

A teoria eletromagnética, brilhantemente elaborada pelo físico e matemático escocês James Clerk Maxwell (1831-1879), dava conta de explicar praticamente todos os fenômenos envolvendo a luz, as radiações, a eletricidade e o magnetismo. A termodinâmica, estrela da revolução industrial, nos possibilitava conhecer com precisão o comportamento dos gases e estava plenamente consolidada. Eram poucos os fenômenos que ainda não encontravam explicações na física.

No entanto, da mesma forma que, em cada novo filme, surgem novos vilões e novas ameaças, a natureza não se cansa de nos presentear com fenômenos inexplicáveis e que desafiam todo o conhecimento humano.

Para contornar algumas dessas questões que não tinham explicação científica, o físico alemão Max Planck (1858-1947) encontrou um artifício matemático que não aparentava fazer muito sentido no mundo real, mas resolvia alguns problemas da física.

Planck propôs que a energia presente na luz não poderia ser emitida ou absorvida de maneira contínua, mas sim na forma de ‘pacotes’ com quantidade fixa. Esse pacotinho, que concentra a menor porção de energia possível para uma determinada radiação, pode ser chamado de quantum de luz ou fóton. E, por meio de uma equação muito simples, denominada ‘relação de Planck-Einstein’, demonstrou-se que a energia contida em cada um desses pacotinhos dependia exclusivamente da frequência (ou seja, da cor) da luz.

A tese de que a energia é quantizada (ou seja, existe em quantidades fixas e específicas) foi tão revolucionária, afrontava tantos conceitos científicos bem estabelecidos e desafiava tanto nossa intuição e senso comum, que muitas das maiores mentes daquela época se opuseram a essa nova física, a física quântica.
Mas os infindáveis experimentos que se seguiram e as inúmeras tecnologias que surgiram baseadas nessa nova física não deixaram dúvidas: o que acontece em escala subatômica (ou seja, entre partículas menores que o próprio átomo) é absolutamente diferente do que nós observamos no mundo macroscópico.

O mundo quântico

CRÉDTIO: QUERIDA, ENCOLHI AS CRIANÇAS/DIVULGAÇÃO

Existe certo fascínio na ficção pela experiência de ser encolhido até o tamanho de uma formiga e observar o mundo por essa perspectiva. Filmes como Querida, encolhi as crianças e Homem-formiga e até jogos, como Grounded, nos mostram as muitas consequências dramáticas de ter o tamanho de um inseto, algo que nós, gigantes, não sofremos.

Mas, se pudéssemos ser encolhidos até o tamanho de uma molécula ou mesmo de um átomo, não teríamos apenas uma mudança de perspectiva e de referencial, nós estaríamos em um mundo onde aquilo que chamamos de leis da física funcionam de modo completamente diferente e estranho.

Para o mundo macroscópico que conhecemos, a segunda lei de Newton é o instrumento matemático que nos permite prever o que acontecerá com um sistema a qualquer momento, dadas algumas condições iniciais. Na escala quântica, quem faz esse papel é a equação de Schrödinger, elaborada pelo físico austríaco Erwin Schrödinger (1887-1961).

Uma importante diferença entre as duas equações é que, na física clássica, podemos prever com exatidão a posição e a velocidade de um corpo em determinado instante. Já na escala quântica, a solução da equação de Schroedinger não nos diz exatamente onde está o elétron ao redor de um átomo. Ela nos permite conhecer qual a probabilidade desse elétron estar em cada uma das posições possíveis. Portanto, trata-se de um resultado probabilístico.

Dizendo de outra maneira, se o Hulk está correndo em círculos e seu movimento for corretamente descrito por equações matemáticas, seremos capazes de calcular, a qualquer instante, qual será sua posição no espaço e sua velocidade. Por outro lado, se o Homem-formiga está no mundo quântico orbitando um átomo, tal como um elétron, não seremos capazes de prever matematicamente onde ele está, mas sim a probabilidade de ele estar em cada lugar teoricamente possível.

Em vários lugares ao mesmo tempo

CRÉDTIO: MARVEL WORLDWIDE/MARVEL ENTERTAINMENT

Se você joga uma moeda dentro de uma caixa escura, duas coisas podem acontecer: ou ela cairá com a cara para cima, ou ela cairá com a coroa para cima. A chance de a moeda estar, ao final, em cada um desses dois ‘estados’ é de 50%. Quando a moeda cai no fundo da caixa, ou o resultado será cara, ou será coroa.

No mundo quântico, por sua vez, existe um princípio denominado sobreposição, que garante que um sistema (em escala quântica) existe em todos os estados teoricamente possíveis simultaneamente. Isso significa que um mesmo elétron está, ao mesmo tempo, em vários lugares e até em lugar nenhum. Todas essas possibilidades coexistem. É como se a moeda, no nosso mundo, permanecesse dentro da caixa no estado de cara, de coroa, de metade cara e metade coroa, de 25% cara e 75% coroa etc. Tudo isso ao mesmo tempo.

As coisas ficam ainda mais estranhas quando submetemos o átomo a algum experimento específico, que o faça interagir com outros objetos macroscópicos. Quando isso ocorre, todos esses estados sobrepostos se colapsam em um único estado e o elétron se torna ‘localizável’. Sempre que observamos um fenômeno quântico por meio de experimentos, a sobreposição simplesmente não ocorre. Ou seja, nunca somos capazes de observá-la.
Embora seja completamente estranha e impossível de ser observada, a sobreposição de estados de um sistema quântico faz todo sentido do ponto de vista matemático e é um postulado fundamental para que toda a teoria quântica funcione.
Uma pergunta ainda sem respostas é em que momento esse colapso dos vários estados ocorre. No famoso experimento de ‘Stern-Gerlach’, que demonstra o caráter ondulatório do elétron, esse colapso poderia acontecer em quatro momentos: 1) na interação do átomo com um instrumento detector; 2) no processo de amplificação, que fornece energia ao sistema e faz com que um número imenso de elétrons seja ejetado de seus átomos; 3) na realização de um registro macroscópico dos elétrons por meio de um instrumento de medida de sinais elétricos chamado osciloscópio; ou 4) na observação por um ser consciente, ao analisar os dois osciloscópios usados no experimento.

Apesar das lacunas de conhecimento e das perguntas sem respostas, todo o formalismo matemático da mecânica quântica e os resultados experimentais são muito concordantes e isso a torna uma das teorias científicas mais bem-sucedidas da história. No entanto, o significado dela no mundo real ainda é bastante obscuro e, por isso, são muitas as interpretações que circulam dentro da comunidade científica.

Universos paralelos

CRÉDTIO: WANDA VISION/DIVULGAÇÃO

Uma das interpretações da mecânica quântica, nascida nos anos 1970, é a ‘interpretação dos muitos mundos’ (IMM). Surgida a partir da tese de doutorado do físico norte-americano Hugh Everett III (1930-1982), a hipótese propõe que todo o universo poderia se comportar como um sistema quântico, capaz de ser descrito por uma função de onda (assim como os átomos). Portanto, o princípio de superposição de estados também se aplicaria a todo e cada componente do universo.

Nessa interpretação, o aparente colapso que ocorre no processo de medição seria nada mais que uma ilusão, decorrente do fato de que nosso cérebro se acoplaria a um desses estados específicos, não tendo acesso aos demais estados. É como se nosso cérebro nos prendesse a uma das realidades paralelas e nos impossibilitasse de ter acesso às demais.

Dessa forma, alguns eventos (como o processo de medição) fariam o universo ser ramificado em vários outros, que coexistiriam e não entrariam em colapso.
Após a publicação de sua tese de doutorado, Everett abandonou a física, decepcionado com a ausência de respostas. A sua ideia, no entanto, permaneceu. E, mesmo sem evidências empíricas que corroborem sua hipótese, a ciência ainda não foi capaz de refutá-la; por isso, permanece como uma ideia plausível e que é alvo de muitas pesquisas científicas.

O multiverso é algo antigo nos quadrinhos. Desde 1977, com a publicação da revista What if, diversos universos paralelos vêm sendo criados nas histórias. Mais recentemente, um dos elementos mais importantes, que permeia todos os enredos da fase quatro do universo cinematográfico da Marvel (que compreende os lançamentos de 2021 e 2022), é justamente a existência de diferentes universos paralelos e a possibilidade de transitar entre eles. Essa fase começou a ser construída a partir de séries como Loki e WandaVision, e ganhou mais profundidade com filmes como Homem-aranha: sem volta para casa e Doutor Estranho no multiverso da loucura.

Se, por um lado, o multiverso ajuda a misturar personagens de diferentes histórias e épocas, dar novas personalidades a personagens conhecidos e até trazer de volta personagens que já haviam morrido; por outro lado, a enorme quantidade de universos criados gerou grandes confusões na cronologia das histórias.
Apesar da forte presença de componentes mágicos e místicos nos filmes dos Estúdios Marvel, há uma preocupação dos diretores e roteiristas de manter um pé firme na ciência. E, no caso dos universos paralelos, não foi diferente.

Portanto, podemos dizer que o multiverso da Marvel, no qual uma mesma pessoa possui versões diferentes em cada um dos universos, é uma trama que tem fortes ligações com a ciência, embora seja uma área bastante especulativa e controversa.

Em fevereiro de 2023, poderemos assistir nos cinemas o filme Homem-formiga e a Vespa: quantumania. No enredo, Scott Lang (o Homem-formiga) e sua família são acidentalmente puxados para o Reino Quântico, um lugar muito difícil de acessar e quase impossível de sair.

Além da propriedade de sobreposição de estados, existem muitos outros fenômenos estranhos e surpreendentes que ocorrem com sistemas em escala quântica, como o tunelamento quântico (já explorado em outro texto desta seção), o emaranhamento quântico (que é quase uma forma de teletransporte), entre outros. Será que alguns deles serão explorados no filme? Sabendo que a obra está sendo feita sob a consultoria do físico Spiros Michalakis, do Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech), é justo esperar, no mínimo, bons paralelos com a física quântica.

Por fim, é importante dizer que a interpretação dos muitos mundos, embora defendida e até investigada por alguns cientistas, não é sequer vista como científica por tantos outros, por ser impossível de ser testada. Se, de fato, temos acesso apenas à realidade (ou ao universo) ao qual estamos inseridos e os demais nos passam despercebidos, como seremos capazes de observar e provar a existência deles?

Como ainda não temos uma tecnologia que nos possibilite viajar entre os multiversos, assim como Wanda (de WandaVision) e America Chaves (heroína de Doutor Estranho no multiverso da loucura), ou observá-los com instrumentos de medida, nem experimentos que demonstrem os efeitos quânticos em objetos macroscópicos, essa interpretação da mecânica quântica não tem tanto peso quanto outras na comunidade científica. Mas seu potencial no universo dos quadrinhos parece estar longe de se esgotar.

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