Escola Sem Partido: origens e ideologias

O movimento Escola Sem Partido se fortaleceu nos últimos anos e se espalha em projetos de lei Brasil afora, na tentativa de implementar a censura em sala de aula e dar um fim ao Estado laico. O tema está cada vez mais presente na imprensa, nas redes sociais e nos discursos dos políticos e suscita um debate bastante polarizado. Apesar disso, o desconhecimento sobre o que está por trás desse movimento ainda é grande. Este artigo discute como nasceu e quais ideologias sustentam o Escola Sem Partido.

 

Temas como Escola Sem Partido e as chamadas ‘ideologia de gênero’ e ‘doutrinação ideológica’ entraram de vez para o repertório de conversas dos brasileiros nos últimos meses. Apesar da popularização e da polarização desse debate, que está na imprensa, nas redes sociais e nos discursos dos políticos, o desconhecimento sobre o que está por trás desse movimento, que se fortaleceu nos últimos anos, ainda é grande. E as expressões escolhidas para apresentar essa pauta conservadora iludem muitos simpatizantes, pois significam o exato oposto do que o movimento é na realidade. Ou seja, existem sim ideologia e partidos na raiz e no crescimento dessa onda de ‘desideologização’ das salas de aula.

 

Uma breve história do movimento

Para entender essa história, é preciso voltar ao não tão longínquo ano de 2003, quando o movimento começou. Segundo o seu fundador e também coordenador, o procurador do Estado de São Paulo Miguel Nagib, o professor de história de uma de suas filhas teria comparado Che Guevara, um dos líderes da revolução cubana, a São Francisco de Assis. Tudo teria nascido da simples revolta de um pai… Mas não é bem assim.

O que a história contada pelo movimento não diz é que Nagib foi membro do Instituto Liberal de Brasília, cuja missão é defender e difundir valores neoliberais com o apoio financeiro de grandes grupos econômicos. Foi nesse espaço seu maior contato com as teses de Nelson Lehmann da Silva e Olavo de Carvalho, ideólogos da concepção de ‘doutrinação’ na educação brasileira. Também foi nesse espaço que Nagib conheceu o sociólogo Bráulio Porto de Matos, hoje vice-coordenador do movimento Escola Sem Partido (ESP).

Outra parte não contada da história é que Nagib era articulista do Instituto Millenium, outro que defende e trabalha pelo neoliberalismo e para o qual escreveu, entre outros, um artigo intitulado ‘Por uma educação que promova os valores do Millenium’. Nesse artigo, de 2007, deixava claro que, para ele, a educação deveria ser lócus de difusão dos ideais neoliberais. Discurso muito diferente do que faz quando fala como coordenador do movimento ESP (desde 2004 até hoje) e diz que seu objetivo é combater a doutrinação nas escolas.

 

Um movimento com partidos

Apesar de seu coordenador fazer parte dos círculos do poder, como o Instituto Liberal e o Millenium, o movimento foi insignificante por praticamente 10 anos. Apenas em 2014, o ESP começou a ser levado a sério, quando o deputado estadual Flavio Bolsonaro encomendou a Nagib um projeto de lei de censura aos professores, que o próprio político sugeriu batizar de Programa Escola Sem Partido. O deputado foi então o primeiro a apresentar um projeto de lei que trata de ESP em uma casa legislativa, a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), o que foi imediatamente copiado por seu irmão Carlos Bolsonaro, em nível municipal, na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro.

Em 2016, o ESP decidiu influir mais abertamente nas eleições e divulgou, na página da internet onde listava seus anteprojetos de lei, santinhos de candidatos que assinassem o termo de compromisso com o movimento. Assim, com representantes eleitos, o ESP pôde se espalhar ainda mais por todo o país. No dia 15 de agosto de 2017, o Movimento Brasil Livre (MBL) criou um dia nacional de mobilização pelo Escola Sem Partido, que foi responsável por dobrar o número de projetos de lei (PL) sobre o tema naquele ano.

Começou então a corrida presidencial de 2018. Nestas eleições, já com mais de 150 projetos em todo o Brasil e a crença difundida na sociedade de que há doutrinação de esquerda e de gênero acontecendo nas unidades escolares, o ESP voltou a atuar abertamente nas eleições. Desta vez, inclusive, declarando apoio a um candidato à Presidência, Jair Bolsonaro, do PSL, mesmo havendo outros dois postulantes que também defendiam seus ideais – Henrique Meirelles (MDB) e Cabo Daciolo (Patriota). Ainda durante a campanha e nos dias imediatamente posteriores à eleição do candidato do PSL, houve uma enxurrada de denúncias contra professores. Um início do que está por vir: se aplicarem o que está sendo declarado, o Escola Sem Partido se tornará uma política de governo.

 

Afinal, o que dizem os projetos de lei? 

O projeto com nome Programa Escola Sem Partido que tramita em nível federal é o PLn.o 867/2015, de autoria do deputado Izalci Lucas (PSDB/DF), e “inclui, entre as diretrizes e bases da educação nacional, o ‘programa escola sem partido’”, ou seja, incide sobre a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Para tanto, o projeto de oito páginas sugere, assim como os outros projetos de lei sobre o Escola Sem Partido, afixar nas salas de aula e nas salas dos professores das escolas um cartaz supostamente divulgando a “liberdade de aprender” dos alunos. Na verdade, o cartaz contém apenas uma série de proibições (desnecessárias) aos docentes.

Em seu artigo 7º, o projeto de lei estabelece que as secretarias de educação criarão um canal de comunicação destinado ao recebimento de reclamações relacionadas ao descumprimento dessa lei, assegurando o anonimato do reclamante, ou seja, um disque-denúncia contra professores. Ainda segundo o projeto, a lei aplicar-se-ia também aos livros didáticos e paradidáticos, às avaliações para o ingresso no ensino superior, às provas de concurso para o ingresso na carreira docente e às instituições de ensino superior.Ou seja, sobre a totalidade das políticas públicas para educação.

Como sua principal base legal, projeto evoca o artigo 12 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, segundo o qual “os pais têm direito a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”. Segundo o projeto de lei, “cabe aos pais decidir o que seus filhos devem aprender em matéria de moral” e “um Estado que se define como laico – e que, portanto, deve ser neutro em relação a todas as religiões – não pode usar o sistema de ensino para promover uma determinada moralidade, já que a moral é, em regra, inseparável da religião”. Apenas não menciona que esse mesmo artigo 12 refere-se à liberdade religiosa e à esfera privada e não à educação e à esfera pública.

Um projeto de ‘desinformação’ em curso

Como o discurso da ‘doutrinação ideológica’ e da ‘ideologia de gênero’ se retroalimentam, vale a pena conferir outro projeto do deputado Izalci Lucas, o PLn.o 1859/2015, que acrescenta o seguinte parágrafo único ao artigo 3º da LDB: “A educação não desenvolverá políticas de ensino, nem adotará currículo escolar, disciplinas obrigatórias, ou mesmo de forma complementar ou facultativa, que tendam a aplicar a ideologia de gênero, o termo ‘gênero’ ou ‘orientação sexual’”.

Ao longo de 16 páginas,o projeto traz em sua justificativa, de mais de 14 páginas, argumentos que são repetidos em inúmeras falas conservadoras sobre gênero. Citam-se os nomes de Karl Marx, Friedrich Engels, Kate Millett, Max Horkheimer, John Money, Michel Foucault, Judith Butler e Shulamith Firestone e do padre José Eduardo, de Osasco (SP), que propaga a ideia de que todos o intelectuais anteriormente citados defendiam o ‘totalitarismo’ da ‘ideologia de gênero’. Citam-se também supostos trechos de A ideologia alemã, de Marx e Engels, e de A origem da família, da propriedade privada e do Estado, de Engels, seguidos de longas interpretações. As citações não trazem nem a edição da obra e nem a página, porque simplesmente não existem.

O historiador José Luís Derisso, professor da Universidade Estadual do Oeste do Paraná(Unioeste), já demonstrou como frases dos livros originais são deslocadas e recontextualizadas no projeto, sendo colocadas lado a lado para criar um novo significado que passe a ideia de que Marx e Engels planejaram uma conspiração comunista para destruir a família, base da sociedade e, assim, acabar com o Estado e o sistema capitalista. A teoria da conspiração continua quando se explica que essa “revolução cultural sexual de orientação neomarxista” foi tramada pela Organização das Nações Unidas (ONU), pela delegação dos Estados Unidos e pela própria ex-primeira-dama americana e ex-senadora Hillary Clinton, candidata à Presidência pelo Partido Democrata em 2016.

 

Conservadorismo e fundamentalismo religioso

A maioria dos propositores de PLs de censura à educação faz parte da chamada ‘bancada da Bíblia’, isto é, são membros da Frente Parlamentar Evangélica ou da Frente Parlamentar Mista Católica Apostólica Romana. Como destaca o deputado Givaldo Carimbão, criador e líder da frente católica, os dois grupos atuam juntos politicamente na defesa de algumas das pautas mais reacionárias no Congresso Nacional hoje. São contra a ‘ideologia de gênero’, defendem o Escola Sem Partido, são contra o aborto, a eutanásia, a pesquisa com células-tronco, defendem ‘comunidades terapêuticas’ religiosas como espaço adequado para tratamento de dependentes químicos, a volta da educação moral e cívica nos currículos escolares e o ensino religioso confessional nas escolas públicas.

 

Negação do Estatuto da Criança e do Adolescente 

O educador Luiz Antônio Cunha, professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, aponta a existência de um projeto reacionário para a educação que se daria em duas frentes: uma teria o objetivo de fazer a contenção da laicidade do Estado e da secularização da cultura, como o Escola Sem Partido e outros projetos similares de censura à educação que vedam a discussão de gênero na escola; a outra teria o objetivo de impor a moral cristã e seria marcada pelo ensino religioso (mormente confessional) e por disciplinas como a moral e cívica, em que a moral ensinada é sempre a moral cristã.

Esses grupos fundamentalistas naturalizam o modelo de família nuclear (pai, mãe, filhos), que é uma construção social, e o apresentam como criação divina. Essa origem extraterrena daria à família direitos superiores aos do Estado e também superiores aos dos seus próprios membros, principalmente quando se trata de mulheres e crianças. A própria utilização do artigo 12 da Convenção Americana dos Direitos humanos (citada anteriormente) para restringir o acesso das crianças e adolescentes apenas a informações que sejam do desejo das famílias deixa evidente que o projeto se baseia na negação da criança e do adolescente como sujeitos de direitos.

Em um país onde 70% dos casos de estupro têm como vítimas crianças e adolescentes e, na maioria das vezes, o agressor é um conhecido ou membro da família, esses grupos querem negar o acesso dos jovens às discussões sobre gênero e sexualidade, alegando que estas resultam em uma “sexualização precoce”. Também defendem que o aborto deve ser proibido em qualquer caso, inclusive em gravidez decorrente de estupro ou que represente perigo para a vida da mãe, como é o caso das gestações de adolescentes e pré-adolescentes. São, ainda, os mesmos grupos que trabalham pela redução da maioridade penal, alegando que um jovem de 16 anos tem plena consciência de todos os seus atos. Em suma, adolescentes podem ser pais e mães, podem ser presos, só não podem ter garantido o seu direito constitucional à liberdade de aprender.

 

Os efeitos já são sentidos nas salas de aula

É importante destacar que, apesar da enorme quantidade de projetos apresentados, o ESP só está em vigor em um número ínfimo de municípios; e no único estado em que foi aprovado, Alagoas, teve sua validade suspensa por uma liminar do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso, que reconheceu a inconstitucionalidade dos projetos de lei do ESP. O julgamento definitivo ainda vai acontecer. Entretanto, os efeitos já são sentidos. O discurso de ódio contra os professores está difundido e são muitos os docentes que estão sendo perseguidos, filmados e expostos nas redes sociais, linchados virtualmente e ameaçados de agressões, morte e estupro. A categoria já está, nesse momento, sofrendo perseguições típicas de regimes autoritários. São comuns as comparações com a situação de medo vivida por professores no período do macarthismo nos Estados Unidos, na ditadura militar brasileira e no regime nazista.

Muitos professores já estão se autocensurando e desistindo de abordar temas polêmicos na visão do ESP, como teoria da evolução, Big Bang, aquecimento global, reforma agrária, inquisição, nazismo, ditadura militar, dentre outros. É a liberdade de aprender, ensinar e divulgar o saber que está em risco, e, consequentemente, a própria democracia. Os ataques, que já haviam se tornado comuns na educação básica, se alastraram também para a universidade no período eleitoral. E a fórmula anunciada como capaz de acabar com a suposta doutrinação na educação é o ensino à distância e a privatização das instituições de ensino públicas, incluindo as universidades. O Escola Sem Partido é também uma estratégia de desmonte da ciência brasileira.

Fernanda Pereira de Moura

Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Ensino de História,
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro

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