Fé islâmica na cultura pop: separando fatos de ficções

Físico e divulgador de ciência no canal Ciência Nerd
Universidade Federal de Juiz de Fora

A mídia propaga imagens distorcidas e preconceituosas dos muçulmanos, em geral associados a fanatismo religioso, autoritarismo, violência, misoginia e ameaça a direitos básicos, sem levar em conta a diversidade existente no Islã

CRÉDITO: ADOBE STOCK PHOTOS

O Islã é a segunda maior religião do mundo, atrás apenas do cristianismo, e reúne cerca de 23% da população mundial, sendo os árabes minoria atualmente

Qual imagem vem à sua mente quando você pensa em uma pessoa muçulmana, ou seja, que tem o Islã como religião? Como você descreveria uma pessoa de etnia árabe? E que o sentimento você tem quando vê essas pessoas, seja em um filme, na televisão ou pessoalmente?

Provavelmente, a imagem que você tem de árabes e muçulmanos é muito mais baseada no que você consome na mídia do que propriamente no contato com essas pessoas e no estudo de fontes confiáveis de informação. 

É muito comum o Islã e os árabes serem associados a práticas terroristas, à opressão da mulher por meio da obrigação do uso do véu, à falta de civilidade e à ausência de direitos humanos. Mas será que essas características realmente definem os quase dois bilhões de muçulmanos que existem e que compõem a segunda maior religião do planeta?

Fabricando um inimigo

Em 11 de setembro de 2001, os Estados Unidos sofreram um atentado às Torres Gêmeas e ao Pentágono, o que causou a morte de quase três mil pessoas. Esse evento se tornou um marco histórico e teve profundas repercussões na política interna do país e nas suas relações internacionais. 

A autoria dos ataques foi atribuída ao grupo terrorista Al-Qaeda e seu líder Osama bin Laden. Baseada no Afeganistão, essa organização tinha como objetivo conter a influência ocidental em países de religião islâmica e substituir seus governos por regimes fundamentalistas. Embora a ideologia violenta e exclusivista do grupo não represente a diversidade do mundo islâmico e seja contestada por lideranças religiosas e populações muçulmanas, a imagem que se construiu foi a de que esse grupo era de fato um representante da religião.

Esses atentados desencadearam a chamada ‘guerra ao terror’ nos Estados Unidos, uma série de operações militares e de segurança interna que tinha como objetivo destruir organizações consideradas terroristas (em especial a Al-Qaeda) e ampliar os poderes do governo norte-americano para exercer maior vigilância e controle sobre a população.

Paralelamente, a imprensa, o cinema e a cultura pop começaram a contar histórias utilizando-se dos novos vilões do momento. Árabes e muçulmanos se tornaram praticamente sinônimos de terrorismo e o Islã passou a ser enxergado, cada vez mais, como uma religião destrutiva e perigosa.

Os filmes das franquias Vingadores e Homem de Ferro trazem exemplos notáveis de como os temas da segurança nacional e global e do terrorismo começaram a ser mais explorados após o 11 de setembro. 

Mas, afinal, o que há nessa religião de tão perigoso assim?

O Islã e a islamofobia

O Islã é a segunda maior religião do mundo, atrás apenas do cristianismo, e a que mais cresce em número de adeptos. Os muçulmanos (pessoas adeptas ao Islã) representam cerca de 23% da população mundial. 

Embora o Islã seja a maior religião nos países de predominância árabe, existem árabes que professam outras religiões, assim como existem muçulmanos de outras etnias e países, inclusive brasileiros. Na realidade, dentre aqueles que professam o Islã, os árabes são minoria hoje. A maioria se concentra na Ásia, seguida da África.

O Islã nasceu no século 7, a partir dos ensinamentos e das pregações do profeta Muhammad (também chamado de Maomé). Conta-se que o profeta começou a receber revelações divinas que envolviam justiça social, moralidade, cuidado com os necessitados, além da existência de um único Deus, Allah. Seus ensinamentos foram registrados no Alcorão, livro sagrado em que se baseia o Islã. 

No século 20, ideologias políticas baseadas no Islã se fortaleceram, dando origem a sistemas jurídicos e governos autointitulados islâmicos. É indiscutível que alguns países que aplicam essas leis possuem graves problemas de direitos humanos. Mas é importante saber separar o Islã (enquanto religião) da sua utilização política e jurídica. A religião traz valores e orientações sobre o melhor caminho a se seguir, mas a transformação disso em leis e a aplicação de punições é uma extrapolação que está sujeita aos interesses políticos e econômicos de pessoas e Estados. 

Também é notório que existem organizações terroristas que praticam uma série de crimes bárbaros pelo mundo, alegando agirem com base nos princípios do Islã. Mas a realidade é que esses grupos fazem interpretações completamente deformadas do texto sagrado, com o objetivo de justificar todo tipo de atrocidade que cometem. Os muçulmanos, em sua maioria, rejeitam essas interpretações extremistas e sequer reconhecem esses grupos como verdadeiramente islâmicos.

Por isso, o medo, a suspeita, o ódio e toda a gama de emoções negativas contra muçulmanos são totalmente injustificados e entendidos como islamofobia, que frequentemente se materializa em atitudes de hostilidade, assédio e violência. Ela é fruto da combinação do desconhecimento sobre a religião com o excesso de imagens deturpadas sobre essas pessoas na mídia e na cultura pop.

Na religião, não há nada de perigoso, extremista ou violento, muito pelo contrário. O Islã prega a prática de boas ações, a justiça, a caridade, o amor ao próximo e a Deus. Até Jesus, figura central do cristianismo e o maior exemplo dos valores cristãos, é tratado pelos muçulmanos com muito respeito, afeição e amor, sendo considerado por eles um dos maiores profetas que existiram, um importante mensageiro da palavra divina. 

Mesmo assim, o Islã costuma ser tratado na mídia e na cultura pop de maneira superficial, estigmatizada e negativa. Um estudo científico que analisou mais de 900 filmes de Hollywood, de 1894 até hoje, chegou à conclusão de que os espectadores são sempre levados a acreditar que todos os árabes são muçulmanos (e vice-versa) e que são fanáticos religiosos, brutais, incivilizados e sem coração, dotados de ódio por judeus e cristãos.

As influências da cultura pop

A animação Aladdin, da Disney, promove o estereótipo dos árabes como um povo bárbaro e violento, com uma cultura opressiva e controladora

 CRÉDITO: DIVULGAÇÃO

Em 1992, foi lançada a animação Aladdin, pela produtora Walt Disney. A história se passa na cidade fictícia de Agrabah (inspirada na região do Oriente Médio) e acompanha a vida de um jovem pobre que se apaixona por uma princesa e tenta conquistá-la com a ajuda de um gênio mágico. 

Na primeira música do filme, ‘Noites da Arábia’, havia um trecho que dizia (em tradução livre): “eu venho de uma terra, de um lugar distante, onde os camelos da caravana vagam; onde eles cortam sua orelha se não gostam do seu rosto. É bárbaro, mas ei, é meu lar”.

A música se refere a uma região do Oriente Médio, o que significa que ela apresentava árabes e sua terra como um lugar bárbaro, selvagem, violento. A música gerou tamanha revolta que órgãos que combatiam a discriminação racial contra os povos árabes conseguiram rapidamente fazer com que a Disney ao menos retirasse a referência a cortar a orelha. 

Há também uma cena em que a princesa Jasmine está passeando com Aladdin fora do castelo e pega uma maçã de uma feira para dar a uma criança pobre. Como consequência, um personagem árabe, muito caricato e com cara de mau, grita com Jasmine. O homem puxa a mão da princesa, coloca ela sobre uma mesa de madeira e ergue sua espada para cortá-la. Por pouco, Aladdin consegue contornar a situação, mas as marcas de corte que vemos na madeira sugerem que outros ladrões de maçã não tiveram a mesma sorte. 

O novo filme do Aladdin, um live-action lançado em 2019, tentou evitar os erros do seu antecessor consultando um conselho formado por acadêmicos, ativistas e artistas do Oriente Médio e do Sul da Ásia e muçulmanos. É um acerto da Disney se preocupar com essas questões e até ter corrigido alguns problemas mais graves de estereótipos da obra anterior. 

No entanto, o Conselho de Relações Americano-Islâmicas emitiu um comunicado afirmando que o “mito de Aladdin está enraizado no racismo, no orientalismo e na islamofobia”. O texto afirma que o cenário e o desenvolvimento do personagem continuam a promover estereótipos, resultando na perpetuação de ideias e imagens islamofóbicas.

Islã e as mulheres

As mulheres muçulmanas são vistas como submissas, sofredoras e que precisam ser salvas da opressão religiosa

O Islã é frequentemente acusado de ser uma religião misógina que oprime e inferioriza as mulheres, principalmente pela obrigação do uso do véu. Por isso, as muçulmanas são vistas como submissas, sofredoras e que precisam ser salvas da opressão religiosa. No cinema, as poucas personagens muçulmanas costumam ser tratadas como coitadas, que precisam ser resgatadas por um herói ocidental.

A princesa Jasmine, por exemplo, vive presa em seu castelo e anseia por escapar dessa cultura opressiva e controladora. E ela é ‘salva’ justamente pelos dois personagens mais ‘americanizados’ da obra. Um deles é Aladdin, que, embora árabe, tem uma jornada similar a muitos heróis americanos e é apresentado como um jovem esperto, belo, corajoso e gentil (em contraste com os demais personagens árabes, que são preguiçosos, malvados e sem muita inteligência). E o outro é o gênio, que faz várias piadas e referências à cultura ocidental. Até o sotaque de ambos é mais próximo de um norte-americano médio, enquanto o dos demais personagens é bastante caricato.

Além de serem tratadas como coitadas, frequentemente vemos filmes em que árabes e muçulmanas são extremamente sexualizadas, como dançarinas do ventre em trajes que mostram o máximo possível de seus corpos.

Mas o problema se torna realmente grave quando a islamofobia e o machismo deixam as telas e se materializam em ações. Há relatos de muçulmanas brasileiras serem proibidas de usar o lenço em ambientes de trabalho, receberem insultos, cuspes, pedradas e ameaças de morte na rua e ouvirem frases do tipo “volte para o seu país” ou “cuidado, a terrorista vai explodir”. O ‘I Relatório de Islamofobia no Brasil’, coordenado pelo Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos e Árabes da Universidade de São Paulo, é um ótimo documento para quem deseja conhecer melhor o cenário da islamofobia no país.

Em alguns lugares do mundo, o burquíni (traje de banho que cobre o corpo inteiro e é usado por algumas muçulmanas) e outros tipos de véu são muito malvistos ou até proibidos. A justificativa que se usa é de que a vestimenta é um símbolo da opressão da mulher e isso não está de acordo com os valores republicanos do país em questão. 

Como explica a antropóloga e professora da Universidade de São Paulo (USP) Francirosy Campos Barbosa, o véu é uma obrigação religiosa e não uma imposição dos homens. Ela, que também é muçulmana e pesquisadora do Islã, afirma que se sente muito confortável com seu lenço, como se já tivesse nascido com ele, além de dizer que o lenço é a própria oração, uma devoção a Deus, e isso as pessoas precisam saber e respeitar.

Embora o Islã seja frequentemente associado a atraso, autoritarismo, misoginia e ausência de direitos e liberdade, a religião foi um marco importante na criação de diversos direitos para as mulheres, considerando o contexto em que ela surgiu. O Islã deu às mulheres o direito à educação e ao estudo; o direto ao voto e à participação política; o direito ao casamento com consentimento, à satisfação sexual, ao divórcio e à herança; e o direito à proteção contra o abuso e a violência (principalmente a doméstica). 

É claro que existem países e grupos onde as mulheres muçulmanas são forçadas por homens a se comportarem e se vestirem de determinadas formas. Mas isso não é exclusivo de comunidades islâmicas. A misoginia existe em todos os lugares, religiões, etnias, etc.

Combatendo a islamofobia

Em um contexto de crescente islamofobia e distorção da imagem de muçulmanos e árabes, é importante que os meios de comunicação e a sociedade questionem essas representações simplistas e até racistas. O Islã é uma religião rica, diversa, com inúmeras ramificações e professada por pessoas no mundo inteiro. Suas práticas e crenças precisam ser compreendidas livres dos estigmas gerados por essas narrativas distorcidas. 

É inegável que o uso político do Islã, assim como de qualquer outra religião ou filosofia, pode levar a violações graves de direitos humanos e à opressão da mulher, mas é importante separar a fé islâmica das ações de grupos extremistas minoritários que distorcem seus ensinamentos. 

Por fim, o combate à islamofobia passa pela educação, pelo diálogo e pela busca de uma compreensão mais profunda da diversidade religiosa e cultural.

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