Físico e divulgador de ciência no canal Ciência Nerd
Universidade Federal de Juiz de Fora

A presença de traços físicos tipicamente infantis gera nas pessoas uma resposta afetiva capaz de despertar empatia e interesse e até ativar mecanismos de recompensa no cérebro, efeitos que podem ser usados com fins mercadológicos

CRÉDITO: ADOBE STOCK

Algumas características físicas, como cabeça desproporcionalmente grande, bochechas rechonchudas, olhos e testa grandes, nariz e boca pequenos, são consideradas traços de fofura, que têm um forte apelo psicológico nos seres humanos

Qual a sua reação ao assistir a um vídeo de gatinho nas redes sociais, ou brincar com algum filhote de cachorro, ou mesmo assistir a um desenho animado com personagens fofos? Como você se sente ao ver um bebê, de olhos e bochechas grandes? 

É inegável que filhotes de animais e bebês humanos possuem algo que os torna tão adoráveis, desperta sentimentos de afeto e cuidado e nos faz querer interagir, dar carinho, brincar. Até os adultos mais sérios têm dificuldades de resistir à fofura, chegando ao ponto de se comportarem de maneira infantil, imitando sons, como se também fossem bebês.

As causas e os efeitos da fofura nas pessoas vêm sendo estudados por pesquisas científicas há bastante tempo. E você talvez não faça ideia do quanto ela é poderosa e do quanto ela é usada, principalmente, para vender produtos!

O que é a fofura?

Em 1943, o zoólogo austríaco Konrad Lorenz (1903-1989), especialista em comportamento animal, publicou um artigo propondo que os bebês têm algumas características físicas que nos fazem percebê-los como fofos e provocam em nós uma resposta afetiva. 

Cabeça desproporcionalmente grande, bochechas rechonchudas, olhos e testa grandes, nariz e boca pequenos são algumas das características que Lorenz denominou kindchenschema (esquema infantil, em português).

Em seu estudo, que se tornou referência na área, Lorenz afirma que esses traços tipicamente infantis funcionam como um disparador de emoções inato, ou seja, nossa reação a eles seria uma espécie de instinto e não algo aprendido ou adquirido por experiências culturais. 

Ao longo dos anos, pesquisas científicas investigaram as afirmações de Lorenz e corroboraram muitas de suas descobertas. Bebês e crianças com maior nível de kindchenschema (ou seja, que têm essas características infantis em maior quantidade ou intensidade) provocam maior percepção de fofura, empatia, atenção prolongada, interesse em cuidar e brincar e até mesmo ativam mecanismos de recompensa no nosso cérebro. 

Outras pesquisas mostram que crianças em idade pré-escolar tendem a perceber mais qualidades como amizade, bondade e coragem em seus colegas mais atrativos (ou com maiores níveis de fofura). Por outro lado, crianças com menos traços de fofura que cometem alguma transgressão tendem a ser percebidas como mais desonestas e desagradáveis do que crianças fofas que têm o mesmo comportamento.

O papel da fofura na natureza

Você já deve ter percebido o quanto um bebê humano é extremamente dependente dos pais. Diferentemente de filhotes de tantos outros animais, os bebês nascem incapazes de andar, de suportar o próprio peso, de sustentar até mesmo o próprio crânio, além de demorarem muito mais tempo para sair da infância e se tornar independentes.

Por isso, a fofura dos bebês e crianças mais novas desempenha um papel fundamental para o estímulo ao cuidado parental e, consequentemente, para a sobrevivência e o desenvolvimento infantil.

Bebês frequentemente possuem comportamentos indesejáveis, impedem os pais de terem noites de sono adequadas e demandam enorme gasto de energia e tempo. Mesmo diante dessas adversidades, os pais tendem a ser mais atenciosos, pacientes e flexíveis com os bebês. Imagine uma criança mais madura oferecendo esses mesmos desafios. Será que qualquer pai, mãe ou responsável teria a mesma atenção, carinho e paciência que têm com o bebê? 

Alguns estudiosos, como a antropóloga norte-americana Sarah Hrdy (1946-), acreditam que esses traços associados à fofura foram selecionados ao longo da evolução da espécie humana, já que favorecem a sobrevivência da espécie e a chegada à fase adulta. 

Além disso, também existem pesquisas demonstrando que crianças bem pequenas (e, portanto, com menor vivência e bagagem cultural) respondem à fofura de forma similar aos adultos, sugerindo que essa resposta biológica à fofura é realmente inata e não uma construção social.

Com seus olhos pequenos em uma cabeça desproporcionalmente grande, a personagem Hello Kitty foi criada dentro da estética kawaii (expressão cultural japonesa que enaltecia a fofura) e logo se tornou um fenômeno mundial

A fofura em outras espécies

À medida que um animal envelhece, ele tende a perder características típicas da sua forma mais jovem. Identificamos facilmente essas mudanças na nossa espécie humana: surgimento de pelos e alterações na voz, no sistema esquelético e no muscular. 

Alguns animais, no entanto, parecem fugir um pouco dessa regra. Você já viu um axolote? Essa salamandra aquática originária do México é tão fofa que, mesmo adulta, tem cara de filhote. O que acontece é que esse anfíbio consegue preservar na idade adulta características físicas do seu estágio larval, o que faz com que ele não apenas pareça um filhote, mas tenha a saúde de um, já que também é capaz de regenerar membros inteiros (incluindo nervos, músculos e ossos).

A preservação de características juvenis na fase adulta, que recebe o nome de neotenia, também é observada em outras espécies e até em nós, humanos. 

Esse é o caso dos cachorros. Foram muitos anos de pesquisa e muitas descobertas arqueológicas até a ciência chegar ao consenso de que o cachorro é uma espécie descendente do lobo cinzento. Mas os primeiros cães que surgiram eram bem diferentes dos que vivem conosco hoje. 

Não se sabe ao certo como e quando isso aconteceu, mas, há pelo menos 10 mil anos, os cães começaram a ter um contato mais amistoso e uma convivência cada vez maior com a espécie humana. Com o tempo, essas duas espécies começaram a se ajudar, o que facilitou a sobrevivência dos cachorros, levando a um ‘amansamento’ da espécie. 

Ao serem isolados dos cães selvagens e viverem em ambientes mais protegidos (sem sofrer com fatores de seleção natural, como a predação e a fome), os cães domésticos passaram por uma espécie de seleção artificial, obtendo características muito diferentes dos seus ancestrais. 

Os cães foram adquirindo tamanho menor, orelhas mais caídas e cauda mais enrolada. Foram perdendo o uivo, que deu lugar ao latido. O pelo monocromático foi se tornando malhado (com manchas), o focinho foi ficando menor, a cabeça, mais arredondada e a mandíbula, mais recuada. E o mais curioso é que todas essas características que os cachorros estavam adquirindo eram comuns aos filhotes de lobo, com a diferença de que, na idade adulta, os lobos as perdiam. 

Certamente, essas características neotênicas (típicas de filhotes) nos cães adultos foram sendo propagadas para gerações futuras devido à preferência dos humanos por elas e ao fato de eles cuidarem mais dos cachorros de aparência e comportamento mais dócil.

Outra evidência poderosa do poder da domesticação na transformação de uma espécie é o experimento iniciado por Dmitry Belyayev (1917-1985) na década de 1960. O zoólogo soviético passou décadas domesticando raposas-prateadas, selecionando para reprodução apenas aquelas que apresentavam mais proximidade com humanos. Com o tempo, as raposas perderam o medo de humanos, aprenderam a abanar o rabo e lamber os humanos como sinal de afeto, suas orelhas caíram e os rabos enrolaram. Atualmente, a raposa-vermelha-doméstica se assemelha muito a um cachorro, tanto na aparência quanto no comportamento.

O mercado da fofura

Se a fofura tem um forte apelo psicológico, sendo muitas vezes associada a sentimentos de nostalgia, conforto e felicidade, é claro que, em algum momento, ela começaria a ser usada com fins mercadológicos. 

Um exemplo emblemático é o Mickey Mouse, o maior símbolo da Disney. Quando foi criado, em 1928, o ratinho tinha aparência adulta e era travesso, mal comportado, chegando até a demonstrar crueldade. Com o passar dos anos, Mickey foi adquirindo traços infantis, ficando mais fofo e amigável. Outros personagens de animação icônicos, como Pato Donald, Pica-pau e Stitch, também passaram por essa transformação, enquanto alguns mais recentes, como o amado bebê Yoda, já foram criados dentro desse padrão infantil (kindchenschema).

Apesar dos vários exemplos ocidentais, foi no Japão que o mercado da fofura se tornou enorme, influenciando o mundo inteiro. 

Na década de 1960, uma expressão cultural japonesa começou a se popularizar entre os jovens. O kawaii, como ficou conhecido, era um movimento que enaltecia a fofura, a inocência, a delicadeza e a infantilidade. Se, no início, o fenômeno estava restrito ao comportamento, à escrita e à forma de se vestir dos jovens, mais tarde ele foi sendo incorporado por outras esferas culturais.

Criada dentro da estética kawaii, a personagem Hello Kitty surgiu em 1974 e logo se tornou um fenômeno global. A gatinha branca sequer precisava de boca para encantar as pessoas. Seus olhos pequenos em uma cabeça desproporcionalmente grande e todas as suas demais características físicas e comportamentais já eram suficientes para que ela se comunicasse tão bem com o público a ponto de ser mundialmente amada.

Com a disseminação da cultura kawaii pelo mundo (que contou com o grande auxílio dos animes), a fofura se tornou uma indústria bilionária. As quatro franquias mais valiosas da história, segundo a plataforma de dados alemã Statista, são: Pokémon (com receita de mais de 100 bilhões de dólares), Hello Kitty (com mais de 84,5 bilhões de dólares em vendas), Ursinho Pooh e Mickey Mouse (ambos com receita de mais de 80,3 bilhões de dólares cada). Apenas na quinta posição vemos um produto fora da estética fofa: a franquia Star Wars (que também se rendeu à fofura com o bebê Yoda na série ‘O Mandaloriano’), com mais de 68,7 bilhões de dólares em vendas.

Uma explicação para esse sucesso comercial é uma mudança de perspectiva das pessoas. Quando produtos deixam de ter valor meramente utilitário e passam a carregar significados, simbolismos, sentimentos, o consumo deixa de ter a única finalidade de atender necessidades práticas e passa a ser uma maneira de se realizar desejos, de suprir necessidades psicológicas. A fofura cumpre esse papel ao nos provocar instintos de cuidado e afeto, ao nos remeter à infância, ao estimular sentimentos bons.

E não pense que a publicidade se vale da fofura apenas na criação de personagens humanos ou animais. Você certamente já viu alguma propaganda (ou ao menos um desenho animado) em que objetos eram antropomorfizados, ou seja, eram apresentados com características humanoides (e, claro, com a estética infantil, para ficarem bastante fofos). Um exemplo clássico foi a campanha publicitária ‘A vida secreta das roupas’, do amaciante Comfort, em que peças de roupas ganhavam membros e rostos.

Agora que você já sabe os efeitos que a fofura causa em nós, que tal assistir a um vídeo de gatinhos ou de bebês fazendo coisas fofas ou engraçadas? Mas cuidado para não comprar um monte de coisas quando estiver sob efeito da fofura!

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