De médico a cobaia: Stubbins Ffirth e a febre amarela

Instituto de Microbiologia Paulo de Góes
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Na busca por descobrir como era transmitida a doença que matava milhares anualmente nos Estados Unidos, o norte-americano tentou diferentes formas de se contaminar e até bebeu vômito

CRÉDITO: WIKIMEDIA COMMONS

A febre amarela é considerada, atualmente, uma doença de regiões tropicais, especialmente América do Sul e África, mas, nos séculos 18 e 19, era um problema de saúde pública grave nas cidades costeiras do Leste dos Estados Unidos, especialmente no Sudeste, nas regiões portuárias. Mesmo limitados aos meses de verão, os surtos da doença eram muito perigosos e, sempre que uma nova chegada era detectada, a população ficava em pânico, pois sabia que muitas pessoas poderiam morrer. Para piorar a situação, as autoridades sanitárias não tinham certeza quanto à natureza da febre amarela – ninguém sabia como era transmitida e o que fazer para evitá-la.

Foi nesse cenário que a cidade de Filadélfia foi abatida por um grande surto de febre amarela em 1793. Mais de 5 mil pessoas morreram em apenas três meses, o que correspondia a cerca de 10% da população local. Grande parte dos habitantes fugiu da cidade, deixando o governo federal paralisado, já que, na época, a Filadélfia era a capital do país. A rápida sucessão de epidemias de febre amarela na Filadélfia e em outros locais desencadeou um estado emergência, e o governo dos Estados Unidos se viu pressionado a responder aos clamores da população por métodos de controle da doença. Diversos médicos e pesquisadores foram recrutados e se prontificaram a trabalhar no problema e entender melhor a doença. Um deles, um jovem médico ainda em treinamento, se destacou por sua obstinação em provar que a febre amarela não é contagiosa.

Stubbins Ffirth nasceu em 1784 na pequena e pacata cidade de Salem, Nova Jersey, e era um rapaz comum. Em 1801, mudou-se para Filadélfia, onde estudou medicina na Universidade da Pensilvânia até a formatura em 1804. Durante sua formação, Stubbins atendeu muitos pacientes com febre amarela em seguidos surtos que abateram a região. Os sintomas da doença já eram bem conhecidos: no início, são parecidos com o de uma gripe comum – dor de cabeça, febre e dores musculares. Depois de dois ou três dias, o paciente se sente melhor, até com a sensação de que sua gripe passou. Logo depois, começa a segunda fase da doença, quando o vírus se espalha para órgãos internos, como os rins e o fígado. Nessa fase, a pele e a esclera dos olhos (a parte branca) das pessoas infectadas ficam amareladas devido ao mal funcionamento do fígado, um fenômeno chamado de icterícia. É exatamente desse sintoma que vem o nome da doença. A hemorragia interna causada pelo vírus faz com que o paciente vomite sangue, que era chamado de “vômito preto” (O sangue escurece devido a oxidação e degradação das hemácias). A morte ocorre devido a essa intensa hemorragia interna, geralmente entre cinco a dez dias após o início da segunda fase. Felizmente, apenas um pequeno percentual de infectados são acometidos pela segunda fase da doença.

Em busca da fama

Ffirth sabia que a febre amarela se espalhava rapidamente em surtos que matavam centenas, às vezes milhares, de pacientes, mas isso acontecia apenas nos meses de verão. Ninguém entendia como a doença era transmitida, e ele sabia que o primeiro a descobrir ganharia fama. Assim, ele criou a hipótese de que a febre amarela não era uma doença contagiosa, mas sim um efeito colateral de toda a diversão típica do verão: calor, excesso de comidas e bebidas, barulho, festas, ou seja, todos os excessos do veraneio. Obcecado por desvendar o mistério da doença e agarrado a sua hipótese, ele decidiu provar que não desenvolveria a febre amarela, não importava o quanto fosse exposto à doença. Ou seja, que não havia transmissão direta de pessoa para pessoa. E foi a partir daí que ele deu início a uma série de experimentos tenebrosos…

Ffirth elegeu a si mesmo como cobaia para os experimentos, que foram se tornando mais e mais perigosos. Primeiro ele passou a dormir em leitos ocupados por vítimas de febre amarela, sem contrair a doença. Depois ele coletou o vômito preto dos pacientes terminais, e usou esse material para inocular animais no laboratório. Observando que esses animais não desenvolveram a doença, ele decidiu inocular sua própria pele. Fez um pequeno corte entre o cotovelo e o punho do braço esquerdo e introduziu o vômito preto na ferida. Uma breve resposta inflamatória aconteceu no local, mas os sintomas sumiram rapidamente. Ainda sem desenvolver a doença, inoculou seu braço direito, mas nada aconteceu.

O médico, então, decidiu testar outros métodos de inoculação. Pingou o vômito preto no próprio olho, depois cozinhou esse material em uma frigideira e inalou a fumaça produzida. Ainda insatisfeito, ele vaporizou o material em um quarto fechado, um tipo de sauna, e passou mais de duas horas respirando esse vapor. Ele também produziu e ingeriu pílulas com o material e, mais tarde, ingeriu o próprio vômito preto fresco diluído em água.

Hipótese errada

Apesar de todas as tentativas, Ffirth não se contaminou com febre amarela, mas também não se deu por satisfeito, e resolveu se inocular com outros fluidos biológicos dos pacientes, como sangue, saliva, urina, bile, suor e urina. Assim, ele concluiu que a febre amarela não apenas não era contagiosa, como também não era uma doença infecciosa.

Hoje nós sabemos que suas conclusões estavam erradas. A febre amarela é causada por um vírus do gênero Flavivírus, o mesmo do vírus da dengue e da zica. Sabemos também que alguns vírus são transmitidos por insetos, como mosquitos e carrapatos, e por isso são chamados de Arbovírus (do inglês ARthropod BOrne VIRUSES, que significa ‘vírus transmitidos por artrópodes’), que não é uma classificação taxonômica oficial, mas um tipo de apelido. Além da transmissão pelo mosquito, a febre amarela pode ser transmitida por sangue infectado, em casos de transfusão e transplante de órgãos, por exemplo, mas a transmissão direta, de pessoa para pessoa, é muito rara.

Mas se a febre amarela é realmente uma doença infecciosa e contagiosa, como podemos explicar que Ffirth tenha sobrevivido aos experimentos? Existem algumas hipóteses para explicar essa “sorte”. Primeiro, devemos lembrar que ele vivia numa região com muitos casos de febre amarela e já atendia pacientes acometidos da doença, então é provável que ele tenha desenvolvido imunidade ao vírus. Outro ponto importante é que os pacientes de quem ele coletou material já eram terminais, um estágio da doença onde poucos vírus estão sendo produzidos, e a carga viral é baixa ou indetectável em fluidos biológicos como o sangue. O vômito preto, por exemplo, passou pelo pH ácido do estômago e não contém muitas partículas virais viáveis.

Por que ele foi tão obstinado a provar que estava certo a ponto de beber o vômito de um paciente com febre amarela? Ninguém sabe ao certo, mas alguns acreditam que ele estava obcecado pela possibilidade de se tornar famoso em um estágio tão inicial da carreira. Por outro lado, nós sabemos que Ffirth já trabalhava com pacientes de febre amarela durante sua formação médica, e, nesse período, ele testemunhou o sofrimento de pessoas abandonadas pelas famílias, que tinham medo de se infectar. Talvez o médico estivesse tentando demonstrar que não havia perigo para a família, e seus entes queridos podiam permanecer próximos em vez de serem abandonados para morrer em hospitais.

Solução à cubana

Foram necessários mais de 100 anos para que a forma de transmissão da febre amarela por mosquitos fosse comprovada. Graças ao trabalho de um médico cubano chamado Carlos Finlay (1833-1915), que apresentou sua teoria sobre a transmissão da doença por mosquitos, o mistério começou a ser solucionado. Em 1881, Finlay participou de um congresso internacional de medicina e apresentou a hipótese de que o mosquito Culex fasciatus, atualmente chamado de Aedes aegypti, é o agente transmissor da febre amarela. Apesar de correta, a ideia foi ridicularizada pelos seus colegas médicos, que a consideraram fantasiosa. Finlay realizou centenas de experimentos em pessoas que se expuseram voluntariamente à picada de mosquitos infectados, mas seus resultados eram inconclusivos. Em grande parte, devido a falhas na metodologia.

Vinte anos depois, em 1900, uma comissão de quatro médicos americanos liderados pelo famoso cirurgião Walter Reed (1851-1902) viajou para Cuba para testar a hipótese de Finlay. Novamente, humanos voluntários foram usados como cobaias em experimentos de infecção. Os próprios médicos americanos que estavam na comissão participaram de experimentos com mosquitos infectados, e um deles, Jesse Lazear (1866-1900), faleceu devido à febre amarela. Pouco se sabe sobre a carreira médica de Stubbins Ffirth após o episódio do estudo com pacientes de febre amarela. Ele se mudou para a Carolina do Sul, onde se casou e passou a exercer a profissão de médico. Ele faleceu em 1820, com apenas 36 anos.

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