Pensamento arqueológico nas telas

Físico e divulgador de ciência no canal Ciência Nerd
Universidade Federal de Juiz de Fora

Muito além da representação da arqueologia em filmes como Indiana Jones, alguns jogos que nem sequer incluem personagens arqueólogos, como ‘The last of us’, podem proporcionar uma experiência mais real de como acontecem os estudos nessa área

CRÉDITO: IMAGEM DIVULGAÇÃO “THE LAST OF US”

O que Indiana Jones, Lara Croft (da série de jogos e filmes Tomb Raider), Dan Garret (Besouro Azul), Jackie Chan e Tio Patinhas têm em comum? Todos eles têm a arqueologia como profissão ou hobby, embora exerçam essa atividade de formas muito diferentes.

Frequentemente, a arqueologia é apresentada na cultura pop como uma atividade cheia de aventuras, perigos, viagens e objetos preciosos de valor inestimável. Indiana Jones, o icônico personagem de George Lucas e Steven Spielberg, é certamente o arqueólogo mais conhecido da ficção. Interpretado pelo ator Harrison Ford, o aventureiro ficou famoso por proteger relíquias de vilões usando sua pistola e seu chicote.

Mas será que a arqueologia da ficção se assemelha à do mundo real? Será que Indiana Jones é uma boa representação do verdadeiro arqueólogo? E mais: você sabia que alguns jogos que não possuem nenhum personagem arqueólogo podem nos ajudar a compreender melhor a mentalidade arqueológica?

Escavando memórias

Até os anos 1600, a maior motivação das expedições arqueológicas era adquirir artefatos, como moedas, armas, estatuetas e vasos, para compor coleções. As coletas eram feitas sem muitos cuidados e sem a preocupação de registar o local e as condições em que os objetos foram encontrados.

Nos anos 1800, o trabalho arqueológico já havia se tornado bem mais detalhista e cuidadoso. As coleções de artefatos foram se tornando mais organizadas e sistematizadas. Foi também nessa época que o colonialismo europeu estava atingindo seu auge, com as grandes potências expandindo seus domínios para os continentes africano e asiático. Expedições financiadas por governos tomaram das terras invadidas centenas de milhares de objetos, que hoje fazem parte do acervo de grandes museus europeus.

Embora tenha sido usada, em muitos momentos, para fins mercadológicos e colonialistas (e sem muitas preocupações éticas), a arqueologia se consolidou como uma importante área da ciência, que nos permite estudar o passado humano por meio da descoberta e da interpretação de vestígios materiais deixados por civilizações antigas, como construções, utensílios domésticos, objetos pessoais e documentos. 

Diferentemente do que vemos nos filmes, arqueólogos não são meros caçadores de tesouros (nem de dinossauros, como muitos acreditam), são como detetives, interessados em desvendar a cultura, os hábitos cotidianos, as tecnologias, o funcionamento da economia de povos que já não existem há muito tempo. Parte grande dessa cultura material encontra-se soterrada pela ação da natureza e do tempo. Por isso, é necessário fazer escavações e usar ferramentas e técnicas que não coloquem em risco esses materiais tão antigos.

Uma investigação arqueológica passa por diversas etapas. Inicialmente, é importante fazer uma busca por locais de interesse, que tenham potencial para a descoberta de vestígios que possam trazer informações sobre civilizações do passado. Muitos desses locais são descobertos por acaso (durante a realização de uma obra, por exemplo), mas também é possível descobri-los com algumas tecnologias, como o georradar (GPR) e o sensoriamento remoto por satélite. Conhecimentos prévios sobre o local e sobre a história e a cultura da região também auxiliam nessa investigação.

Antes de se iniciar uma escavação, os pesquisadores precisam passar por um processo burocrático de autorizações por parte do governo. As licenças exigidas para atuar em um sítio arqueológico servem para garantir que a escavação não trará impactos ao patrimônio nem ao meio ambiente. 

Durante as escavações, o espaço delimitado é tratado como uma cena de crime. Tudo é feito com muita cautela e utilizando ferramentas delicadas, como espátulas, colheres, pincéis, pinças. Todo o material de interesse arqueológico encontrado é devidamente registrado, fotografado e pode ser levado para o laboratório para análises mais detalhadas, como a definição de sua idade.

Após finalizada uma escavação (que pode levar de meses a anos), todo o material é analisado e os pesquisadores produzem relatórios e artigos científicos para comunicar suas descobertas.

A arqueologia nos permite estudar o passado humano por meio da descoberta e da interpretação de vestígios materiais deixados por civilizações antigas

CRÉDITO: ADOBESTOCK

Ambientes contam histórias

Agora imagine que você está jogando um jogo, explorando um universo desconhecido pela perspectiva do seu personagem, até que chega a uma vila abandonada. Se não houver um narrador para te dar informações, como você vai saber onde está, o que aconteceu naquela vila, para onde foram as pessoas que moravam ali, por que elas não estão mais lá, se é perigoso você dormir nesse lugar? 

Para responder essas perguntas, você pode olhar para o ambiente ao seu redor. A vila tem sinais de destruição, as casas têm sinais de arrombamento, objetos foram deixados para trás? Uma análise mais minuciosa dessa vila abandonada pode dar informações sobre as pessoas que viveram ali, seus hábitos, sua alimentação, sua cultura.

Todo ambiente conta histórias por meio de seus elementos materiais, mas a leitura dessa história, a interpretação dos vestígios, é fortemente influenciada pelo contexto. Se você sabe que está jogando um jogo de zumbis, ou se você tem informações de que essa vila fica próxima a um covil de mercenários perigosos, seu olhar para as evidências será afetado.

Como afirma Don Carson, designer e ilustrador que trabalhou por anos no design de parques temáticos da Disney, descobrir por si mesmo pode ser muito mais prazeroso do que ter a história revelada nos créditos iniciais. Mas, para que um jogador consiga construir uma história na sua cabeça, o ambiente deve conduzi-lo, por meio dos objetos, dos cenários, da arquitetura. E aí entra o trabalho dos desenvolvedores de jogos, que devem construir ambientes preocupados não apenas com a estética, mas também com a história que eles irão contar para o jogador.

Muitos jogos se preocupam em entregar ambientes ricos em vestígios, em pistas que revelam informações sobre o enredo. Mas um artigo científico recente destacou um desses jogos em particular – ‘The last of us’ – e demonstrou como a sua mecânica e dinâmica permitem (e até exigem) que o jogador adote uma ‘mentalidade arqueológica’ enquanto joga.

A arqueologia em ‘The last of us’

‘The last of us’ é uma série de jogos eletrônicos de ação e sobrevivência que acompanha a jornada de Joel e Ellie em um mundo pós-apocalíptico, assolado por uma infestação de fungos que transformou grande parte da população em criaturas hostis, similares a zumbis.

A história começa com Joel, um carpinteiro e contrabandista endurecido por uma tragédia que vivenciou, sendo encarregado de transportar Ellie, uma adolescente imune à infecção, para um grupo de rebeldes conhecido como Vaga-lumes. 

À medida que Joel e Ellie atravessam regiões perigosas e enfrentam inúmeros perigos juntos, desde encontros com humanos hostis até criaturas infectadas, a relação deles começa a mudar. Forma-se entre eles um vínculo profundamente humano, com altos e baixos, com momentos de conflitos e de ternura e empatia. 

Quando observamos os cenários de ‘The last of us’, somos obrigados a encarar a humanidade em ruínas. Prédios, ônibus escolares e parques completamente degradados e tomados pela natureza. Em uma perspectiva arqueológica, as ruínas são um lembrete do poder destrutivo (e inevitável) do tempo, são o triunfo da natureza sobre a cultura. Observar ruínas é estar diante do que sobrou de civilizações passadas, mas também é estar diante daquilo que restará de nós no futuro.

No mundo real, é comum estudarmos povos que viveram há séculos ou mesmo milênios e que tiveram sua cultura material completamente soterrada. No jogo, nos deparamos com diversos vestígios, objetos e memórias materializadas advindos de um passado bem próximo. Apenas 20 anos separam o início do surto do momento em que Joel e Ellie se conhecem. Mas mesmo ainda existindo pessoas que viveram aquele passado antes da infecção, ele parece tão distante e inalcançável quanto as civilizações antigas são para nós.

Alguns dos diálogos mais interessantes e divertidos do jogo são aqueles em que Ellie (que nasceu já após o surto) se depara com objetos de um passado que não viveu e tenta decifrá-los, tenta desvendar como as pessoas viviam antes do apocalipse. Revistas, desenhos de crianças, brinquedos, fotos de família, cartas, bilhetes, mensagens escritas na parede e até um caminhão de sorvete dão pistas sobre um passado totalmente estranho à realidade de Ellie.

Você já deve ter notado que jogar ‘The last of us’ vai muito além de enfrentar mercenários e zumbis, é um verdadeiro exercício de arqueologia, onde objetos do passado vão te dando pistas e te ajudando a reconstruir a história de uma civilização que não existe mais. E nem sempre essa investigação do passado é tão óbvia, nem sempre o quebra-cabeça tem todas as peças disponíveis, o que gera confusão e frustração, tanto nos personagens quanto nos jogadores. Essa sim é uma representação bem mais precisa de como a pesquisa arqueológica acontece no mundo real.

No jogo eletrônico ‘The last of us’, os personagens andam por um cenário em ruínas e se deparam com objetos de um passado não tão distante, mas bem diferente do mundo pós-apocalíptico em que a história se passa

CRÉDITO: IMAGEM DIVULGAÇÃO “THE LAST OF US”

A arqueologia é uma ciência complexa, que exige conhecimentos, recursos e muito investimento. Mas o pensamento arqueológico, o exercício de desvendar o passado a partir da descoberta e interpretação de artefatos e construções advindas desse passado, é algo que está ao alcance de todos nós, seja em um jogo ou filme, seja naquele baú de antiguidades de algum familiar.

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