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Série inspirada em jogo eletrônico mostra cenário apocalíptico causado pela disseminação mundial de doença fúngica que deixa os infectados agressivos. Mas o que há de real nessa história?
Na série The last of us, os seres humanos são infectados por um fungo que domina totalmente o seu corpo e os deixa agressivos e ferozes
CRÉDITO: FOTO DIVULGAÇÃO
‘The last of us’ é uma franquia de jogos eletrônicos de ação e aventura desenvolvida pela Naughty Dog e lançada para a plataforma PlayStation em 2013. O jogo se tornou um fenômeno, aclamado pela crítica especializada e pelo público, e conquistou inúmeros prêmios, devido à sua envolvente história, aos seus complexos personagens, ao belíssimo e assustador cenário pós-apocalíptico e à sua forma de jogar divertida e desafiadora.
Recentemente, a plataforma de streaming HBO Max lançou a série The last of us, um sucesso de crítica que vem se mostrando bastante fiel ao jogo, mas, ao mesmo tempo, ampliando o seu universo e dando mais profundidade aos personagens.
A história nos apresenta um fungo capaz de infectar pessoas e, inicialmente, deixá-las irracionalmente agressivas. A descoberta tardia desse fungo permitiu que ele fosse exportado para o mundo todo por meio da farinha de trigo e produtos derivados.
No dia 26 de setembro de 2013 (ou 2003, no caso da série de TV) aconteceu o chamado ‘dia do surto’, em que a infecção se tornou mundial e incontrolável, os infectados ganharam as ruas e todos os lugares ficaram perigosos. O exército e a guarda nacional receberam ordens para matar quaisquer pessoas que eles suspeitassem estar infectadas, já que a doença as deixa agressivas e ferozes.
A morte de tantas pessoas levou à queda das instituições. Uma das poucas que restaram foi a Fedra (Agência Federal de Resposta a Desastres). Com o tempo, foram criadas zonas de quarentena, para manter a população saudável isolada e tentar manter uma ordem social.
Nesse contexto, The last of us acompanha a jornada de dois sobreviventes: Joel (um carpinteiro que acabou se tornando um contrabandista) e Ellie (uma garota que, por razões misteriosas, é imune a essa infecção).
O fungo causador desse apocalipse, chamado Cordyceps, é inspirado em um fungo real, do gênero Ophiocordyceps, que parasita formigas (e sobre o qual já falamos em outro texto desta seção). Ao longo da jornada de Joel e Ellie, descobrimos as diferentes fases pelas quais um infectado passa, desde as mais humanas até as mais monstruosas, em que o corpo da pessoa já está completamente tomado pelo patógeno.
Diante das explicações científicas trazidas pelo jogo e pela série, muitas pessoas na internet expressaram seus medos e suas dúvidas a respeito das chances de acontecer algo parecido no mundo real.
Será que o risco de vivenciarmos uma pandemia fúngica (e um apocalipse zumbi) é real e deve ser motivo de preocupação?
Fungos são seres vivos muito peculiares, diferentes de outros com os quais estamos mais habituados, como plantas, animais e bactérias. Eles geralmente são formados por uma rede de filamentos muito finos chamados de hifas, que costumam ser visíveis apenas por microscópio. Essas hifas se ramificam em várias direções, formando uma enorme rede, que recebe o nome de micélio. Os fungos podem ser pequenos e impossíveis de serem observados a olho nu, mas também podem crescer tanto a ponto de formarem estruturas macroscópicas.
Uma estrutura muito conhecida, pertencente aos fungos do filo Basidiomycota, é o cogumelo, nome popular dado à parte responsável pela reprodução sexuada desses fungos, chamada de basidioma. Existem vários tipos de cogumelos, alguns são amplamente usados na gastronomia (como o shitake, o shimeji e o champignon), outros são alucinógenos (como o Psilocybe cubensis), e muitos são extremamente tóxicos (como a Amanita phalloides).
Um elemento marcante do jogo ‘The last of us’ que não foi incorporado à série é a presença de esporos dos fungos em alguns ambientes. Os esporos são células reprodutivas que se espalham com a ajuda do vento, da água e de animais. Se um esporo cai em um ambiente com condições adequadas, ele pode germinar e formar uma nova rede de hifas. Embora os esporos do jogo sejam bem grandes e visíveis, muitos são tão pequenos que não conseguimos enxergar, mas estão presentes em abundância no ar que respiramos.
A inalação desses esporos, a ingestão de alimentos contaminados ou mesmo o simples acúmulo de esporos na pele podem ser o suficiente para o desenvolvimento de uma doença, principalmente em pessoas que estão com a imunidade mais baixa.
Os fungos podem ser transportados até alimentos e formar mofos, bolores. Ingerir alimentos com sinais visíveis de colônias de fungos pode ser perigoso para a saúde
CRÉDITO: FOTO ADOBE STOCK
Em uma cena da série, vemos um infectado no chão (repleto de cogumelos e outras estruturas de fungos ao seu redor) transmitir uma informação para um grande grupo de infectados que estava muito distante dali. Isso foi possível porque o Cordyceps forma uma enorme rede abaixo da terra que se estende por vários quilômetros e é capaz de transmitir informações, como a presença de humanos saudáveis (hospedeiros) em determinado local.
Por mais fantasioso que isso possa parecer, os fungos de fato têm essa capacidade. Por meio de suas longas redes de hifas, eles conseguem transmitir nutrientes e informações. Em algumas florestas, essa rede de fungos funciona quase como uma internet, transmitindo informações entre vários pontos e permitindo que as árvores associadas a esses fungos capturem nutrientes de lugares variados.
Em primeiro lugar, é preciso ter em mente que os fungos trazem muitos benefícios para nós. Eles atuam no processo químico conhecido como fermentação, que nos permite produzir alimentos como pão, cerveja, vinho e queijo; ajudam a decompor a matéria no solo e fornecer nutrientes para as plantas; são usados na nossa alimentação; e auxiliam na produção de medicamentos, incluindo antibióticos. A penicilina, por exemplo, que foi um medicamento de extrema importância para a humanidade, é uma micotoxina (uma toxina produzida por fungo) que tem poder antibiótico.
Além disso, alguns fungos que vemos na natureza são sensíveis à poluição e não permaneceriam vivos caso a poluição do ar estivesse mais alta. Os líquens, por exemplo, são organismos formados por uma simbiose (associação benéfica) entre algas e fungos e alguns deles nos servem como indicadores da qualidade do ar.
Embora grande parte dos fungos seja inofensiva para nós, existem aqueles que nos fazem mal. As doenças fúngicas mais letais costumam ocorrer apenas em pessoas com imunidade bastante comprometida e são pouco transmissíveis. Mesmo assim, são responsáveis pela morte de milhões de pessoas anualmente.
Os fungos podem causar nos seres humanos desde simples micoses superficiais (em que o patógeno invade nossa pele, se desenvolve e reproduz) até doenças mais complexas, como aspergilose, meningite fúngica, candidíase, esporotricose, entre outras.
Os fungos também podem ser transportados (pelo ar, água ou animais) até alimentos e se desenvolver, formando mofos, bolores. Ingerir alimentos com sinais visíveis de uma colônia de fungos pode ser perigoso. E não adianta retirar apenas a parte com o mofo visível, pois todo o alimento fica comprometido. Embora, na maioria das situações, as toxinas liberadas pelos fungos não causem reações tão adversas e graves no nosso organismo, é sempre bom evitar, pois, com um pouco de azar e com um sistema imunológico debilitado, as consequências podem ser graves.
No primeiro episódio da série, dois epidemiologistas são entrevistados em um programa de formato talk show no ano de 1968 e um deles expressa o seu temor quanto a uma epidemia de fungos. Sob risos da plateia e do apresentador, o cientista temeroso explica que alguns fungos devoram seus hospedeiros, mas sem deixá-los morrer, e controlam suas vítimas de modo a se espalharem para novos hospedeiros.
O maior medo que os fungos causam ao personagem da série (e aos nossos cientistas do mundo real) é o fato de serem organismos tão complexos (em comparação com vírus e bactérias) que ainda não podem ser combatidos por nós por meio de vacinas.
Atualmente, não existem vacinas no mercado contra doenças fúngicas. O que temos são pesquisas de vacinas em desenvolvimento e alguns medicamentos que matam ou inibem o crescimento de fungos. Mesmo assim, esses poucos medicamentos inevitavelmente se tornarão obsoletos, pois os fungos também desenvolvem resistência aos antifúngicos (assim como as bactérias aos antibióticos).
O cientista entrevistado na série continua argumentando que, embora um fungo como o Cordyceps não seja capaz de sobreviver ao calor do corpo humano, um aquecimento do planeta poderia fazer com que esses seres se adaptassem a ambientes mais quentes e, assim, conseguissem sobreviver no nosso organismo – o que de fato aconteceu na série, apesar de não ficar explícito se o aquecimento global foi mesmo a causa principal.
Após o lançamento da série, muitos especialistas se manifestaram dizendo que não precisamos temer uma epidemia fúngica hoje, que isso está bem mais distante de acontecer do que outras epidemias, causadas por vírus ou bactérias. Quanto ao Cordyceps, podemos ficar tranquilos, pois é improvável que um dia consiga nos infectar e praticamente impossível que seja capaz de controlar algo tão complexo quanto o cérebro humano. Mas é fato que os fungos vêm se tornando um problema cada vez maior e o aquecimento global pode, com o tempo, transformá-los em uma ameaça mais expressiva à nossa saúde.
Com todas essas informações, podemos concluir que não há necessidade de pânico com relação a esses seres que sempre conviveram conosco e tanto nos auxiliam, e que existem muitas outras ameaças mais urgentes à nossa vida na Terra.
Mas, se as nossas preocupações com as doenças fúngicas se converterem em ações concretas para combater as mudanças climáticas e melhorar a nossa higiene e imunidade, então é óbvio que elas são muito bem-vindas!
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