200 anos da primeira Constituição brasileira

Faculdade de Direito
Universidade Federal de Minas Gerais

Em março de 2024, completam-se 200 anos da primeira das constituições brasileiras. Tendo perdido sua validade apenas na transição do Império para a República, ela é, ainda hoje, a constituição mais duradoura de nossa história. Constituição que estrutura o Brasil sob a forma monárquica, ela não deixa de expressar, porém, lutas, debates e tensões sociais e políticas da época.

CRÉDITO: ACERVO DO ARQUIVO NACIONAL/DOMÍNIO PÚBLICO

Qual a relevância de uma constituição, a ponto de celebrarmos os 200 da ‘Constituição Politica do Imperio do Brasil’, de 25 de março de 1824? Na modernidade como um todo, da qual ainda fazemos parte, uma constituição é uma das expressões mais significativas da existência de uma nação independente, soberana. Por isso, a Constituição de 1824 está internamente relacionada ao processo da independência brasileira diante de Portugal. 

Embora a data oficial dessa independência remonte ao ano de 1822, não é exagero dizer que, como processo, ela continuará acontecendo ao longo dos anos seguintes e a elaboração de uma constituição própria para o novo país independente será um dos passos cruciais desse processo de mais longa duração.

Em outras palavras, sendo um documento de caráter tanto jurídico quanto político, uma Constituição relaciona-se internamente à organização de um direito nacional autônomo e ao desenvolvimento de uma política nacional autônoma, sendo um fator imprescindível para um país livre.

O que rememorar?

Mas o que havia na Constituição brasileira de 1824 que cabe rememorar nesses seus 200 anos? Em primeiro lugar, é importante lembrar de seus elementos mais visíveis, colocados em um primeiro plano tanto no próprio texto da Constituição quanto em boa parte dos estudos sobre ela. Nesse sentido, trata-se de uma Constituição que estrutura o Brasil sob a forma monárquica de governo, preservando no trono, apesar de eventuais esforços de diferenciação, a dinastia de Bragança, representada por Pedro I e por sua descendência. 

A continuidade com a dinastia reinante em Portugal era tamanha que o mesmo Pedro I do Brasil, depois de abdicar do trono, virá a ser, do outro lado do Atlântico, Pedro IV de Portugal.

Na organização dos poderes do Estado monárquico, a Constituição de 1824 se notabilizará pela previsão de um quarto poder, ao lado dos três poderes comumente presentes nas demais constituições mundo afora: o poder moderador, “delegado privativamente” (Artigo 98 da Constituição de 1824) ao imperador. A função primordial desse quarto poder seria a de zelar pela independência, pelo equilíbrio e pela harmonia entre os demais poderes – legislativo, judicial e executivo, este último também chefiado pelo imperador e exercido por seus ministros.

Na organização dos poderes do Estado monárquico, a Constituição de 1824 se notabilizará pela previsão de um quarto poder, ao lado dos três poderes comumente presentes nas demais constituições mundo afora: o poder moderador, “delegado privativamente” ao imperador.

Quanto ao poder legislativo, este era bicameral. Tecnicamente falando, ele era delegado à Assembleia Geral, com a sanção do imperador. A Assembleia Geral, por sua vez, vinha dividida entre a Câmara dos Deputados e a Câmara de Senadores (ou, simplesmente, Senado).

Do ponto de vista da organização político-administrativa ao longo do vasto território do Estado recém-fundado, a Constituição de 1824 estabelecia um modelo centralizado na Corte do Rio de Janeiro, deixando pouco espaço para as pretensões de autonomia das províncias.

Por fim, como uma Constituição típica do período situado entre o final do século 18 e o início do século 19, ela previa um conjunto de direitos individuais e políticos, sendo os direitos políticos balizados por eleições indiretas e fortes restrições censitárias. Entretanto, como um traço relativamente peculiar para a época, preocupava-se também com algumas questões sociais, garantindo “socorros públicos” (Artigo 179 da Constituição de 1824, inciso XXXI) e prevendo “instrução primária e gratuita a todos os cidadãos” (Artigo 179 da Constituição de 1824, inciso XXXII).

Acima, capa do Projeto e, à direita primeira página da Constituição Política do Império do Brasil, pertencentes ao acervo do Arquivo Nacional

CRÉDITO: WIKIPEDIA/DOMÍNIO PÚBLICO

Se esses são os elementos mais visíveis da Constituição de 1824 e, portanto, os mais comumente lembrados, há, por outro lado, outras características históricas que a acompanham. Menos visíveis e, em geral, menos comentadas, no momento de celebrarmos o bicentenário daquela nossa primeira Constituição, é fundamental trazermos à memória também essas outras características. Assim, em segundo lugar, cabe ampliar um pouco o horizonte para destacar o que vinha dito pelo silêncio do texto constitucional e pelo contexto em que ele foi elaborado.

Outorgada e escravista

Começando pelo contexto, é verdade que se trata de uma constituição outorgada pelo imperador, isto é, uma constituição que não foi fruto de um processo de elaboração e aprovação com ampla participação popular. Isso, no entanto, não significa que não tenha havido forte pressão popular para que o Brasil nascente tivesse uma constituição. Essa pressão começa, de maneira mais vigorosa, ainda em 1821 e se alastra pelo menos até 1824, com a Confederação do Equador – movimento ocorrido na região que hoje corresponde ao nordeste brasileiro –, passando pela existência de uma assembleia constituinte em 1823. 

Embora dissolvida por Pedro I, essa assembleia representa um importante marco em nossa história constitucional, com muitos debates e tensões sem as quais a própria Constituição de 1824 não pode ser compreendida.

Logo, ao contrário do imaginário muitas vezes presente entre nós, o imperador não outorga uma constituição a um povo pacato, desinteressado e incapaz. Lutas variadas, com e entre grupos sociais muito distintos, ocorriam no Brasil àquela época e influíram decisivamente no caminho que levou até a outorga da constituição pelo imperador.

Logo, ao contrário do imaginário muitas vezes presente entre nós, o imperador não outorga uma constituição a um povo pacato, desinteressado e incapaz

Um dos grupos sociais que participavam ativamente dos conflitos da época era a população escravizada, com relevante atuação, por exemplo, nas lutas pela independência na Bahia. E aqui podemos começar a falar dos silêncios eloquentes da Constituição de 1824. Ela não estabelecia diretamente, em seu texto, o regime escravista, mas não se opunha a ele: na verdade, acomodava-se organicamente à escravidão, reconhecendo-a implicitamente, como nos casos em que fazia menção textual aos libertos (Artigos 6 e 94 da Constituição de 1824). 

É errado, pois, elogiá-la por supostamente não ter tornado a escravidão obrigatória: sim, ela o fez. Apesar da relevância das lutas antiescravistas, que muitas vezes se confundiram com a própria luta pela independência diante de Portugal, ela o fez. Não o fez dizendo-o expressamente, mas se silenciando sobre o escravismo, não se opondo explicitamente a uma situação fática, que era a marca mais nítida da sociedade brasileira de então.

Manutenção do modelo agroexportador

Nesse mesmo sentido, o texto da Constituição de 1824 não tornava obrigatória a manutenção de uma economia agroexportadora, baseada no latifúndio monocultor, com todas as perversas consequências de longo prazo desse modelo. Também quanto a esse ponto, entretanto, é preciso entender que a Constituição de 1824, ao não mencionar nada sobre um ou outro assunto, acaba por dizer muito sobre eles.

A antiga Casa de Câmara e Cadeia (Cadeia Velha), atual Palácio Tiradentes, onde ocorreu a Assembleia Constituinte do Brasil de 1823. E a primeira sede da Câmara dos Deputados. 

CRÉDITO: WIKIPEDIA/DOMÍNIO PÚBLICO

Diante do que era o Brasil naquele momento, não aproveitar a elaboração da Constituição para promover uma ampla reforma agrária já no nascedouro da nação era o mesmo que condenar o país à preservação da estrutura econômica focada na exportação de produtos primários.

Diante do que era o Brasil naquele momento, não aproveitar a elaboração da Constituição para promover uma ampla reforma agrária já no nascedouro da nação era o mesmo que condenar o país à preservação da estrutura econômica focada na exportação de produtos primários

Dessa forma, somadas, a não abolição da escravidão e a não realização de uma reforma agrária são diretamente responsáveis pelo modo como o novo país iria inserir-se na economia internacional: uma inserção periférica, altamente dependente dos países centrais, posição da qual ainda hoje nos esforçamos para tentar nos livrarmos.

Aquele início do século 19 era o momento de fundar um novo país. A Constituição de 1824 vinha para ser uma espécie de declaração formal dessa fundação. Como é próprio desses momentos fundantes, era possível romper com o passado e projetar no futuro um país livre diferente do que havia sido a colônia portuguesa. 

Infelizmente, a ocasião foi perdida por nós. Diferentes projetos de Brasil, que dariam origem a distintas versões de uma Constituição, disputavam o sentido do país que estava sendo fundado. O projeto que venceu acabou sendo um projeto conservador e altamente excludente, que segue cobrando seu preço.

O projeto que venceu acabou sendo um projeto conservador e altamente excludente, que segue cobrando seu preço

Primeira constituição brasileira

CRÉDITO: WIKIPEDIA/DOMÍNIO PÚBLICO

Na celebração dos 200 da Constituição de 1824, porém, não deve haver remorso ou qualquer outro sentimento parecido. Como dito, apesar de tudo, essa Constituição não deixou de expressar lutas, debates, tensões sociais e políticas do seu tempo. Ela, sem dúvida, é a expressão de um projeto perverso de país, projeto que, infelizmente, saiu vencedor. 

Mas não podemos nos esquecer dos demais projetos que disputavam com este, das alternativas derrotadas de um Brasil futuro diferente, melhor. Ao olharmos para a Constituição de 1824, é necessário sabermos discernir: o que fizemos, como sociedade, com a nossa primeira Constituição? E o que não fizemos, quando podíamos ter feito, diante das lutas que clamavam por uma Constituição diferente, por um país distinto?

Ao olharmos para a Constituição de 1824, é necessário sabermos discernir: o que fizemos, como sociedade, com a nossa primeira Constituição? E o que não fizemos, quando podíamos ter feito, diante das lutas que clamavam por uma Constituição diferente, por um país distinto?

Se mantivermos esse olhar duplo, a pergunta fundamental emerge sem dificuldades: afinal, 200 anos depois, o que ainda podemos aprender com a Constituição de 1824? O que podemos aprender com o que ela fez e com o que ela deixou de fazer, com o legado constitucional que ela nos deixou e com o silêncio eloquente que ela também nos deixou como legado? 

Essa possibilidade de aprendizagem em direção ao futuro é a única coisa que, no fim das contas, justifica olharmos para nosso passado com essa distância de dois séculos: rememorar para não esquecer; lembrar para aprender e lembrar para não repetir.

GOMES, David F. L. A Constituição de 1824 e o problema da modernidade: o conceito moderno de constituição, a história constitucional brasileira e a teoria da Constituição no Brasil. 2a edição. Belo Horizonte: Conhecimento, 2024.

HONORATO, Fernando Henrique Lopes. Origens do constitucionalismo no Brasil: a Constituição como artefato no processo de independência. Belo Horizonte: D’Plácido, 2022.

QUEIROZ, Marcos. O Haiti é aqui: ensaio sobre formação social e cultura jurídica latino-americana (Brasil, Colômbia e Haiti, século XIX). Tese de doutorado. Brasília: UnB, 2022.

RIBEIRO, Deivide Júlio. Constitucionalismo negro: entre os imperativos sistêmicos do capitalismo, o silêncio na Constituinte Republicana de 1890/1891 e as expectativas normativas da população negra em torno da cidadania. Tese de doutorado. Belo Horizonte: UFMG, 2023.

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