Justiça e poder na saga de Harry Potter

Físico e divulgador de ciência no canal Ciência Nerd
Universidade Federal de Juiz de Fora

O funcionamento de algumas instituições e leis do universo bruxo tem semelhanças e diferenças em relação ao nosso sistema político e jurídico e, assim como no mundo real, enfrenta problemas éticos

CRÉDITO: IMAGENS DIVULGAÇÃO

Castelo de Hogwarts no filme ‘Harry Potter’

O mundo mágico de Harry Potter sempre causou deslumbramento nas pessoas, pela beleza dos seus cenários, pela possibilidade de realizar tarefas chatas usando magia ou pela imponência da Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts e suas disciplinas bem mais interessantes do que as do mundo real.

O sucesso da franquia (tanto dos livros, quanto dos filmes e demais produtos) formou uma legião de fãs, que dariam tudo para receber a sonhada carta para iniciar seus estudos em Hogwarts.

Mas um artigo científico publicado no Journal of Geek Studies mostrou que um olhar mais atento para esse universo pode revelar verdades terríveis sobre o mundo bruxo. Partindo de pontos levantados por esse artigo, vamos examinar aqui o funcionamento de algumas instituições e leis bruxas e compará-las com as dos ‘trouxas’ – que é como os personagens do universo de Harry Potter chamam a todos nós, que não somos bruxos.

O Ministério da Magia

No mundo de Harry Potter, em 1689, a Confederação Internacional dos Bruxos (CIB) decretou uma lei denominada ‘Estatuto Internacional de Sigilo em Magia’, com o objetivo de proteger a comunidade mágica, que vinha sendo intensamente perseguida e morta pelos não-bruxos.

Segundo esse estatuto, o Ministério da Magia de cada país seria responsável por controlar a aparição de criaturas mágicas, o uso de magia em ambientes públicos e, sobretudo, a opinião pública diante do avistamento de algum fenômeno mágico. A finalidade era esconder por completo a comunidade mágica dos olhos dos trouxas.

O mais famoso Ministério da Magia é o da Grã-Bretanha, região onde se localiza a escola de Hogwarts. Ao longo da saga de Harry Potter, descobrimos que esse ministério é formado por departamentos, como o Departamento de Execução das Leis da Magia, o Departamento de Acidentes e Catástrofes Mágicas, o Departamento para Regulamentação e Controle das Criaturas Mágicas e o Departamento de Cooperação Internacional em Magia.

Conforme explica Marina Aguiar Vieira em monografia apresentada em 2019 à Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, o Ministério parece ter função executiva, ou seja, de executar e regulamentar as leis. Os textos oficiais da saga não deixam claro qual é o órgão responsável pela criação dessas leis, mas Vieira afirma que a autora J. K. Rowling já afirmou que a Suprema Corte dos Bruxos (órgão que também faz parte do Ministério da Magia) funciona como uma combinação de Parlamento (ou seja, tem função legislativa, de criação de leis) e Judiciário (que tem o poder de julgar, segundo as leis estabelecidas).

Desse modo, esses três poderes (executivo, legislativo e judiciário) ficam sob o comando do ministro da Magia, um funcionário que geralmente é eleito (exceto em momentos de crise, em que o cargo é ocupado por indicação) e possui um mandato sem tempo determinado, mas que não deve ultrapassar o limite de sete anos.

Uma das leis que conhecemos, ao assistir os filmes, é a proibição do uso de magia por menores de idade fora da escola de Hogwarts. No segundo filme da saga, A câmara secreta, Harry está de férias com seus tios quando recebe a visita do elfo doméstico Dobby. Na tentativa de proteger o garoto de um grande perigo que rondava a escola, o elfo realiza uma magia em sua casa, que rapidamente é detectada pelo Ministério da Magia. Como não havia nenhum outro bruxo no local, o feitiço é atribuído a Harry. Pouco tempo depois, o jovem recebe em sua casa uma carta de advertência do ministério.

O uso de magia por bruxos menores de idade é tão grave que uma segunda ocorrência provocaria a sua expulsão de Hogwarts, a destruição de sua varinha e a proibição definitiva de utilizar magia.

A Suprema Corte dos Bruxos

Nos filmes da saga de Harry Potter, a Suprema Corte dos Bruxos cria leis e também julga os acusados de descumpri-las

No quinto filme da saga, A Ordem da Fênix, Harry realiza uma magia para proteger seu primo trouxa de um ataque de dementadores (seres das trevas que se alimentam da felicidade humana e atuam como guardas da prisão de Azkaban). Por já não ser esta a sua primeira violação da lei, Harry é temporariamente suspenso de Hogwarts e intimado a comparecer a uma audiência na Suprema Corte dos Bruxos, onde seu caso será julgado.

Na audiência, Harry, com apenas 15 anos, é submetido a um duro interrogatório, conduzido pelo próprio ministro da Magia, o poderoso Cornélio Fudge. Durante suas perguntas, o ministro mostra-se irritado e impaciente com as respostas do jovem e fica claro que ele já tinha o veredito em sua mente, independentemente do depoimento prestado pelo réu. Além disso, o tom de sua fala é acusatório e ele chega a dizer que Harry estava apenas buscando atenção da mídia, o que mostra que o ministro estava exercendo tanto a função de acusador quanto a de juiz, o que naturalmente o torna parcial no processo.

Pela lei brasileira, todo cidadão tem direito a um julgamento justo, a um juiz imparcial, a um advogado (mesmo que não tenha condições de pagar por um), a convocar suas testemunhas e a ser considerado inocente até que se prove o contrário. No universo da saga, parece ser comum que os acusados sejam privados desses direitos.

A sorte de Harry foi que o diretor de Hogwarts, o poderoso e influente Alvo Dumbledore, se apresentou ao tribunal e atuou como uma espécie de advogado de defesa, levando também uma testemunha favorável ao garoto, o que possibilitou que o júri fosse convencido de sua inocência.

Outra diferença importante é que, no Brasil, os membros de um júri votam anonimamente, chegam a um consenso e apresentam o veredito final ao juiz. No tribunal dos bruxos, a votação é aberta, feita diante do réu, o que expõe os jurados a pressões da opinião pública, da opinião do próprio ministro e da mídia. Certamente, esses fatores podem exercer influência sobre a decisão de cada jurado.

Outro caso notório foi o julgamento de Sirius Black, padrinho de Harry. A história que se contou nos tribunais foi que Sirius entregou a localização da família Potter ao vilão Lorde Voldemort, que desejava assassiná-los. Mais tarde, quando seu amigo Pedro Pettigrew foi confrontá-lo, Sirius o teria assassinado em uma rua, na frente de trouxas, com um feitiço que deixou restar apenas seu dedo.

Em artigo publicado em 2022 na Revista de Direito, Arte e Literatura, Lucio Dorneles e Lucas Camillis afirmam que, de fato, havia uma situação de flagrante. Sirius Black foi encontrado ensanguentado na cena do crime, o que gerava indícios de que o crime realmente havia ocorrido e ele era o autor. No entanto, esses indícios, por si só, não deveriam ter a força de uma prova, não deveriam ser suficientes para uma condenação, muito menos para sentenciá-lo à prisão perpétua.

Os problemas éticos envolvendo o então ministro da Magia Bartolomeu Crouch não paravam por aí. Há registros de que ele autorizava até mesmo a tortura de investigados e testemunhas para obter informações desejadas (fossem elas verdadeiras ou não).

Sem um julgamento justo, sem provas e sem maiores investigações, Sirius Black foi preso injustamente. Muitos anos mais tarde, descobriu-se que, na realidade, Pettigrew estava vivo. Naquela noite, foi ele quem lançou um feitiço para causar uma destruição na rua, cortou seu dedo para servir de prova do crime e se transformou em um rato para fugir e incriminar Black.

Você poderia pensar que, no mundo real, as coisas são muito diferentes disso. Mas, quando se trata de prender inocentes, não somos muito diferentes do que os bruxos. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, em 2019, 41,5% dos presos brasileiros (mais de 800 mil pessoas) ainda não haviam sido julgados. Dentre essas pessoas, é provável que muitas sejam mesmo inocentes, mas elas seguem encarceradas aguardando a oportunidade de provar sua inocência nos tribunais.

Perseguições políticas e o quarto poder

No filme ‘Harry Potter e a Ordem da Fênix’, decretos criados pelo ministro da Magia eram executados por sua amiga, a diretora da Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, nomeada ao cargo pelo próprio ministro

O quarto filme da saga, O cálice de fogo, termina com a morte de um aluno de Hogwarts. Depois de ver o jovem Cedrico Diggory ser assassinado por Voldemort, Harry consegue escapar e levar à escola a notícia de que o vilão (até então tido como morto) havia retornado e estava recuperando seus poderes.

Preocupado com a repercussão, o Ministério da Magia inicia uma forte campanha midiática para desmentir Harry e convencer a comunidade bruxa de que estava tudo bem.

Sob forte influência do ministro Cornélio Fudge, o jornal Profeta Diário (o mais lido da região) passa a publicar uma série de matérias retratando Harry e Dumbledore como mentirosos e loucos.

Em paralelo, Fudge nomeia sua amiga Dolores Umbridge como professora de defesa contra as artes das trevas em Hogwarts, para que ela seja uma espiã do ministério na escola.

Durante sua estadia, Umbridge passa a torturar alunos para discipliná-los e interroga alunos e professores para descobrir e punir transgressores, além de executar uma série de decretos criados pelo próprio ministro.

Esses decretos proibiam: a proximidade física entre meninos e meninas na escola; a posse de itens que não tivessem valor educativo; a posse de edições do jornal O Pasquim (que fazia oposição ao ministério) e de livros de autoria de trouxas ou mestiços; e a existência de organizações estudantis não aprovadas por Umbridge. O último desses decretos nomeava Dolores Umbridge como diretora da escola, substituindo Dumbledore.

Considerando o ministro da Magia como o líder do poder executivo dos bruxos, fica claro que ele também atuava como legislador e como juiz (julgando casos no tribunal dos bruxos).

Quando o filósofo francês Montesquieu (1689-1755) elaborou sua teoria da divisão dos três poderes, em seu livro O espírito das leis (1748), seu intuito era evitar que uma única pessoa tivesse tanto poder a ponto de nenhuma outra instituição do Estado ser capaz de controlá-la. Separados, os poderes podem se equilibrar e impedir o surgimento de um líder absolutista.

Pensadores mais recentes consideram a imprensa como um quarto poder, pela sua capacidade de influenciar e impor freios aos outros três poderes. Como o ministro Fudge também tinha a imprensa em suas mãos, fica claro que não havia qualquer outra instituição capaz de regular seu poder.

Ainda existem vários elementos do universo de Harry Potter que podem ser analisados sob a luz do nosso sistema político e jurídico. E, acredite, existem problemas ainda mais graves no mundo bruxo do que os mencionados nesse texto. Alguns deles, inclusive, são muito similares a problemas que ainda enfrentamos no Brasil.

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