Instituto de Microbiologia Paulo de Góes
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Uma regra lógica para organizar hipóteses e explicações científicas, a Navalha de Ockham, nem sempre bem compreendida, tem uma trama novelesca em torno de seu proponente, um filósofo inglês excomungado pela Igreja Católica

CRÉDITO: CREATIVE COMMONS / WILLIAM DE OCKHAM

A Navalha de Ockham não é promessa de corte perfeito, mas um princípio lógico para se fazer ciência. Propõe que a explicação mais simples é preferível à mais complexa. Então, quando cientistas se deparam com duas explicações igualmente boas para determinado fenômeno, devem optar pela mais objetiva. Isso não significa que formulações mais complexas estejam automaticamente erradas. Então, é preciso cuidado para não se ferir: a Navalha de Ockham não é uma lei, mas uma diretriz proposta na Idade Média pelo filósofo inglês William de Ockham (1287-1347).

Ockham é uma contração de Oak Hamlet, que, em livre tradução, significa aldeia do carvalho. Foi neste povoado, perto de Londres, que nasceu William. Os anos da sua juventude não estão muito bem preservados na história, mas sabe-se que, ainda pré-adolescente, ele foi entregue por sua família a um convento da ordem católica franciscana. Isso pode ter ocorrido porque William se tornou órfão ou porque seus familiares não tinham meios para sustentá-lo ou simplesmente por devoção.

A Navalha de Ockham não é uma lei, mas uma diretriz proposta na Idade Média pelo filósofo inglês William de Ockham

O fato é que William, educado em conventos franciscanos ingleses considerados excelentes, recebeu o título de Venerabilis inceptor, que o qualificava como bacharel em teologia. Embora tenha iniciado seus estudos de mestrado na mesma área, nunca recebeu a titulação. Na época, os candidatos a mestre em teologia deveriam lecionar por dois anos e escrever comentários sobre o Libri Quatuor Sententiarum – “Os quatro livros de sentenças” ou apenas “Sentenças” –, do filósofo italiano Pedro Lombardo (1100-1160), obra que, nos cursos de teologia da idade média, só perdia em popularidade para a Bíblia.

E foi aí que a coisa desandou para William. Em seus escritos sobre “Sentenças”, começou a aplicar os princípios da lógica do que viria a ser a famosa Navalha de Ockham. Os catedráticos não aceitaram sua argumentação, e o próprio reitor, o cônego inglês John Lutterell (s.d.-1335), ficou responsável por barrar seu título de mestre – de quebra, ainda o acusou de heresia.

Sempre pode piorar

Os problemas de William com a Igreja Católica foram muito mais profundos. Na idade média havia um debate acalorado sobre os votos de pobreza de Jesus Cristo e seus apóstolos, e consequentemente dos sacerdotes da igreja. A posição defendida pela ordem dos franciscanos era refutada veementemente pelo Papa João XXII, que, em 1322, emitiu uma Bula Papal concedendo, ou melhor, impondo o direito de propriedade aos franciscanos. William de Ockham, furioso, fez um sermão contra João XXII e toda a administração da Igreja Católica. Resultado: foi convocado a comparecer em Avignon, na França, onde o Papa vivia na época, para ser julgado por heresia.

Em 1324, ele se apresentou ao Tribunal Papal, ficou em “prisão domiciliar”, em Avignon, por quatro anos, mas nunca foi condenado. Passado esse tempo, as coisas pioraram… Em 1327, a briga de João XXII com Michael de Cesena (1270-1342), líder dos franciscanos, se agravou. A controvérsia continuava sendo a “pobreza apostólica” praticada pelos franciscanos, que era fundamentada na ideia de que Jesus e os apóstolos não possuíam bens e pediam esmola. Sem conseguir subjugar Michael de Cesena, João XXII o destituiu de seu cargo e obrigou os franciscanos a elegerem um novo ministro geral.
Em retribuição, Michael de Cesena recrutou o intelecto de William de Ockham e pediu que ele se debruçasse sobre as Bulas Papais anteriores para avaliar suas visões sobre os franciscanos. A conclusão desse estudo não poderia ser mais inflamatória: não apenas João XXII estava errado como havia cometido heresia. E como um herege não pode ser católico, para William e os seus, o Papa não era mais Papa!

Confusão formada, William de Ockham, Michael de Cesena e o Bonagratia de Bergamo (s.d.-1343), jurista italiano envolvido na defesa dos franciscanos, precisaram fugir às pressas de Avignon. Por sorte, receberam abrigo em Munique, na Alemanha, do Imperador Romano-Germânico Luís IV (1281-1347), inimigo declarado do Papa João XXII.

O excomungado e seu corte

William de Ockham, assim como seus companheiros, foram excomungados da Igreja Católica. Ele passou o resto da vida em Munique, onde escreveu sua obra-prima, a “Suma Logicae”, em que expõe os fundamentos de sua lógica e a metafísica que a acompanha.

Ao contrário do que muitos pensam, a Navalha de Ockham não impõe a escolha da teoria mais simples, nem prega a simplificação excessiva. Um dos enunciados mais comuns sugere que “entre as hipóteses concorrentes, aquela com menos suposições deve ser selecionada”, mas William de Ockham nunca colocou dessa forma. Suas palavras foram: “Pluralitas non est ponenda sine neccesitate” ou “A pluralidade não deve ser posta sem necessidade”.

A Navalha de Ockham é, portanto, uma ferramenta muito útil para a formulação de hipóteses e a investigação de um fenômeno, mas jamais deve ser colocada à frente das evidências experimentais e observações de campo. Essa nunca foi a motivação de seu proponente.

É, portanto, uma ferramenta muito útil para a formulação de hipóteses e a investigação de um fenômeno, mas jamais deve ser colocada à frente das evidências experimentais e observações de campo

De fato, o primeiro uso conhecido do termo “Navalha de Ockham” só aconteceu em 1852, na obra do matemático irlandês William Rowan Hamilton (1805-1865). Muitos cientistas consideram que o corte da “navalha” tem sido mal utilizado ao longo dos séculos, e a simplificação exagerada influenciou a história da ciência de forma negativa. Ela nunca deve ser usada para reduzir a complexidade da natureza, ou teorias complexas da ciência. Como disse o físico estadunidense Sean Carroll (1966-), do Instituto de Tecnologia da Califórnia, seu fio deve ser usado “para as premissas de uma teoria, não às previsões.”

Os registros históricos dão conta de que William de Ockham continuou escrevendo contra o Papa João XXII e seus sucessores, Bento XII e Clemente VI. Faleceu, acredita-se que em 1347, sem jamais ter conseguido reverter sua excomunhão. Com sua navalha, contribuiu de maneira decisiva para o desenvolvimento do método científico moderno.

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