Trótula de Salerno: primeiro tratado de ginecologia e obstetrícia

Instituto de Microbiologia Paulo de Góes
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Compêndio com três textos escritos na Idade Média – por médicas italianas – foi usado como material de referência sobre a saúde da mulher até o século 17.

CRÉDITO: IMAGENS WIKIMEDIA COMMONS

Poucas pessoas sabem, mas existe um compêndio com três textos escritos no século 12, na cidade de Salerno (Itália), que foi usado como material de referência sobre a saúde da mulher até o século 17. É a chamada Trótula de Salerno e contém informações sobre ginecologia, obstetrícia, dermatologia e medicina preventiva, com medidas e indicações quase inteiramente práticas. 

Nesse tratado, encontramos prescrições de medicamentos para o tratamento de inúmeras doenças e receitas cosméticas com detalhes de ingredientes, doses, procedimentos para preparo e modo de aplicação. O texto era tão avançado para a época que alguns desses ingredientes são usados até hoje em tratamentos cosméticos!

É muito clara a influência greco-romana – médicos como Galeno e Hipócrates – na Trótula de Salerno, mas também observamos forte inspiração na medicina árabe, que florescia nessa época. O grande diferencial desse tratado está em sua abordagem inovadora da saúde da mulher, com objetividade médica e sem preconceitos, restrições morais ou timidez. Incontáveis médicos homens, que não costumavam ter contato com o trato urogenital feminino na prática, foram educados pelos textos da Trótula de Salerno.

O grande diferencial desse tratado está em sua abordagem inovadora da saúde da mulher, com objetividade médica e sem preconceitos, restrições morais ou timidez

A cidade de Salerno abrigava um dos portos mais importantes do sul da Europa, e já desde o século 5 era um dos maiores centros comerciais da região. Salerno continha diversos SPAs e centros de tratamento de saúde: era famosa por suas fontes termais, com águas que – se acreditava – tinham poderes curativos. Além disso, era próxima ao Oriente, que, em contraste com os tempos sombrios da Europa na Idade Média, foi uma região do planeta onde as sociedades estavam em franca expansão científica e tecnológica.

Apta para mulheres

Nesse contexto foi fundada a Escola Médica Salernitana no século 9, provavelmente por monges de um mosteiro local, tornando-se a escola de medicina mais importante e influente da Europa nos séculos seguintes. A cidade, cosmopolita para sua época, fomentava um ambiente de tolerância, e a Escola Salernitana foi a única faculdade de medicina a abrir suas portas para estudantes mulheres. 

O resultado dessa inclusão foi uma explosão de conhecimento e novas práticas médicas. Por exemplo, as médicas de Salerno encontravam muitas feridas relacionadas ao parto, como laceração perineal e rupturas uterinas, e puderam desenvolver novas técnicas e remédios para tratar essas aflições. Esses tratamentos se espalharam para o cuidado de feridas de outras naturezas. 

Outro exemplo importante são os medicamentos desenvolvidos por essas médicas para amenizar as dores do parto – muitos baseados em opiáceos –, que também foram amplamente usados para dores pós-cirúrgicas e para tratar feridas de guerra.

Autoria incerta

Apesar da importância desse tratado médico, a autoria da Trótula de Salerno é incerta e debatida até hoje. Durante séculos, acreditou-se que a autora de todos os textos foi uma médica com o nome Trotta (ou Trocta). Atualmente, sabemos que tal personagem não existe. Na Idade Média, era comum dar a obras literárias uma variação do nome do autor; muitas vezes, o diminutivo. Então, Trótula, na verdade, era traduzido como o ‘Pequeno trabalho de Trotta’. 

O nome Trotta era comum entre mulheres, em contraste com Trótula, que não é encontrado em nenhum trabalho como um nome pessoal. Mais tarde, no século 17, os textos que encontramos na Trótula de Salerno receberam uma tradução e foram publicados sob a autoria da fictícia médica ‘Trótula’. Para aumentar a confusão, a Trótula de Salerno é, na realidade, uma coleção de textos de, pelos menos, três diferentes autoras.

A principal dessas três autoras foi, realmente, uma famosa médica de Salerno, da qual temos poucas informações disponíveis. Muitos pesquisadores acreditam que essa mulher foi Trotta di Ruggiero, que viveu em Salerno entre os séculos 11 e 12. Essa mulher é chamada de magistra operis (mestra de cirurgia), uma honra normalmente reservada a médicos homens.

A principal dessas três autoras foi, realmente, uma famosa médica de Salerno, da qual temos poucas informações disponíveis

Trotta foi uma professora na Escola de Medicina de Salerno e escreveu um livro de medicina prática, que demonstrou sua familiaridade com uma ampla gama de problemas de saúde, a Practica secundum Trotam (Medicina prática segundo Trota). Ela escreveu dois dos mais importantes textos encontrados na Trótula, o Liber de sinthomatibus mulierum (Os sintomas das mulheres), também chamado de ‘Trótula maior’, o De curis mulierum (Sobre a saúde da mulher) e o De ornatu mulierum (Os ornamentos da mulher) – estes dois últimos frequentemente reunidos como ‘Trótula menor’. 

Na Trótula Menor, ela ensina as mulheres a conservar e melhorar sua beleza e a tratar doenças de pele; dá aulas sobre maquiagem, tratamentos para rugas e inchaços do rosto e dos olhos; escreve sobre depilação, sobre como esconder manchas e sardas, como escovar os dentes, tingir cabelos e tratar rachaduras nos lábios.

Médica fenomenal

Apesar da importância da obra, o nome de Trotta di Ruggiero e informações sobre sua vida foram sistematicamente apagados da história da medicina. Traduções medievais colocaram em dúvida a existência de uma médica mulher e tentaram atribuir a autoria a um médico chamado Trottus. A obra foi até publicada sob a autoria de um suposto médico homem – Eros Juliae.

Traduções medievais colocaram em dúvida a existência de uma médica mulher e tentaram atribuir a autoria a um médico chamado Trottus

Embora ainda subsistam muitas dúvidas sobre a autoria dos textos encontrados na Trótula, sabemos que muitos deles foram, pelo menos, inspirados nessa médica fenomenal. Os manuscritos que sobreviveram ao tempo, encontrados em diversas bibliotecas europeias, e as inúmeras referências a Trótula na literatura sugerem que esse trabalho foi amplamente reconhecido como um guia em ginecologia e obstetrícia durante vários séculos; e mais importante: escritos do ponto de vista de uma médica mulher. 

Os historiadores de hoje sabem que existiram dezenas, talvez centenas, de médicas em Salerno, todas referenciadas em trabalhos de medicina da Idade Média. A exuberante história das médicas de Salerno prova que a contribuição das mulheres sempre existiu, mesmo tendo sido enterrada no esquecimento.

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