A saúde na era do jogo digital

Os jogos fazem parte das atividades humanas desde a Antiguidade. Mas foram os jogos digitais que se encarregaram de disseminar a prática por todo o mundo e de inseri-la no nosso dia a dia de forma abrangente, não importando o local nem a idade do jogador. A ampla adesão aos jogos digitais traz consigo algumas perguntas: de que forma eles podem afetar nossa saúde? Quais outras consequências podem ter sobre nós? E como usá-los para benefício dos próprios jogadores?

 

Do Senet aos videogames

Os jogos acompanham a humanidade há milhares de anos. Jogo de tabuleiro sobre a transmigração da alma, o Senet já entretinha os faraós do antigo Egito há mais de 5.000 anos. Há indícios de jogos ainda mais antigos; e já foram encontrados diversos dados esculpidos em ossos humanos que datam da pré-história. Portanto, mesmo antes de haver registro escrito, os seres humanos jogavam. Pode-se até dizer que o jogo é anterior à própria ideia de história.

Apesar disso, foi com o surgimento dos jogos digitais (videogames, ou simplesmente games) que a prática do jogo ganhou evidência em todo o mundo, virando parte integrante do nosso cotidiano. Os jogos digitais compõem uma indústria imensa que, se em 2007 já ultrapassava o faturamento da indústria cinematográfica, em 2018 superou a marca dos 100 bilhões de dólares. Só no Brasil há mais de 66 milhões de jogadores registrados.

Senet, jogo de tabuleiro

Com a popularização intensa dos jogos digitais, surgem vários questionamentos sobre a forma como eles nos afetam e sobre quais efeitos podem causar em nossa saúde.

Pintura da tumba da Rainha Nefertari do Egito (1295 – 1255 a.C.), representada jogando o Senet, jogo de tabuleiro sobre a transmigração da alma.

Perigo real?

Praticamente desde o surgimento dos primeiros jogos digitais comerciais, há questionamentos sobre os seus supostos perigos. As perguntas vão se tornando mais numerosas à medida que a indústria cresce e esses jogos se multiplicam na sociedade. As acusações vão desde provocar sedentarismo nos jovens a causar danos à postura e, mais frequentemente, provocar comportamentos violentos. Entretanto, nenhuma dessas acusações foi provada ainda de forma convincente por pesquisas científicas.

Talvez a preocupação mais recorrente seja com a relação entre jogos e violência. Mas é importante ressaltar que até hoje nenhuma pesquisa conseguiu demonstrar conclusivamente que o uso de jogos cause comportamentos violentos. Embora tenha se percebido que pessoas com temperamento violento tendem a preferir filmes, livros e jogos violentos, essa relação não significa que é o jogo a fonte da violência.

O acesso de menores a um determinado jogo deve, de fato, ser avaliado pelos pais e responsáveis; de preferência, baseando-se na classificação indicativa em vigor no Brasil. Mas não há nenhuma evidência científica que permita afirmar que um jogo violento torna seu usuário mais propenso a atos de violência.

Isso não significa dizer que não existem práticas de jogo problemáticas. Uma preocupação, comum a muitos pais, é com o chamado ‘vício em jogos’ – o jogo compulsivo por longos períodos, negligenciando outras atividades. Embora o termo ‘vício’ seja inadequado – uma vez que o consumo de mídias, como filmes, música ou jogos, gera efeitos cerebrais bem diferentes do que o uso de drogas que causam dependência química –, recentemente, a Organização Mundial de Saúde (OMS) incluiu o ‘distúrbio de games’ na 11ª Classificação Internacional de Doenças (CID). Essa inclusão, entretanto, tem sido criticada por muitos estudiosos, que apontaram sérios problemas com a iniciativa.

Quando o problema é outro

Segundo Chris Ferguson, psicólogo norte-americano que pesquisa jogos digitais há 15 anos, o tempo excessivo de jogo muitas vezes é o sintoma de outro problema mais grave, como ansiedade, estresse ou depressão. Jogar seria uma forma de escape ou de lidar com esses problemas, e privar alguém dessa atividade não promove a cura, mas mascara o problema e pode ainda agravar seu estado.

Além disso, Ferguson e outros estudiosos acusam tal classificação de não estar baseada em pesquisas confiáveis, expondo sobretudo crianças e adolescentes a possíveis tratamentos de ‘desintoxicação de games’ que poderiam ser até prejudiciais à sua saúde e ao seu bem-estar.

Um fenômeno importante mencionado por Ferguson é como pessoas com problemas psicológicos frequentemente usam jogos como forma de alívio para suas dificuldades. Vale a pena se perguntar: se os jogos podem ser meios para ajudar a lidar com o estresse, a ansiedade e até a depressão, o que mais podem fazer para nos beneficiar?

 

Jogos sérios

Alguns programadores têm feito esforços para projetar intencionalmente jogos digitais com o fim de apoio psicológico. O Sparx, por exemplo, é um jogo on-line criado para auxiliar adolescentes com depressão e ansiedade. Outros jogos, como o Depression Quest,da game designer estadunidense Zoe Quinn, e o Rainy Day, desenvolvido pela brasileira Thaís Weiller, foram criados não apenas para aqueles que lidam com esses problemas, mas para que amigos e familiares possam entender melhor a situação dos jogadores, compartilhando seus dilemas cotidianos de um modo interativo.

Pessoas com necessidades especiais também podem ser beneficiar com jogos digitais. Alguns especialistas sugerem que indivíduos com autismo podem usar os jogos digitais para praticar habilidades sociais, lidar com a frustração de cometer erros e melhorar sua motivação. Por sua vez, o Jecripe, criado pelo cientista da computação André Brandão, da Universidade Federal do ABC (UFABC), foi desenvolvido para estimular crianças com síndrome de Down em idade pré-escolar, obtendo grande aprovação tanto dos especialistas quanto dos pequenos jogadores. Hoje, o Jecripe evoluiu para um projeto de jogos para pessoas especiais em geral.

Cenas do jogo Jecripe, criado por um cientista da computação brasileiro para crianças com síndrome de Down.

Pesquisas recentes comprovaram que jogar videogames pode auxiliar na prevenção da doença de Alzheimer em idosos, uma vez que tendem a estimular a memória do jogador, tanto por causa do aprendizado das regras quanto em relação à memorização do ambiente tridimensional das fases do jogo. Criado especificamente para auxiliar na pesquisa, o Sea Hero Quest é um jogo para dispositivos móveis em que os participantes usam habilidades ligadas à navegação tridimensional, gerando dados que irão auxiliar os pesquisadores a entender melhor a doença de Alzheimer.

Duas cenas do jogo Sea Hero Quest para dispositivos móveis, criado especificamente para ajudar na pesquisa da doença de Alzheimer.

Esse esforço de se usar jogos para fins terapêuticos é parte de um movimento maior –  geralmente chamado de jogos sérios –, que sucedeu e ampliou o conceito dos jogos educativos. Jogos sérios podem ser entendidos como aqueles que tratam de temas considerados de relevância (social, econômica, política, educacional etc.) e que buscam, além do entretenimento, promover mudanças na vida real, fora do jogo.

Assim, jogos sobre preservação do meio ambiente, sobre direitos políticos, sobre boa alimentação, aqueles que ensinem conteúdos específicos e vários outros podem ser considerados jogos sérios. A finalidade básica dos jogos sérios é engajar e transformar seus jogadores para, por meio de atividades lúdicas, promover mudanças e melhorias na vida real. Uma das áreas mais promissoras é a dos jogos para a saúde.

 

Em prol da saúde

Os jogos digitais começaram a ser usados no campo da saúde devido à atração que essa mídia exercia principalmente entre os mais jovens, mas logo estudiosos perceberam outras características vantajosas. Segundo a pesquisadora em mídia digital norte-americana Debra Lieberman, da Universidade da Califórnia em Santa Bárbara (EUA), os jogos permitem mostrar ao jogador, de modo claro, relações de causa e efeito entre comportamentos cotidianos e riscos futuros à saúde, possibilitam que eles ensaiem comportamentos saudáveis em um ambiente seguro, onde a falha não causa danos à saúde real, e promovem o autocuidado e a autodeterminação.

Isso ocorre tanto em jogos que comunicam determinados riscos à saúde, doenças ou vulnerabilidades quanto em jogos terapêuticos, que buscam empregar essa mídia como coadjuvante em tratamentos clínicos. Um exemplo bem-sucedido é o Re-Mission, criado para auxiliar jovens pacientes com câncer a aprender mais sobre a doença e aumentar sua autoestima. Re-Mission foi criado com a ajuda de oncologistas, enfermeiros, pacientes e seus familiares. Nele, o jogador controla uma robô miniaturizada que é inserida em um corpo humano e deve destruir as células cancerosas usando armas inspiradas nos tratamentos, como foguetes bioquímicos e uma pistola radioativa.

O jogo Re-Mission foi desenvolvido para auxiliar jovens pacientes com câncer a aprender mais sobre a doença e aumentar sua autoestima.

O jogo foi testado e se mostrou muito bem-sucedido. Ele não apenas ampliou a compreensão sobre a doença e a autoestima dos pacientes, como também a sua adesão ao tratamento: eles passaram a se submeter às terapias de modo mais ativo, efetivamente ampliando sua qualidade de vida.

As regras de um jogo digital não apenas contam uma história, mas formam um sistema dinâmico de causas e efeitos, capaz de demonstrar ao jogador o funcionamento de processos que não seriam claros se explicados de uma maneira textual e linear. Os malefícios do fumo no organismo, o ciclo de transmissão e infecção do HIV, o impacto da poluição na vegetação e suas consequências na saúde, todos esses são exemplos de sistemas dinâmicos complexos, que, embora difíceis de se explicar textualmente, podem ser modelados na forma de regras de um jogo, permitindo ao jogador interagir com elas e aprender em primeira mão as consequências de cada mudança no sistema.

Além disso, merece destaque a relação entre o jogador e sua representação no jogo, ou seu avatar, como é chamado. O psicólogo sino-americano Nick Yee, especializado em jogos digitais, defende que existe uma relação de identificação entre o jogador no mundo real e seu avatar no mundo virtual do jogo. Não no sentido de que o jogador ‘se torna’ o avatar, mas sim no de que o jogador, ao usar o avatar para interferir no jogo, acaba se influenciando pelas características positivas dele, modificando em algum grau o seu próprio comportamento.

Esse fenômeno, chamado por Yee de ‘efeito Proteus’, seria, por exemplo, responsável pela mudança de atitude de muitos jogadores tímidos, que, ao jogar com personagens mais poderosos, passam a ser mais decididos nas conversas com outras pessoas on-line. E, em alguns casos, chegam a trazer essa mudança no relacionamento com as pessoas no mundo real.

Nesse aspecto, a ideia do avatar como um ‘corpo digital’, combinada ao efeito Proteus, torna-se um importante fundamento para os jogos de saúde, que defendem que, se o jogador aprender formas de cuidar melhor do ‘bem-estar’ e da ‘saúde’ do seu avatar dentro do jogo, esse conhecimento pode, de algum modo, transbordar para além do jogo e impactar sua vida de forma positiva, melhorando sua saúde no processo.

 

Participação: do virtual para o real

Por último, mas não menos importante, quando se pensa em saúde no Brasil, é necessário resgatar uma das diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS): a da participação da comunidade na construção de políticas públicas de saúde. A ideia de fundo é empoderar a população para que ela também possa decidir ativamente sobre o sistema de saúde que a serve.

Historicamente, sempre foi difícil fomentar essa participação, ainda mais levando-se em conta que grande parte da comunicação em saúde no Brasil ocorre em mídias de massa tradicionais, como impressos e televisão, meios de comunicação unidirecionais, que não permitem um diálogo com o público e que muitas vezes são consumidos passivamente por este.

Ao contrário das mídias anteriores, que permitem a contemplação passiva, jogos são participativos por natureza, requerendo forçosamente a interação. Assim, o envolvimento do jogador tende a ser sempre mais intenso e, nesse processo, ele apreende não apenas o conteúdo de saúde do jogo, mas interage de forma criativa com as suas regras, elaborando estratégias e testando-as dinamicamente, muitas vezes de modo cooperativo com outros jogadores.

Embora essa participação não seja exatamente igual à preconizada pelo SUS, interagir em um videogame e lidar dentro dele com aspectos de saúde pode ser um passo importante naquela direção.

Ao ver os sistemas sociais modelados em regras de jogo, o jogador pode interagir com elas, compreender melhor seu funcionamento, sua lógica e suas contradições. Trazendo esse conhecimento para fora do jogo, esse processo tem o potencial de deixar claras as relações de causa e efeito na sociedade – onde as regras existem, mas não são tão evidentes como em um jogo – e de fazer perceber que essas relações podem ser alteradas para se tornarem mais equilibradas e justas.

Assim, de um potencial negativo que muitos ainda insistem em atrelar aos jogos digitais, podemos passar a pensar nas possibilidades positivas de se transformar o jogador e até de impactar o ambiente fora do jogo, mudando o mundo para melhor durante esse processo. Se os jogos puderem contribuir com isso, todos nós seremos vencedores.

Marcelo Simão de Vasconcellos

Polo de Jogos e Saúde,
Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnologia em Saúde,
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)
Programa de Pós-graduação em Divulgação da Ciência, Tecnologia e Saúde,
Fiocruz

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