Aprendizado, memória e cultura em insetos

Departamento de Microbiologia, Parasitologia e Imunologia
Centro de Ciências Biológicas
Universidade Federal de Santa Catarina
Departamento de Parasitologia
Instituto de Ciências Biológicas
Universidade Federal de Minas Gerais

Insetos seriam capazes de aprender? Se a resposta for afirmativa, seguem naturalmente outras perguntas. Eles se lembrariam do que aprenderam? Poderiam transmitir o que sabem? Essas questões intrigantes são tema de pesquisas atuais que estudam a capacidade de aprendizado e memória – e até mesmo a presença de cultura – nesses animais. Os benefícios dessas investigações podem ir do controle de pragas e doenças ao desenvolvimento de robôs.

CRÉDITO: FOTOS ADOBE STOCK

Em animais, a inteligência pressupõe a capacidade de aprender e responder a diferentes estímulos ambientais, bem como a de fazer previsões e escolhas. Memória é a capacidade de se lembrar do que se aprendeu. 

O instinto, também observado em insetos, é um comportamento herdado, inato à espécie. Serve para habilitar o animal a viver no ambiente e está, geralmente, vinculado a questões de alimentação, defesa e reprodução. 

Em insetos, exemplo de instinto seria o fato de certas espécies de pulgas continuarem a exercer a hematofagia – alimentar-se de sangue –, para que o excesso de fluido, eliminado pelo ânus, sirva de alimento às larvas.  

Mas, além de desenvolverem atividades úteis para si mesmos – e, às vezes, também para os da mesma espécie –, os insetos seriam capazes de aprender? Eles se lembrariam do que aprenderam? Poderiam ensinar o que sabem?

Mas, além de desenvolverem atividades úteis para si mesmos – e, às vezes, também para os da mesma espécie –, os insetos seriam capazes de aprender? Eles se lembrariam do que aprenderam? Poderiam ensinar o que sabem?

Essas questões, provavelmente, nos fazem lembrar de características importantes sobre os insetos: eles são seres com cérebros diminutos e vida curta, atributos que, em princípio, inviabilizariam qualquer aprendizado. Uma suposição comum aponta para eles serem dotados só de instinto, herdado de seus antepassados mais bem sucedidos. 

Mas o fato é que essas aparentes limitações não os impedem de aprender e usar as informações para desenvolverem suas atividades. 

Pioneiro da neuroanatomia, o médico espanhol Santiago Ramón y Cajal (1852-1934), Nobel de Medicina de 1906, e seu colaborador Domingo Sánchez (1860-1947), concluíram, em extenso trabalho de 1915, que os insetos têm “um sistema nervoso extraordinariamente complexo e diferenciado” e que “comparar sua estrutura com a dos anfíbios e répteis seria como se comparássemos um relógio de parede com um de bolso, maravilha do refinamento, delicadeza e precisão”.

 Em insetos, as pesquisas foram inicialmente restritas a abelhas-europeias (Apis mellifera) e moscas-das-frutas (Drosophila melanogaster). Depois, passaram a grilos, baratas, formigas e outros grupos, mostrando a riqueza dos mecanismos de aprendizado e memória, bem como as diferentes redes neurais envolvidas. 

Em Drosophila, estudo da genética de larvas indicou a existência de cerca de 131 mil neurônios (células nervosas), em vários aglomerados (clusters), já desenvolvidos nas larvas e que seguem se desenvolvendo em adultos. Essas células desempenham funções similares às dos 70 milhões delas nos camundongos ou dos 86 bilhões nos humanos. 

Nessas moscas, circuitos cerebrais necessários para o aprendizado e a memória têm sido muito estudados. Eles estão mais concentrados em corpos cerebrais cuja forma lembra a de um cogumelo. Têm três camadas e estão voltados para o processamento da informação. 

Outros artrópodes, como crustáceos, apresentam estrutura semelhante, mas seu funcionamento segue desconhecido.

Lição da literatura

Há especial interesse no estudo do aprendizado e da memória em insetos que são vetores de doenças em humanos. A razão principal é que, ao se conhecer melhor o comportamento desses animais, poderíamos, por exemplo, desviá-los não só para hospedeiros que não sejam bons reservatórios para os parasitos transmitidos por eles, mas também para locais menos perigosos para nós. 

Mas por que estudar insetos aparentemente sem importância para humanos? Resposta: os dados obtidos a partir desses modelos poderiam ser úteis para compreender o sistema nervoso de outros animais – e, como bônus, a evolução da cognição. 

Em seu livro 1984, o autor britânico George Orwell (1903-1950) escreve: “quem controla o passado controla o futuro”. A passagem pode ensinar lição útil ao estudo dos insetos: poderíamos ensiná-los a ter preferência por certos alimentos ou a fazer a postura dos ovos em locais mais interessantes (ou menos perigosos) para nós. 

Vamos a exemplos. Mosquitos Culex da Tailândia voltavam a picar animais da mesma espécie (porcos ou bois) que já haviam picado, mas não transmitiam essa preferência para seus descendentes. 

Isso é indicativo de que esse comportamento é fruto de aprendizado e memória – e não de processo baseado na seleção natural. Nesse caso, seria útil reforçar a preferência por bois, que não são bons hospedeiros para o vírus que transmite, para humanos, a encefalite japonesa (doença inflamatória do sistema nervoso central). 

Fêmeas imaturas do mosquito tropical urbano (Culex quinquefasciatus) criadas em água com substância atraente (p-cresol) ou repelente (escatol) passaram, quando adultas, a fazer a postura em água com a mesma substância em que se desenvolveram.

Fêmeas dessa espécie, bem como as do mosquito Aedes aegypti (transmissor da dengue, chicungunha e zika), quando submetidas a doses subletais de cinco inseticidas, aprenderam a evitar o contato com esses compostos. Há muito, sabe-se que mosquitos evitam o contato com superfícies em que há inseticidas, comportamento que, provavelmente, envolve aprendizado. 

Quando treinados em laboratório para atacar determinada espécie, predadores e parasitoides de pragas têm menor preferência por outros alvos. Mais uma vez, isso pode ser entendido como resultado de aprendizado.

Para além da biologia

A pesquisa nessa área tem permitido obter informações úteis – e fascinantes. Exemplos: i) vespas aprendem, com base na observação de potenciais adversários, quais elas devem enfrentar; ii) em lepidópteros (borboletas e mariposas) e mosquitos, parece haver preservação, entre adultos, de aprendizado obtido ainda na fase larval; iii) formigas podem ser treinadas para detectar câncer – o que é mais barato e rápido que o uso de cães nessa tarefa; iv) insetos que se alimentam de seiva (fitófagos) aprendem a se defender de vespas predadoras a partir de experiências anteriores.

O estudo da inteligência – principalmente, com base no funcionamento de poucos neurônios – vem servindo para progressos em robótica, como a criação de robôs com cérebros parecidos com os de insetos.

O estudo da inteligência – principalmente, com base no funcionamento de poucos neurônios – vem servindo para progressos em robótica, como a criação de robôs com cérebros parecidos com os de insetos

Com genética bem conhecida, as mosquinhas Drosophila, por causa da facilidade de manipulação dos circuitos cerebrais relacionados ao seu comportamento, vêm servindo como modelo para o estudo de doenças relacionadas ao desenvolvimento neurológico, como o autismo. 

Já foi demonstrado que o sono em Drosophila é importante para a memória desse inseto.  Esse estado fisiológico complexo tem a função de reduzir ‘conexões’ (sinapses) desnecessárias entre neurônios, bem como o consumo de energia do cérebro, permitindo que o órgão se autorregule e permaneça em equilíbrio (homeostase).

O sono em Drosophila depende de certos tipos de genes (denominados ortólogos) também presentes em mamíferos, o que demostra semelhança de mecanismo entre animais tão distintos e permite que essa mosca seja usada para estudar essa função fisiológica em humanos.

Microbiota e inseticidas

A microbiota intestinal (conjunto dos microrganismos presentes nesse órgão) tem, em vários animais (inclusive, humanos), estreita relação com o sistema nervoso. 

Também em insetos, alterações dessa microbiota causam efeitos comportamentais significativos. Nas abelhas, por exemplo, as consequências dessas modificações guardam semelhanças com as que ocorrem em humanos, o que tem permitido o uso desse inseto como modelo para o estudo, por exemplo, de autismo e Alzheimer.

A supressão da microbiota em formigas Acromyrmex echinatior leva à agressão entre indivíduos da mesma espécie – provavelmente, por causa da modificação de substâncias (hidrocarbonetos) da cutícula (exoesqueleto). Em baratas da espécie Blatta germanica, a alteração impede a agregação, pela ausência de compostos voláteis (ácidos carboxílicos) nas fezes. 

Moscas Drosophila sem microbiota têm desempenho pior em ensaios de aprendizado e memória, mas o desempenho é reconstituído com a injeção simultânea de bactérias Lactobacillus e Acetobacter – por sinal, efeito e reversão similares são observados em ratos tratados com antibióticos e, depois, inoculados com Lactobacillus

Os inseticidas neonicotinoides e similares são eficazes para o controle de insetos na agricultura, por exemplo. Mas esses compostos prejudicam a memória, o ciclo circadiano (dia-noite) e o sono de abelhas, essenciais para a atividade de forrageamento e polinização das plantas, com prejuízo para a natureza e várias culturas. 

Também em abelhas, o inseticida deltametrina prejudica a comunicação entre indivíduos feita por meio da ‘dança’. Gases provenientes da queima de petróleo prejudicam o aprendizado, e a narcose induzida por gás carbônico afeta a memória nesses insetos.

Aprendizado e dialetos

Grilos são capazes de reter o aprendizado ao longo da vida. Por exemplo, conseguem distinguir até sete odores diferentes. Espécies silvestres desse inseto aprendem a evitar aranhas, depois de ver um companheiro ser apanhado.

Grilos são capazes de reter o aprendizado ao longo da vida. Por exemplo, conseguem distinguir até sete odores diferentes. Espécies silvestres desse inseto aprendem a evitar aranhas, depois de ver um companheiro ser apanhado

Moscas (Drosophila, domésticas e varejeiras) aprendem a evitar odores associados a choques elétricos – por sinal, já foi demonstrado que as Drosophila desenvolvem ‘dialetos’, os quais dificultam a comunicação com indivíduos que vivem em outras regiões, algo observado em aves, por exemplo.

Insetos herbívoros e seus predadores ou parasitoides desenvolvem aprendizado em busca do sucesso individual, com base em uma vigilância mútua e constante. Por exemplo, parasitoides tentam localizar suas presas sentindo seus odores e frequentando as plantas que elas frequentam, enquanto estas últimas variam de plantas para fugir dos ataques.

É possível melhorar o aprendizado e a memória em insetos? Experimentos demonstram que sim. Estudos controlados feitos em laboratório, com base na seleção de Drosophila, levaram, após dezenas de gerações, a indivíduos dotados de melhor capacidade nesses atributos. 

Outras pesquisas, no entanto, mostraram que mutantes dessas moscas têm sérios problemas nesses dois aspectos. A conclusão foi que os genes responsáveis por essas deficiências são deletérios para a espécie e, provavelmente, levam a problemas nas populações naturais desses insetos. 

A capacidade de aprendizado também está relacionada com a expressão gênica. A comparação entre abelhas com facilidade de aprendizado e aquelas com dificuldade indicou que essa diferença está marcada pela atividade de 74 genes. Desse total, 57 deles têm ‘alta’ atividade (tecnicamente, superexpressos) no primeiro grupo, enquanto 17, ‘baixa’ atividade (subexpressos) no segundo.

Envelhecimento e memória

O envelhecimento pode causar redução na capacidade de aprendizado e memória. Nesse aspecto, insetos não são exceção.

O envelhecimento pode causar redução na capacidade de aprendizado e memória. Nesse aspecto, insetos não são exceção

Quando idosos, grilos da espécie Grillus bimaculatus – cuja vida média é de duas semanas, depois da última muda do exoesqueleto – têm dificuldade para reter o que aprendem, mas mantêm o aprendizado adquirido cerca de dez semanas antes, quando ainda eram ninfas. 

Assim como em outros insetos, grilos podem ser treinados – por exemplo, para direcionar seus saltos. Estudos mostraram que, antes desse treinamento, a injeção de estimulantes melhora a memorização. 

A facilidade de aprendizado e esquecimento – esta última capacidade é possivelmente útil e, portanto, não significa necessariamente deficiência – pode ter relação com o ambiente em que se vive.

Cultura?

Insetos não reagem ‘automaticamente’ aos estímulos. Eles os sentem e reagem a eles com base em ações complexas. Isso nos leva a suspeitar de que pode haver um grau de senciência (capacidade de sentir sensações) nesses animais. 

Se essas suspeitas foram comprovadas, isso poderia levar a considerações bioéticas em relação aos insetos, com base, por exemplo, nas ideias defendidas pelo filósofo britânico Jeremy Bentham (1748-1832), resumidas no seguinte trecho escrito em 1789: “A questão não é ‘Eles podem raciocinar?’, nem ‘Eles podem falar?’, mas ‘Eles podem sofrer?’.

Esses conceitos contrariam, por exemplo, o pensamento do francês René Descartes (1596-1650), para quem animais eram ‘autômatos’, ou seja, ‘máquinas sem alma’ que não sentiriam dor ou expressariam alegria, tristeza etc.

Poucas décadas atrás, havia consenso de que cultura – no sentido de transmissão de conhecimento de um indivíduo a outro, entre gerações – fosse atributo exclusivo de humanos. Mas, paulatinamente, ela tem sido observada em outros animais, como macacos a pardais – e até mesmo entre abelhões e moscas Drosophila.

Poucas décadas atrás, havia consenso de que cultura – no sentido de transmissão de conhecimento de um indivíduo a outro, entre gerações – fosse atributo exclusivo de humanos

Aprendizado e memória em insetos têm sido intensamente estudados no mundo. O número de publicações nesse campo chega a quase 50 mil desde 2000. Apesar de ser tema de pesquisa entre cientistas latino-americanos, essa área precisa de mais incentivos nessa região.

DE CROON, G. C. H. E.; DUPEYROUX, J. J. G.; FULLER, S. B.; MARSHALL, J. A. R. Insect-inspired AI for autonomous robots. Science Robotics, v. 7, n. 7, p. eabl6334, 2022. Doi: https://doi.org/10.1126/scirobotics.abl6334 

GOUZERH, F.; GANEM, G.; PICHEVIN, A.; DORMONT, L.; THOMAS, F. Ability of animals to detect cancer odors. BBA – Reviews on Cancer, v. 1878, p.188850, 2023. 

MARIANO, V.; ACHSEL, T.; BAGNI, C.; KANELLOPOULOS, A. K. Modelling learning and memory in Drosophila to understand intellectual disabilities. Neuroscience, v. 445, pp. 12-30, 2020.

MATSUMOTO, Y. Learning and memory in the cricket Gryllus bimaculatus. Phisiological Entomology, v. 47, pp. 147-161, 2022.

SOUBOUFARA, S.; YORKSTON-DIVES, H.; AKLEE, N. M.; RUS, A. C.; ZAIRI, J.; TRIPLET, F. Standardised bioassays reveal that mosquitoes learn to avoid compounds used in chemical vector control after a single sublethal exposure. Scientific Reports (Nature), v. 12, p. 2206, 2022. Doi: https://doi.org/10.1038/s41598-022-05754-2

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