As discussões internacionais sobre a definição ‘oficial’ do museu do século 21 foram retomadas pelo Conselho Internacional de Museus (ICOM) em 2016, após a aprovação pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), em 2015, de uma Recomendação sobre a Proteção e Promoção de Museus e Coleções, sua Diversidade e seu Papel na Sociedade. A partir de janeiro de 2017, foi estabelecido um comitê específico para propor uma nova definição de museu: o Comitê Permanente para a Definição de Museu, Prospectivas e Potenciais (MDPP, na sigla em inglês). Entre suas atribuições, o comitê deveria apresentar alguns novos textos para a definição de museu para serem votados em assembleia extraordinária na Conferência Geral do ICOM de 2019, realizada em Quioto, no Japão. Aprovada, a nova definição seria incorporada como uma emenda ao estatuto da organização para ser adotada em legislações nacionais em diversos países e orientar políticas públicas no campo dos museus ao redor do mundo.
Contudo, a pretensão à universalidade dos termos que definem os museus – estes últimos reconhecidos atualmente por sua diversidade e por sua fluidez potencial nos diferentes contextos culturais – é o paradoxo fundante de um debate que até o momento não apresentou uma resposta possível de ser um consenso mesmo no seleto grupo de membros do ICOM ou entre os profissionais que atuam nos museus centrais.
Desde que foi criado, o ICOM transparece uma preocupação latente com a determinação de termos e conceitos específicos ligados ao campo dos museus e da museologia. Na década de 1950, o ICOM criou a sua própria definição (evolutiva) para o termo ‘museu’, que foi desde então o centro de diversas e complexas discussões teóricas e normativas entre os comitês especializados que compõem a organização.
Ainda no final dos anos 1950, o museólogo francês Georges Henri Rivière, um dos fundadores do ICOM e seu primeiro diretor, propôs uma definição de museu que passaria a figurar com valor normativo no estatuto da organização:
Um museu é um estabelecimento permanente, administrado com o interesse geral de conservar, estudar, valorizar pelos meios diversos e essencialmente expor, para o deleite e a educação do público, um conjunto de elementos de valor cultural: coleções de interesse artístico, histórico, científico e técnico, jardins botânicos e zoológicos, aquários, etc.
O texto, escrito para um órgão majoritariamente criado por diretores de museus europeus, expressa ideia mais tradicional de museu, a de expor as coleções de um valor cultural reconhecido. No início dos anos 1970, esses mesmos valores seriam contestados por meio de uma abertura progressiva do ICOM aos países fora da Europa, em que os museus eram um traço marcante dos processos de colonização.
Na 9ª Conferência Geral do ICOM, que ocorreu na França, em 1971, ao reconhecer o museu como “teoricamente e praticamente ligado a um mundo (o mundo europeu), a uma classe (a classe burguesa cultivada)” e “a uma certa visão da cultura”, o intelectual africano Stanislas Adotevi, do Benin, marcou um momento de reflexões que iriam dar início a um processo de transformação das bases – teóricas e políticas – a partir das quais a definição de museu vinha sendo pensada. Na Mesa Redonda de Santiago do Chile, um ano depois, motivados por um processo que já se autointitulava ‘descolonização’ dos museus, os membros do ICOM e da UNESCO se propuseram a debater o papel social dos museus na América Latina, região ainda pouco representada nos debates terminológicos travados no interior do ICOM.
A partir dos ecos dos debates travados em Santiago, os membros do ICOM, em 1974, aprovaram uma nova definição para o seu estatuto, à época considerada progressista:
O museu é uma instituição permanente, sem fins lucrativos, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento, aberta ao público, e que realiza pesquisas sobre os testemunhos materiais do homem e de seu meio ambiente, os adquire, conserva, comunica e principalmente expõe para fins de estudos, educação e deleite.
A concepção de que o museu se define por estar “a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento” provocou reações dos mais conservadores, que consideraram uma politização inapropriada do propósito dos museus, e para os quais a definição devia manter a sua neutralidade aparente. A definição aprovada em 1974, entretanto, mantinha a ênfase nos “testemunhos materiais” e nos processos mais tradicionais desempenhados pelos museus no mundo. Tendo sido aprovada na mesma década em que se desenvolviam os ecomuseus na França, e outros protótipos experimentais que concebiam a cultura em seu sentido amplo, a definição excluía qualquer menção ao patrimônio intangível.
Progressivamente, no campo acadêmico da museologia, o conceito de museu ia deixando de ter em seu centro a noção de coleção necessariamente, e novas concepções passaram a ser formuladas apesar da ênfase mantida pelo ICOM. O britânico Geoffrey Lewis propôs uma definição que não se funda sobre o prédio ou no caráter institucional do museu, mas no princípio da coleção em um sentido mais amplo, ao definir o museu como “um suporte de conhecimentos composto de testemunhos materiais e imateriais do patrimônio cultural e natural da humanidade”. O museu pode ser pensado, neste sentido, como um lugar real ou virtual, que mantém elementos diversos em benefício de um público. Essa concepção não está atrelada a uma coleção de objetos materiais.
Entre os anos de 2003 e 2004, incentivados pelo próprio ICOM, diversos pensadores dos comitês especializados propuseram mudanças à definição de 1974. Finalmente, em 2005, os membros do Comitê Internacional de Museologia (ICOFOM) se reuniram em Calgary, no Canadá, gerando um fórum de discussão específico para a reflexão sobre o conceito de museu proposto pelo ICOM. O resultado foi uma proposição de definição e uma publicação específica, de cunho teórico, acerca da definição do museu, com textos escritos pelos principais teóricos do campo da museologia. A definição proposta enfatiza as funções de pesquisa, preservação e comunicação, se referindo ao modelo de museu desenvolvido por Peter van Mensch em sua tese (1992), este amplamente derivado do pensamento de Zbyněk Stránský. Além disso, a definição considerava pela primeira vez o patrimônio imaterial. Foi reconhecido, em Calgary, que a definição deveria ter caráter evolutivo, considerando diversas atualizações ao longo do tempo. Apesar dos debates teóricos travados e da retomada do debate sobre o próprio valor normativo da definição, em 2007, o ICOM adotou um texto não muito distinto daquele de 1974, e que permanece em vigor:
o museu é uma instituição permanente, sem fins lucrativos, a serviço da sociedade e do seu desenvolvimento, aberta ao público, que adquire, conserva, pesquisa, expõe e transmite o patrimônio material e imaterial da humanidade e do seu meio, com fins de estudo, educação e deleite.
Como se provou ao longo dos anos de existência do ICOM, a definição de museu apresentada em seu estatuto produz efeitos internos e externos à organização. Internamente, o ICOM faz uso dessa ferramenta normativa para definir parceiros institucionais e para admitir seus membros – ou seja, a definição de museu também determina a definição do próprio ICOM em seu corpo de profissionais e instituições. Externamente, a definição engendra normativas em diversos níveis, seja na legislação que opera os museus em diversos países (como, em nosso caso, no Brasil, com a lei n. 11.904 de 14 de janeiro de 2009) e ajuda a definir políticas públicas para o campo museal (este também é o caso da Política Nacional de Museus, instituída no país em 2003).
Existem limites para o museu? A pergunta colocada de forma provocativa durante uma Conferência Geral do ICOM, realizada no Québec, no Canadá, em 1992, atinge o cerne da organização que trabalha para a normatização internacional dos museus e nos leva a considerar a impossibilidade mesma de defini-los. Tal pergunta também nos aponta para a necessidade de considerar os novos paradigmas que definem essas instituições em suas práticas e nos valores que as orientam no mundo contemporâneo. Conciliar a vontade por mudanças que afetam as sociedades em sua pluralidade cultural e na diversidade de formas de apropriação do patrimônio, com os fundamentos de um campo que vem pensando os museus ao longo de sua história é, hoje, o desafio primeiro de uma definição que pretende conciliar polos de interesses divergentes em um só texto amplo e com pretensões universalistas.
Uma definição é ao mesmo tempo o resultado de uma observação e a afirmação de uma utopia. Nunca chegaremos a uma definição possível, justa e precisa do museu no mundo contemporâneo, visto que não existe um museu passível de se definir, e os modelos propostos no passado já se esgarçaram o suficiente para serem abandonados em seu sentido normativo. Contra toda a padronização dos museus, mas ainda assim em busca de um consenso teórico-normativo, o ICOM segue lutando para se alcançar a definição mais adequada para os museus deste século. O que testemunhamos, entretanto, é a disputa de narrativas sobre os valores e o propósito que guiarão essa organização transnacional no presente e no futuro. Que museu teremos para as novas gerações de profissionais e de públicos? Que museus desejamos ter?
Existem limites para o museu? A pergunta colocada de forma provocativa durante uma Conferência Geral do ICOM, realizada no Québec, no Canadá, em 1992, atinge o cerne da organização que trabalha para a normatização internacional dos museus e nos leva a considerar a impossibilidade mesma de defini-los. Tal pergunta também nos aponta para a necessidade de considerar os novos paradigmas que definem essas instituições em suas práticas e nos valores que as orientam no mundo contemporâneo. Conciliar a vontade por mudanças que afetam as sociedades em sua pluralidade cultural e na diversidade de formas de apropriação do patrimônio, com os fundamentos de um campo que vem pensando os museus ao longo de sua história é, hoje, o desafio primeiro de uma definição que pretende conciliar polos de interesses divergentes em um só texto amplo e com pretensões universalistas.
Uma definição é ao mesmo tempo o resultado de uma observação e a afirmação de uma utopia. Nunca chegaremos a uma definição possível, justa e precisa do museu no mundo contemporâneo, visto que não existe um museu passível de se definir, e os modelos propostos no passado já se esgarçaram o suficiente para serem abandonados em seu sentido normativo. Contra toda a padronização dos museus, mas ainda assim em busca de um consenso teórico-normativo, o ICOM segue lutando para se alcançar a definição mais adequada para os museus deste século. O que testemunhamos, entretanto, é a disputa de narrativas sobre os valores e o propósito que guiarão essa organização transnacional no presente e no futuro. Que museu teremos para as novas gerações de profissionais e de públicos? Que museus desejamos ter?
Logo, os riscos de uma nova definição romper laços com uma noção tradicionalmente enraizada nas definições orgânicas do próprio ICOM, bem como em legislações nacionais de diversos países signatários, precisam ser considerados quando nos propomos a pensar uma nova definição do museu para este século. Considerada por muitos como ultrapassada, ou demasiadamente atrelada a uma ideia hegemônica do museu, a definição vigente ainda carrega, em sua estrutura e valores fundantes, os traços de um tradicionalismo que percorreu a história do ICOM, sobrevivendo a sucessivas rupturas e retomadas. Para Jette Sandahl, que desde 2017 coordena o MDPP, o preço a se pagar caso a definição não seja revisada também deve ser considerado. Segundo a diretora de museus da Dinamarca, neste caso o risco seria de os museus continuarem a ser percebidos como “atrelados a alegorias de séculos passados”.
A partir dos trabalhos iniciados em 2017, envolvendo profissionais de museus do mundo, não necessariamente membros do ICOM, o MDPP apresentou ao conselho executivo do ICOM cinco proposições de texto para uma nova definição, expressando a necessidade de uma ruptura com o texto vigente. O conselho executivo, por sua vez, deliberou, em julho de 2019, que uma das propostas de definição fosse apresentada aos membros para ser votada em uma assembleia extraordinária na 25º Conferência Geral, em Quioto. O texto escolhido reflete um desejo pela mudança dos valores que fundamentam essa organização projetados sobre os museus do século 21:
Os museus são espaços democratizantes, inclusivos e polifônicos que atuam para o diálogo crítico sobre os passados e os futuros. Reconhecendo e abordando os conflitos e desafios do presente, mantêm artefatos e espécimes de forma confiável para a sociedade, salvaguardam memórias diversas para as gerações futuras e garantem a igualdade de direitos e a igualdade de acesso ao patrimônio para todos os povos.
Os museus não têm fins lucrativos. São participativos e transparentes, e trabalham em parceria ativa com e para as diversas comunidades, a fim de colecionar, preservar, investigar, interpretar, expor, e ampliar as compreensões do mundo, com o propósito de contribuir para a dignidade humana e a justiça social, a equidade mundial e o bem-estar planetário.
Após intensos debates envolvendo os pontos de vista a favor e contra a nova proposta de definição, a assembleia extraordinária encerrou-se com a decisão controversa de um adiamento da aprovação, sem data definida para uma nova votação. Em fevereiro de 2020, uma nova configuração do MDPP foi proposta pelo conselho executivo do ICOM, envolvendo maior participação de representantes dos comitês nacionais e internacionais, sob a coordenação de Sandahl. Com uma agenda mais ampla para que o ICOM escute os seus membros, o novo comitê terá o desafio de partir de um texto de ruptura sem deixar de considerar o amplo histórico de debates sobre os museus para esboçar uma nova definição para esta organização e para o mundo.
Bruno Brulon
Escola de Museologia
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
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