‘Saúde Única’ em evidência

Instituto de Ciências Biológicas e da Saúde
Universidade Federal de Alagoas
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Departamento de Biologia
Universidade Federal Rural de Pernambuco
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Qual a relação entre a saúde de uma jovem, uma horta, antibióticos em animais e rejeitos hospitalares? A pergunta pode ser capciosa, mas sabemos que humanos, animais, plantas e o meio ambiente compartilham desafios de saúde. E, para enfrentá-los, é essencial uma abordagem integrada, cooperativa e holística: a chamada ‘Saúde Única’ ou ‘Uma Só Saúde’ (One Health, em inglês).

CRÉDITO: CEDIDA PELOS AUTORES

Figura 1. O caso de Mariana mostra uma conexão entre humanos, animais, plantas e ambiente na dispersão de bactérias resistentesJ

Imagine o cenário: Mariana é uma jovem de 21 anos que segue um estilo de vida saudável. Vegetariana há anos, prioriza alimentos frescos e, preferencialmente, preparados por ela mesma. Porém, a correria do dia a dia, às vezes faz com que ela se alimente num restaurante próximo do local onde trabalha, por considerá-lo um local de boa qualidade com preço justo.

Essa tranquilidade, entretanto, foi abalada por um episódio insólito: dias depois de consumir uma salada de alface orgânica nesse restaurante, começou a sentir cólicas intensas, febre alta e episódios de diarreia. Apesar de ter tomado antibiótico por conta própria, o quadro se agravou rapidamente, e ela precisou ser hospitalizada. 

Os exames confirmaram uma infecção causada por uma bactéria resistente a vários medicamentos (conhecida como bactéria multirresistente). Ela se recuperou após ser tratada adequadamente (ver ‘A tal resistência’).

Para surpresa de Mariana, a investigação revelou uma cadeia de contaminação: a alface consumida provinha de uma horta adubada com esterco de vacas de uma fazenda que utiliza antibióticos de forma indiscriminada, para aumentar a produção de leite. A horta era irrigada com água de um riacho que, por sua vez, estava contaminado por resíduos de ambientes hospitalares, despejados também em outros corpos d’água da região. 

Essas condições contribuíram para a disseminação de bactérias resistentes no ambiente e em toda a cadeia alimentar, reforçando a necessidade de uma abordagem de riscos que possibilite a percepção de que tudo está conectado, mesmo que não tenhamos (ainda) uma visão da ligação de todos os elos (humano, animal, planta e ambiente) (figura 1).

Tudo conectado

A experiência descrita ilustra a existência de uma rede complexa – e quase esquecida – que conecta animais, organismos fotossintetizantes, humanos e meio ambiente, constituindo um desafio crescente para a promoção da saúde. Esse desafio se intensifica na contemporaneidade, devido à ação humana na natureza (a chamada Era do Antropoceno) alterando processos naturais, por meio da globalização, movimentos migratórios, aquecimento global, expansão das fronteiras agropecuárias, desigualdade social, entre outros fatores. 

Tais condicionantes exigem soluções integradas e multissetoriais para enfrentar questões, como pandemias/epidemias, escassez de recursos naturais, insegurança alimentar, destruição ambiental, perda de biodiversidade e, no caso de Mariana, alimentos não seguros e resistência a antimicrobianos.

Segundo o Painel de Especialistas de Alto Nível em Saúde Única (OHHLEP, na sigla em inglês), composto por profissionais de diversas áreas, a Saúde Única (One Health) é definida como “uma abordagem integrada e unificadora que visa a equilibrar e otimizar, de forma sustentável, a saúde de pessoas, animais e ecossistemas. Reconhece que a saúde dos seres humanos, animais domésticos e selvagens, plantas e do ambiente mais amplo, incluindo os ecossistemas, está estreitamente ligada e é interdependente” (figura 2).

Figura 2. Representação do conceito de Saúde Única/Uma Só Saúde, segundo The One Health High-Level Expert Panel (OHHLEP)J

CRÉDITO: ADAPTADO DE OHHLEP, 2022

A Saúde Única vai além de um modelo teórico, de estratégias, ela deve ser encarada como uma abordagem, sendo cada vez mais uma prática necessária para enfrentar os desafios do presente e do futuro, mas também permitindo uma compreensão melhor das intercorrências do passado. 

É um convite a uma mudança de pensamento, abandonando a visão antropocêntrica dominante (focada apenas no humano) para adotar uma perspectiva ecocêntrica (que reconhece a importância de todas as formas de vida), que se alinha com a teoria do Holobionte, que considera seres humanos, animais, plantas e seus microrganismos associados como unidades evolutivas interdependentes (figura 3).

Figura 3. Convite a uma mudança de pensamento: da visão antropocêntrica para a ecocêntrica

CRÉDITO: CEDIDA PELOS AUTORES

Nesse contexto, o planeta seria uma unidade maior, onde todos os elementos interagem e se relacionam para a manutenção de todas as formas de vida.

Essa visão não é exclusiva da modernidade – tem raízes históricas profundas em civilizações antigas como as gregas, indianas e chinesas. Diferentes povos desenvolveram conceitos holísticos semelhantes, destacando a interdependência entre ambiente e seres vivos. 

Entre os povos originários brasileiros – os indígenas – predomina uma visão integrada do mundo físico e espiritual, em que a saúde é parte de um sistema complexo, e a Terra (e seus territórios) é reconhecida como uma entidade viva e sagrada, em conexão inseparável com todos os seres

Um pouco de história

O reconhecimento teórico e moderno da abordagem remonta ao século 19, com o surgimento da saúde pública e a consolidação da formação em medicina veterinária, com a criação da primeira escola de veterinária na França, pelo advogado Claude Bourgelat (1712–1779), demarcando um avanço fundamental, ao integrar a saúde animal à proteção da saúde humana. 

Nesse contexto, o médico e biólogo alemão Rudolf Virchow (1821–1902) e o médico canadense William Osler (1849–1919) introduziram o conceito de zoonoses (doenças transmissíveis entre animais e humanos) e a ideia de ‘uma medicina’, enfatizando a interconexão entre as doenças infecciosas/parasitárias de animais e humanos. 

No entanto, foi apenas no século 20 que o termo ‘one health’ foi formalmente proposto. Em 1976, o veterinário, parasitologista e epidemiologista norte-americano Calvin Schwabe (1927–2006) introduziu o conceito em seu livro Veterinary Medicine and Human Health, destacando a necessidade de uma abordagem integrada entre a medicina humana e veterinária para o controle de doenças emergentes. 

Com o passar do tempo, as doenças, principalmente as zoonoses, deixaram de ser a única frente de abrangência da Saúde Única.

Em 2008, a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Organização Mundial de Saúde Animal (OMSA, anteriormente OIE) e a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) estabeleceram uma abordagem integrada para a saúde, reconhecendo a interdependência entre saúde humana, animal e ambiental. 

Essa iniciativa ganhou força em 2022 com a inclusão do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA). Juntas, essas quatro instituições formam a Aliança Quadripartite da Saúde Única, com o objetivo de fortalecer a cooperação entre as organizações, melhorar a comunicação e coordenação entre os setores, integrar sistemas e capacidades para enfrentar as ameaças ao bem-estar e à saúde, promovendo a saúde das pessoas, animais, plantas e meio ambiente, com foco no desenvolvimento sustentável global.

Saúde Única/Uma Só Saúde no país

No Brasil, embora ações históricas adotem essa perspectiva holística, sua formalização ocorreu com o Comitê Interinstitucional de Uma Só Saúde, criado pelo Decreto Nº 12.007, de 25 de abril de 2024. O Comitê elabora e apoia a implementação do Plano de Ação Nacional de Uma Só Saúde, estabelecendo diretrizes para prevenir e controlar ameaças à saúde, reconhecendo a conexão entre saúde humana, animal, vegetal e ambiental. 

Sua missão é fortalecer a articulação interfederativa e multissetorial, assessorando o governo e apoiando pesquisas na área. Em 2024, foi fundada a Associação Brasileira de Saúde Única (ABRASUNI), reunindo profissionais e estudantes de diversas áreas.

Assim, a abordagem de Saúde Única/Uma Só Saúde oferece uma oportunidade transformadora para o desenvolvimento de infraestruturas, reforma política e avanços em pesquisa, sendo fundamental para construir sistemas resilientes que possam prevenir e responder a ameaças emergentes.

A tal ‘resistência’

A resistência bacteriana é a capacidade de sobrevivência do microrganismo em condições que deveriam ser letais para ele. Quando se faz uso de um antibiótico, procura-se eliminar o agente que causa a doença, para curar a infecção. No entanto, uma ou outra célula bacteriana pode apresentar alguma característica genética (proveniente de mutação do próprio genoma ou da aquisição de um material genético contendo essa mutação) que lhe confere vantagem, permitindo que ela sobreviva na presença do medicamento que a eliminaria. 

Essas bactérias – agora consideradas resistentes – continuam a se multiplicar, enquanto as demais, sensíveis ao medicamento, são eliminadas. Foi isso o que aconteceu com Mariana: ao se automedicar em casa, ela constatou que o antibiótico não fez o efeito esperado, tendo sua condição piorada até ser hospitalizada.

Segundo estudos do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) — órgão da ONU que atua em questões ambientais globais —, a resistência aos antimicrobianos pode estar relacionada a mais de 10 milhões de mortes diretas que ocorrerão até 2050, caso medidas efetivas não sejam adotadas. 

Embora seja um mecanismo natural das bactérias, seu avanço pode ser retardado com o uso consciente dos antimicrobianos na medicina humana, veterinária e agricultura. No Brasil, desde 2010, antibióticos são vendidos somente com prescrição médica, e o Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) tem proibido seu uso como promotores de desempenho animal. 

É importante destacar que a resistência aos antimicrobianos (RAM) também inclui a resistência a antiparasitários, antivirais e antifúngicos.

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A importância da educação

A educação transforma a sociedade ao estimular a reflexão, a revisão de hábitos e a busca por soluções para desafios globais. Diante das constantes mudanças, ensinar sobre saúde e sustentabilidade é essencial para formar gerações (atuais e futuras) mais conscientes e preparadas.

A abordagem ecopolítica da Saúde Única/Uma Só Saúde evidencia as conexões entre ações humanas e meio ambiente. Compreender as causas da degradação ambiental, mudanças climáticas e pandemias permite agir com mais responsabilidade. Integrar essa perspectiva aos currículos escolares amplia a visão dos estudantes sobre uma saúde mais integrada – não apenas de humanos, mas também de animais, organismos fotossintetizantes e do ambiente.

Repensar nossa relação com o planeta é urgente, e a educação deve ir além da teoria, formando cidadãos capazes de transformar conhecimento em ação. A abordagem da Saúde Única/Uma Só Saúde integra os saberes científicos às questões socioambientais e sanitárias, promovendo estratégias pedagógicas que estimulam a construção de soluções coletivas, interdisciplinares e conectadas com a realidade. 

Mais do que ampliar o conhecimento sobre problemas globais, essa perspectiva busca desenvolver atitudes e habilidades que permitam enfrentá-los de forma eficaz. Para integrar a educação na Saúde Única, a escola pode adotar diversas práticas pedagógicas que envolvem os estudantes em atividades como as que listamos a seguir:

1 – Estudo de casos interdisciplinares: Trabalhar com casos reais de zoonoses, como raiva, covid-19 e febre amarela, para discutir as interações entre saúde humana, animal, vegetal e ambiental;
2 – Projetos de mapeamento local: Incentivar os estudantes a investigar problemas socioambientais e sanitários da comunidade, como desequilíbrio ambiental e aumento da população de vetores (mosquitos, carrapatos, entre outros), promovendo intervenções comunitárias;

3 – Aulas práticas em espaços naturais: Realizar atividades em parques e áreas verdes para observar a biodiversidade local e refletir sobre a importância da preservação desses ambientes para a saúde, reconhecendo o papel ecológico de cada espécie;
4 – Feiras de ciências focadas em Saúde Única: Estimular a criação de projetos científicos que busquem soluções para problemas, ressaltando a interconexão das dimensões saúde humana, vegetal, animal e ambiental.

5 – Educação alimentar e nutricional: Desenvolver atividades que mostrem a relação entre a produção sustentável de alimentos, a saúde e a conservação ambiental, promovendo a diversidade alimentar como reflexo da biodiversidade;

6 – Cultura e artes: Realizar exposições, peças teatrais ou eventos culturais que abordem o impacto humano no meio ambiente e suas implicações para a saúde global, utilizando histórias de comunidades tradicionais para destacar abordagens integradas de cuidado com a natureza, promovendo equidade de gênero, racial e diversidade.

Essa abordagem didática reforça a importância da educação em formar cidadãos responsáveis, preparados para atuar de maneira consciente na promoção da saúde em sua integralidade. Diante da complexidade dos desafios contemporâneos, a Saúde Única/Uma Só Saúde nos convida a enxergar o mundo com mais conexão, responsabilidade e empatia, reconhecendo o quanto tudo está integrado e que, portanto, nossas escolhas individuais e coletivas impactam diretamente o presente e o futuro do planeta. 

Promover essa sensibilidade desde a educação básica, por meio de práticas pedagógicas que integrem ciência, cultura, território e afeto, é semear um caminho possível na formação de pessoas críticas e comprometidas com a promoção de um mundo mais justo, saudável e sustentável para todas as formas de vida – não apenas a humana!

CARNEIRO, L. A.; PETTAN-BREWER, C. One Health: conceito, história e questões relacionadas – revisão e reflexão. In: Pesquisa em Saúde & Ambiente na Amazônia: perspectivas para sustentabilidade humana e ambiental na região. Editora Científica Digital, 2021. Disponível em https://downloads.editoracientifica.com.br/articles/210504857.pdf.

FIOCRUZ. Saúde Única. Instituto Carlos Chagas – Fiocruz Paraná, 2023. Disponível em: https://www.icc.fiocruz.br/extensaodivulgacaocientifica/wp-content/uploads/2023/08/Saude-Unica.pdf

ONE HEALTH HIGH-LEVEL EXPERT PANEL (OHHLEP). WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO). One Health Theory of Change. Geneva: WHO, 2022. Disponível em: https://cdn.who.int/media/docs/default-source/one-health/ohhlep/ohhlep–one-health-theory-of-chance.pdf?sfvrsn=f0a46f49_6&download=true.

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