O Brasil e a ameaça do coronavírus

Jornalista ICH

O mundo está em alerta diante da epidemia da doença provocada pelo coronavírus na China. No Brasil, não é diferente. O infectologista Rivaldo Venâncio da Cunha, coordenador de Vigilância em Saúde e Laboratórios de Referência da Fundação Oswaldo Cruz, é um dos profissionais no comando da sala de situação, montada a fim de organizar e potencializar as contribuições da instituição diante da possível chegada do vírus ao Brasil e reduzir os seus danos. Entre as prioridades do grupo, que reúne setores da própria Fiocruz e secretarias de saúde, está desenvolver um kit diagnóstico acessível, com produção em larga escala e fazer parcerias internacionais para buscar uma vacina. Nesta entrevista, o infectologista diz que a Covid-19 – doença provocada pelo coronavírus – se dissemina mais rapidamente que a Sars, mas que seu potencial de letalidade pode ser inferior ao que parece atualmente. CRÉDITO: FOTO_PETER ILICCIEV

CIÊNCIA HOJE: Quais as diferenças entre a Covid-19, doença causada pelo coronavírus, e a Sars (Síndrome Respiratória Aguda Grave) e a Mers (Síndrome Respiratória do Oriente Médio)?

RIVALDO VENÂNCIO DA CUNHA: Todas são causadas por coronavírus primos irmãos, daí chamarmos o atual de coronavírus 19. Há uma parte da genética deles que é muitíssimo parecida, e outra pequena parte que os diferencia. Quando comparados os comportamentos das doenças causadas pelos três, a provocada pelo coronavírus parece estar se disseminando numa velocidade maior. Já são mais de 60 mil casos notificados (até meados de fevereiro). A velocidade e a amplitude da transmissão do coronavírus estão muito mais intensas do que a da Sars. Isso pode se dever a diferentes fatores. Podem ser as características intrínsecas dos vírus, sua capacidade de ser mais facilmente do transmitido do que o vírus da Sars. Também pesa a evolução científica e tecnológica do diagnóstico dessas enfermidades respiratórias de 2003, quando teve a Saars, a 2020. Houve uma melhoria no sistema de sistema de vigilância, apoiado sobretudo no suporte laboratorial. São hipóteses para justificar essa maior ocorrência de casos.


A velocidade e a amplitude da transmissão do coronavírus estão muito mais intensas do que a da Sars. Isso pode se dever a diferentes fatores

CH: Quais são os sintomas dessa doença? Existe algum sintoma específico que a diferencie de outras doenças respiratórias?

RIVALDO: Essa é extremamente parecida com outras enfermidades e vírus que causam doenças respiratórias. O processo infecioso vai desde uma infecção  assintomática – pessoas que tiveram contato com o vírus mas não desenvolveram quaisquer manifestações clínicas – a uma forma branda, leve, autolimitada, como nesses casos gripais em que ocorrem coriza, febre, dor de garganta e dor muscular, mas, em poucos dias, os sintomas vão embora. E há os quadros que podem ser um pouco mais sérios, culminando com formas extremamente graves, com síndrome de angústia respiratória ou sofrimento no processo respiratório do paciente, que pode levar a uma restrição do funcionamento circulatório ou respiratório, culminando com a morte dessa pessoa. Ou seja: a doença vai desde um polo assintomático a outro extremamente grave, que pode ser fatal.

 

CH: Existe algum grupo de risco na população?

RIVALDO: As informações que têm sido publicadas apontam que a população acima de 56 anos tem sido mais acometida, com manifestação clínica mais intensa, inclusive mortes. Também são alvo, sobretudo, pessoas que tenham doenças crônicas, em especial doenças pulmonares como asma, bronquite, enfisema (com diferentes causas, inclusive do cigarro), diabetes, hipertensão arterial ou que estejam fragilizadas em suas respostas imunológicas, seja em decorrência de imunodeficiência adquirida por enfermidade, como HIV, ou imunodeficiência causada por uso de medicamentos, como corticosteroides em altas doses, quimio e radioterapia. Esses têm sido os casos mais vulneráveis.

 

CH: Por que esses vírus vêm de outras espécies para os humanos com tanta facilidade?

RIVALDO: Nos últimos anos, todas essas doenças emergentes são zoonóticas. Em geral, estavam em animais, aves, em ciclos silvestres, e, acidentalmente, os humanos entraram nesse ciclo. Muitas vezes, o homem já está nesse ciclo, mas o vírus é incapaz de se reproduzir nele, se replicar. Ocorre que muitos desses vírus sofrem mutações nas suas estruturas genéticas que os tornam capazes de infectar os seres humanos e, inclusive, se replicar no organismo humano. Normalmente, esses vírus respiratórios vêm de alguns mamíferos ou de aves, inclusive aves aquáticas. O contato com o vírus torna o humano mais exposto. A convivência mais íntima com esses animais faz com que haja essa adaptação a um novo organismo. A gripe aviária, que dizimou muitas criações de aves e frangos da China e em outros locais, em algum momento fez uma adaptação para replicação no ser humano, mas não tão intensa como essa que estamos observando agora no coronavírus. Nós tivemos também uma outra família de vírus respiratórios, os vírus influenza, que chamávamos da gripe suína porque, originalmente, aquele vírus estava se multiplicando, habitando e replicando os suínos, porcos. Houve uma adaptação para o ser humano e, a partir daí, uma transmissão em larga escala. Resumindo, isso é fruto de uma convivência próxima dos seres humanos com aves e outros animais associada a um processo de adaptação genética desse vírus, que o torna capaz de se replicar no organismo humano.


A letalidade pode ser infinitamente menor do que parece neste momento. Seria comparável à letalidade da influenza sazonal

CH: Como esse surto pode ser contido?

RIVALDO: Ainda é cedo para que possamos afirmar categoricamente como esse vírus vai se comportar. O que temos observado é que a contenção feita pelas autoridades da China contribuiu sobremaneira para retardar a disseminação do vírus para outras partes do mundo. Temos que reconhecer, em que pese todo o sacrifício da população chinesa, que esse processo surtiu efeito. Mas, por outro lado, ainda é cedo para dizer se o coronavírus será contido dentro dos territórios da China e de países do sudeste asiático. Também ainda é cedo para afirmarmos que o vírus tenha atingido seu pico máximo e que a tendência seria, a partir de meados de fevereiro, ter um declínio rápido na ocorrência dos casos novos. Também é preciso levar em consideração um aspecto muitíssimo importante que é a letalidade da doença provocada pelo vírus. As informações, até ontem, diziam que em torno de 2% a 3% das pessoas contaminadas morriam. A primeira relativização que temos que fazer é em relação aos números que estão sendo demonstrados. Nós e os meios de comunicação estamos falando somente dos casos com confirmação laboratorial. Muito provavelmente, se temos 60 mil casos com confirmação laboratorial é porque esse número de pessoas infectadas deve ter ultrapassado a casa de algumas centenas de milhares, talvez chegue a um milhão. Por que isso? Ainda não temos dados profundos e precisos sobre esses 60 mil que foram confirmados. São pessoas que procuraram as unidades de saúde? Nós sabemos, por experiência própria, que uma gripe não nos leva a uma unidade de saúde, a não ser que o quadro seja muito intenso. A letalidade pode ser infinitamente menor do que parece neste momento. Seria comparável à letalidade da influenza sazonal.

 

CH: Está sendo desenvolvida uma vacina?

RIVALDO: Muito provavelmente teremos uma vacina, mas não em curtíssimo espaço de tempo. Há todo o período de desenvolvimento, necessário para se ter todas as garantias de segurança, de que o produto venha a causar benefícios e não malefícios, que vá, de fato, proteger aquela população. Depois se testa a eficácia da vacina e todas as etapas necessárias até a comercialização de um produto para uso em larga escala. Deve demorar de um ano e meio a dois anos. Tomara que eu esteja errado!


Paralelamente à busca pela vacina, precisamos desenvolver kits para diagnóstico em larga escala e de fácil utilização a um custo acessível para os sistemas públicos de saúde.

CH: É considerado um tempo longo para desenvolver uma vacina?

RIVALDO: Comparado a outras vacinas, vai ser rápido. Lá se vão 70 anos nas tentativas de se fazer uma vacina para dengue. É mais rápido porque o vírus está sequenciado e há instrumentos de desenvolvimento tecnológico capazes de acelerar esse processo. Mas, paralelamente à busca pela vacina, precisamos desenvolver kits para diagnóstico em larga escala e de fácil utilização a um custo acessível para os sistemas públicos de saúde. Isso também vai ser importante para sabermos se a vacina está fazendo efeito ou não.

 

CH: Diante do tamanho da população da China, o número de mortos e infectados aponta para uma epidemia comparável às maiores da história?

RIVALDO: A China tem cerca de 1,4 bilhão de habitantes. Mesmo que os casos de infectados pelo coronavírus cheguem a 1 milhão, como expliquei antes, seria menos de 0,1% da população contaminada. Claro que qualquer doença que ceife uma vida é motivo de consternação, preocupação e sofrimento, além de mostrar a limitação da humanidade para lidar com problemas de saúde que, em tese, já existem há séculos. Mas, por enquanto, não é nada se comparada à gripe espanhola, por exemplo, que foi avassaladora, vitimando cerca de 5% da população mundial. Mas poderá aumentar muito, principalmente, se nós observarmos o que chamamos de transmissão sustentada em localidades fora da província de Hubei, que concentra 70% dos casos. Países próximos como Singapura, Tailândia, Indonésia e Índia, com uma população enorme, já começam a ter a transmissão sustentada, que é quando o vírus é transmitido de pessoa a pessoa, mesmo que nenhuma delas tenha convivido com indivíduos infectados ou que estiveram na China.

 

CH: Quais são as formas de transmissão desse vírus?

RIVALDO: Ainda há uma dúvida se só pelos aerossóis (micropartículas eliminadas por meio da tosse, respiração e fala que permanecem em suspensão no ar) ou também pelas gotículas (eliminadas pela fala, tosse, espirro etc. e transmitidas em contato direto). Mas, provavelmente, os dois.

 

CH: A epidemia deve chegar ao Brasil?

RIVALDO: Há chance de epidemia no Brasil sim. É possível a introdução do vírus aqui, assim como sua circulação em larga intensidade. Mas o mais provável é que aconteça nos períodos mais frios e úmidos do ano, quando esses vírus respiratórios se replicam. Até registramos a ocorrência de influenza nos primeiros meses do ano na região amazônica, mas não é comum e se deve à umidade do clima local.


Nunca é demais lembrar que a chegada dessa doença ao Brasil não irá substituir quaisquer enfermidades existentes. Não deixaremos de ter dengue, Chikungunya, sarampo e assim sucessivamente. Essa doença vem se somar à realidade brasileira

CH: O Brasil tem algum plano de emergência para conter casos de surtos de doenças infecciosas?

RIVALDO: O Sistema Único de Saúde (SUS) tem uma capilaridade importante no país, tanto do ponto de vista da rede diagnóstica como da rede assistencial, apesar de todas as dificuldades. O sistema de vigilância em saúde do Brasil é bom, haja vista a resposta e a contribuição que deu à humanidade no caso da infecção congênita pelo vírus Zika. No entanto, todos estamos vendo as dificuldades na rede de atenção hospitalar, principalmente nas regiões metropolitanas. Mas se estamos trabalhando com uma certa antecedência em relação ao que seria o período de intensificação da circulação do vírus, significa que temos tempo hábil para reorganizar essa rede e enfrentar a chegada da doença causada pelo coronavírus, a covid 19, como foi nomeada pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Nunca é demais lembrar que a chegada dessa doença ao Brasil não irá substituir quaisquer enfermidades existentes. Não deixaremos de ter dengue, Chikungunya, sarampo e assim sucessivamente. Essa doença vem se somar à realidade brasileira, e é mais uma demanda a esse sistema de saúde que está aí.

 

CH: É possível controlar a entrada de pessoas infectadas nos portos de entrada no país?

RIVALDO: A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) deu orientações às aeronaves para divulgarem as características da enfermidade, fazendo com que quem está com sintomas respiratórios procure o serviço médico do aeroporto. Mas nós sabemos que isso não resolve 100% da situação, porque uma pessoa pode entrar no Brasil infectada e só desenvolver a manifestação clínica da doença dias depois, quando já está em seu bairro. E hoje o nosso olhar é focado em pessoas que venham da China. Se ocorrer a transmissão sustentada em outros países, como Alemanha, França, Tailândia, Coreia do Sul, fica impossível o controle.

 

CH: Como funciona a sala de situação montada na Fiocruz?

RIVALDO: Após a aprovação do regulamento sanitário internacional, houve um avanço grande da organização para o enfrentamento de ameaças à saúde pública. Um desses mecanismos para acompanhar essas ameaças é a chamada sala de situações, um espaço articulado para acompanhar informações e elaborar respostas para reduzir o impacto daquele agravo que está sendo observado, que não é necessariamente a introdução de um novo vírus ou de uma nova bactéria. Por exemplo: a Fiocruz teve e tem salas de situação sobre Brumadinho, derramamento de petróleo, a água que a Cedae está fornecendo, sarampo etc. No caso específico da sala de situação sobre o coronavírus, convocamos o laboratório que faz o diagnóstico, que é de referência nacional; as unidades assistenciais, especificamente o Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas; o Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira; e também o Centro de Saúde Escola Nacional de Saúde Pública. Também estão presentes as secretarias de saúde municipais e do Estado do Rio, e foram convocados os setores ligados à produção, porque um dos desafios dessa emergência é, justamente, a obtenção de kits para diagnóstico preciso e em larga escala e de uma vacina para prevenir novas infecções. Da mesma forma, foi também mobilizado todo o pessoal ligado às áreas de informação e comunicação.

Valquíria Daher

Jornalista
Instituto Ciência Hoje

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