O ano de 2019 estava prestes a terminar, mas suas duas semanas finais trouxeram fatos surpreendentes: casos de pneumonia provocados por agente desconhecido foram reportados às autoridades de saúde de Wuhan, província de Hubei, na China. Os sinais e sintomas observados nesses pacientes levaram à suspeita de possível infecção por coronavírus. Foi o necessário para que as autoridades de saúde chinesas entrassem em alerta imediato.
A preocupação não foi sem razão. Em 2002, o mundo conheceu, pela primeira vez, o potencial de gravidade de infecções por coronavírus em humanos. Naquele ano, uma epidemia de SARS-CoV – ou coronavírus associado à Síndrome Respiratória Aguda Grave – se alastrou a partir da China para outros 26 países. Morreram cerca de 13% das pessoas com menos de 60 anos de idade infectadas. Entre os acima dessa faixa etária, a taxa de mortalidade alcançou 43%. Em 2012, outro coronavírus associado a infecções respiratórias fatais em humanos foi identificado na Arábia Saudita: os casos da Síndrome Respiratória do Oriente Médio – Mers-CoV – aconteceram e ainda acontecem quase que exclusivamente naquele país, e chama a atenção a taxa de mortalidade da doença, próxima aos 40%.
Como enfrentar uma ameaça dessa dimensão? Quais as estratégias e ferramentas para tal? A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou o SARS-COV-2 – denominação da doença causada pelo novo coronavírus – Emergência de Saúde Pública de Preocupação Internacional. Na prática, isso sinaliza o apoio da OMS e de todos os países do mundo às ações coordenadas das autoridades de saúde na identificação dos casos, controle do espalhamento do vírus, e na melhor compreensão da infecção. Dada a pronta resposta das autoridades de saúde e pesquisadores chineses no reconhecimento dos casos, a probabilidade de se interromper este surto continua sendo alta.
E como a China reconheceu tão prontamente esses casos do novo coronavírus? A semelhança de sintomas e sinais com os de SARS-CoV e de Mers-CoV foi a deixa. Em 2002, sem essa experiência prévia, os casos de SARS foram, inicialmente, registrados como pneumonia atípica. A doença inclui sintomas tais como febre, mal-estar, diarreia, calafrios, dificuldade ao respirar e dores musculares, de cabeça e de garganta. Nenhum dos sinais ou sintomas isoladamente ou em conjunto são suficientes para o diagnóstico da SARS, uma vez que outras infecções respiratórias também os apresentam – até mesmo uma gripe comum. Além disso, tosse (inicialmente seca) e falta de ar aparecem e/ou também foram observados nas primeira e segunda semanas de infecção. Os casos graves, à época, evoluíram rapidamente, progredindo para desconforto respiratório agudo que requer tratamento intensivo.
Diante do quadro similar ao de 2002, a amostra de um paciente hospitalizado em Wuhan foi rapidamente coletada e enviada aos laboratórios de vigilância de SARS na China. Em duas semanas, foram descartadas as presenças de SARS-CoV, MERS-CoV, influenza, influenza aviária, adenovirus e outros patógenos comuns causadores de doença respiratória. Os testes laboratoriais específicos (amplificação e sequenciamento do genoma viral completo) detectaram a presença de um coronavírus até então desconhecido, com cerca de 70% de seu genoma semelhante ao do SARS-CoV. O vírus foi provisoriamente denominado 2019-nCoV e depois oficialmente chamado de SARS-CoV-2.
Infecções por coranavírus em humanos já eram conhecidas antes mesmo de 2002, mas, em sua maioria, apresentavam sinais e sintomas de infecções respiratórias brandas, com alta taxa de transmissão direta de pessoa a pessoa e causadas por coronavírus adaptado aos humanos – o que mudou em relação ao SARS-CoV, ao Mers-CoV, e, agora, ao SARS-COV-2.
Os coronavírus são divididos em três grupos ou gêneros: Alphacoronavirus e Betacoronavirus contêm os vírus com potencial de infectar mamíferos. Já os Gamacoronavirus agrupam vírus com potencial de unicamente infectar aves. As análises moleculares do SARS-CoV indicaram que ele é classificado como Betacoronavirus assim como os coronavírus encontrados em morcegos. Os estudos demonstraram que a epidemia de SARS ocorreu a partir da transmissão zoonótica do SARS-CoV.
Na epidemia de 2002, suspeita-se que as transmissões ocorreram a partir do contato de humanos com animais infectados nos mercados de venda de carne. Foi demonstrada uma ligação genética entre o SARS-CoV causador das infecções em humanos e o coronavírus encontrados nos gatos-almiscarados, também chamados civeta, cuja carne era consumida em diversos locais, principalmente na China. Os morcegos teriam transmitido o vírus a esses gatos.
Após a transmissão inicial aos humanos, os contágios posteriores ocorreram por contato muito próximo no ambiente residencial, mas, principalmente, hospitalar, por ausência de precauções adequadas contra a disseminação de patógenos. Uma vez conhecida a forma de transmissão do SARS-CoV e implementadas práticas de controle eficazes, a epidemia terminou.
Infecções zoonóticas são aquelas em que o vírus é passado de espécie animal reservatório ou hospedeira natural aos humanos. Em geral, causam doenças graves, com altas taxas de mortalidade. Exemplos são infecções causadas pelos vírus da Raiva, Ebola, Marburg, Nipah e Hendra, e o HIV.
O morcego é o principal reservatório do vírus da Raiva – cujas infecções em humanos datam da Antiguidade – e de Ebola, Marburg, Nipah, Hendra e de vários coronavírus, que causam doenças diversas em humanos, de brandas a fatais. Esses animais aparentemente não apresentam sintomas dessas infecções por características que não estão presentes em primatas.
Alguns pesquisadores já demonstraram, por exemplo, que os morcegos apresentam importante resposta celular antiviral permanentemente ativa mediada por interferon (Interferon é proteína que as células de um organismo produzem quando percebem a presença de microrganismo). Mais recentemente, experimentos realizados com células de morcegos e células de primatas e modelos computacionais demonstraram que essa resposta dos morcegos pode levar à seleção de vírus com maior capacidade de transmissão para as células de primatas e maior capacidade de levar estas células à morte. Assim, começamos a entender o potencial zoonótico dos vírus presentes nos morcegos.
Em relação ao SARS-COV-2, a investigação dos casos iniciais de pneumonia mostrou que os indivíduos em Wuhan haviam frequentado regularmente os mercados de frutos do mar e venda de animais na região, apontando à possível origem zoonótica da doença. A análise do genoma demonstrou que esse vírus está relacionado aos coronavírus que circulam em morcegos. Entretanto, por ser uma epidemia de grande escala e completamente nova entre humanos, a busca por informações leva a descobertas de novas peças do quebra-cabeças quase que diariamente.
Outra hipótese do animal hospedeiro do SARS-COV-2 surgiu recentemente: o sequenciamento do genoma de CoV presente no organismo de pangolins (animal similar aos tatus) apresenta 99% de similaridade com o SARS-COV-2. A dinâmica de adaptação do vírus em humanos teria seguido a sequência morcego-pangolim-humanos. Esta ainda não é uma origem definitiva, já que outros animais precisam ser pesquisados. Os casos atuais reforçam a importância da continuidade dos estudos para identificar possíveis reservatórios desses vírus e suas formas de transmissão.
Duas características diferenciam o SARS-CoV-2 do SARS-CoV e do MERS-CoV: aparentemente o SARS-CoV-2 é transmitido mais facilmente de pessoa a pessoa por contato próximo, mas também há possibilidade de contágio a partir de indivíduos sem sinais e sintomas da doença, ou seja, no período de incubação do vírus.
Apesar de as formas de transmissão ainda serem alvo pesquisas, as autoridades de saúde recomendam medidas para tentar controlar a epidemia globalmente. Algumas das ações institucionais são:
Outras doenças zoonóticas emergentes
Apesar de extremamente importante do ponto de vista da saúde pública, o SARS-COV-2 não é a única epidemia preocupante atualmente. Também na China surgiram, até 23 de janeiro de 2020, 238 casos de gripe aviária H5N1, com a impressionante taxa de fatalidade de 56% (134 casos), segundo dados da OMS.
Na Nigéria, até a mesma data, já havia registro de 472 casos da febre hemorrágica causada pelo Lassa Vírus (muito similar aos vírus Marburg e ao Ebola), com 74 mortes. Transmitida por roedores, a febre do Lassa tem sintomas como hemorragia de órgãos internos, dores abdominais e perda de audição.
Já aqui no Brasil a notificação, em 20 de janeiro último, de um caso fatal de Febre Hemorrágica Brasileira (FHB), causada por um novo Arenavírus, acendeu um alerta. Esses vírus são parte de um grupo que infecta roedores silvestres. A infecção de humanos acontece principalmente a partir da inalação de aerossóis procedentes de urina, fezes e saliva de roedores infectados, contendo partículas de vírus. As infecções por Arenavírus em humanos são graves (febres hemorrágicas e/ou meningites) e com alta taxa de mortalidade.
O primeiro caso de FHB aconteceu na década de 1990 e foi causado pelo Arenavírus Sabiá. O último registro da doença ocorreu há mais de 20 anos. Até o momento não se sabe a fonte de contaminação do caso recente, mas o Ministério da Saúde indica que este seria um episódio isolado e de transmissão restrita.
A transmissão zoonótica de Nipah também tem grande potencial epidêmico. Esse vírus está presente em morcegos frutíferos do gênero Pteropus, e o consumo de frutas ou produtos de frutas contaminadas por saliva ou urina destes animais poder ser a fonte de contaminação humana. Em humanos pode haver a transmissão do vírus pessoa a pessoa por contato próximo. Os sintomas da doença incluem convulsões e encefalites fatais. A taxa de mortalidade da infecção varia de 40% a 75%. No início deste ano já foram registrados 6 casos em Bangladesh e na Índia, com 4 mortes.
Na China, até 27 de fevereiro de 2020, data de fechamento deste artigo, apesar dos cerca de 78 mil casos da doença confirmados e 2.718 mortes, o número de novos casos diminui a cada dia. No entanto, já há registro de casos nos cinco continentes.
No Brasil, o primeiro caso foi confirmado em 26 de fevereiro. Trata-se de um brasileiro que contraiu o SARS-CoV-2 em uma viagem de trabalho à Itália. Somente quando retornou ao Brasil, ele apresentou os sinais e sintomas da doença. É importante destacar que o paciente apresenta somente sintomas brandos e está em isolamento domiciliar. Portanto, até o momento não temos casos de transmissão no Brasil e não há motivo para pânico. Acreditamos que o Ministério da Saúde e os diversos serviços de saúde do Brasil estão preparados para lidar com esta nova doença.
Na China, até 27 de fevereiro de 2020, data de fechamento deste artigo, apesar dos cerca de 78 mil casos da doença confirmados e 2.718 mortes, o número de novos casos diminui a cada dia. No entanto, já há registro de casos nos cinco continentes.
No Brasil, o primeiro caso foi confirmado em 26 de fevereiro. Trata-se de um brasileiro que contraiu o SARS-CoV-2 em uma viagem de trabalho à Itália. Somente quando retornou ao Brasil, ele apresentou os sinais e sintomas da doença. É importante destacar que o paciente apresenta somente sintomas brandos e está em isolamento domiciliar. Portanto, até o momento não temos casos de transmissão no Brasil e não há motivo para pânico. Acreditamos que o Ministério da Saúde e os diversos serviços de saúde do Brasil estão preparados para lidar com esta nova doença.
Não existe tratamento específico para a doença, mas iniciar medicação logo que os sinais e sintomas surgem facilita a recuperação. Tem-se usado uma combinação de remédios já licenciados para tratar outras doenças virais, como anti-Influenza (vírus da gripe) combinados com alguns medicamentos do coquetel anti-HIV. A estratégia tem demonstrando boa resposta em casos mais graves, no entanto, serão necessários mais estudos para comprovar sua real eficácia.
Globalmente, novos coronavírus emergem periodicamente em diferentes áreas. A pronta resposta das redes de colaboração locais e internacionais para o reconhecimento dos casos e caracterização do patógeno, sua via de contaminação e transmissão, mostram a importância da manutenção da vigilância das doenças infecciosas.
O surgimento de zoonoses é algo multifatorial e inclui, principalmente, fatores humanos, como aumento de migração populacional, tráfico de animais silvestres, desmatamento e superpopulação mundial. Todas essas situações são difíceis de se controlar. Entretanto, medidas mundiais de ação de agências de saúde globais (OMS, por exemplo) associadas a ações locais de autoridades de saúde e ao trabalho incansável de cientistas podem auxiliar na redução de danos das epidemias.
Luciana Jesus da Costa, Juliana Reis Cortines e Yasmin Mucunã Mustafá
Instituto de Microbiologia Paulo de Góes
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Eduardo de Mello Volotão
Fundação Oswaldo Cruz
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