Os ‘novos quilombos’ e os desafios da ‘velha escola’

Departamento de Fundamentos Pedagógicos
Universidade Federal Fluminense
Programa de Pós-Graduação em Educação
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Faculdade de Educação
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Quando a escravidão foi abolida por lei em 1888, os quilombos deixaram de ser refúgios clandestinos de pessoas escravizadas e resistiram como comunidades com suas práticas, cultura, saberes e organizações próprias. A Constituição Cidadã de 1988 reconheceu os remanescentes desses grupos, abrindo caminhos para a formação dos ‘novos quilombos’. Nesse contexto, a Educação Escolar Quilombola, modalidade prevista na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, é essencial, mas há múltiplos desafios a serem superados.

Fotos Luiz Baltar e Marcelo Alburqueque

Para fugir da exploração, das violências e do sofrimento impostos pela estrutura socioeconômica escravista do Brasil colonial, grupos de africanos escravizados estabeleciam esconderijos no meio da floresta: os quilombos. O mais famoso foi o Quilombo de Palmares, que segundo alguns historiadores, chegou a reunir cerca de 20 mil habitantes, sob a liderança de Zumbi, morto numa emboscada em 1695, e contemporaneamente alçado ao panteão dos heróis nacionais. Durante os mais de 300 anos de escravidão no Brasil, inúmeros quilombos foram iniciados e dissolvidos.

Com a lei que aboliu a escravatura, em 1888, os quilombos deixaram de se caracterizar como comunidades clandestinas. Sem escravidão oficial, não havia como se falar em ‘escravos fugidos’. Em decorrência do esfacelamento da sociedade colonial escravista, a categoria quilombo não definia mais as situações daquelas comunidades, mas as pessoas que as formaram, bem como as gerações de seus descendentes, não deixaram de existir e de habitar aqueles territórios.

Durante boa parte do século 20, historiadores e antropólogos entraram em contato e pesquisaram aquilo que denominaram ‘comunidades negras rurais’ ou ‘terras de preto’, como eram chamados os grupos que, julgava-se, descendiam diretamente dos quilombos, tais como Kalunga (Goiás) e Conceição das Crioulas (Pernambuco), para citar algumas das mais conhecidas. Em comum, essas coletividades eram compostas de lavradores com práticas econômicas rurais de subsistência ou atividades econômicas de baixa intensidade. As populações apresentavam baixa escolaridade e acesso reduzido a serviços e bens públicos, como educação, saúde e saneamento.
Muitas conservavam manifestações culturais antigas e tradicionais, como jongo e capoeira, em geral associadas ao patrimônio cultural de origem africana. Outra característica comum era a luta pela manutenção de suas famílias nas terras que habitavam e onde trabalhavam. Durante boa parte do século 20, essas terras foram objeto de conflitos e violações, gerando, em muitos casos, litígios judiciais, uma vez que, em sua maioria, essas pessoas não possuíam titulação das propriedades.

Reconhecimento da Constituição cidadã

Por ocasião da promulgação da Constituição Federal de 1988, essas pessoas e grupos passam a ser reconhecidas pelo Estado brasileiro como remanescentes de quilombos, como afirma o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT): “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.” O Estado brasileiro, por meio desse dispositivo constitucional, passa a reconhecer um novo sujeito de direitos, os remanescentes de quilombos. Assim, as antigas ‘comunidades negras rurais’ passaram a ter de se organizar em uma nova identidade coletiva que comprovasse suas ‘heranças’, para garantir o direito à posse da terra.

estão quilombola’”: o artigo 68 do ADCT foi redigido de forma imprecisa, gerando um intenso debate sobre os limites e possibilidades de operacionalização do dispositivo constitucional. Quem seriam os quilombolas? Sua caracterização deveria se basear em elementos históricos ou identitários? Como definir a extensão de suas terras e de seus beneficiários? O beneficiário do direito seria o remanescente individual ou a comunidade remanescente?

Quem seriam os quilombolas? Sua caracterização deveria se basear em elementos históricos ou identitários? Como definir a extensão de suas terras e de seus beneficiários? O beneficiário do direito seria o remanescente individual ou a comunidade remanescente?

Duas interpretações principais se contrapunham na análise do dispositivo constitucional. A primeira, associada ao conceito do dicionário, tomava a noção histórica de quilombo para qualificar e reconhecer os quilombolas, utilizando a literalidade do termo ‘remanescentes de comunidades de quilombo’. Esta interpretação se associava às representações mais gerais sobre quilombo, como réplicas do Quilombo de Palmares, e considerava o direito sobre a terra como individual. Na outra ponta do debate, um movimento de instituições e agentes promovia uma nova interpretação, avançando na ênfase nos conceitos de etnicidade e de terras de uso comum dos remanescentes de quilombos. Essa segunda interpretação rompia com uma vinculação necessária entre o direito à terra como quilombola e a necessidade de comprovação de um passado histórico que remontasse à escravidão.

Novos quilombos

A nova interpretação foi resultado de elaborações conceituais na década de 1990, a partir da atuação do movimento negro, de setores vinculados ao Estado, da academia – com forte atuação da Associação Brasileira de Antropologia – e de profissionais do campo do Direito. Foi a partir dessa articulação que emergiu a interpretação principal segundo a qual se compreende remanescentes de comunidades de quilombo como grupos étnicos (aqueles que interagindo entre si num mesmo território portam uma história comum e se sentem ligados por ela), com identidade autoatribuída, e direito coletivo a terra. Essa mudança interpretativa garantiria a reivindicação de direitos identitários e territoriais não somente às antigas comunidades negras rurais, mas também incluía outras coletividades que lutavam pela manutenção e titulação de suas terras: os ‘novos quilombos’.

Ainda conforme Amanda Lacerda Jorge e André Brandão, a autoatribuição étnica, aliada à luta pela terra, garantiria mesmo que a categoria “quilombola” fosse desencaixada de uma chave histórica escravocrata, ou biologicamente definida (através de elementos fenotípicos), para transitar pela sociedade brasileira como um agrupamento social que se articula e passa a ser reconhecido a partir de um processo de mobilização étnica. Assim, ‘comunidades quilombolas’ poderiam estar sendo criadas mesmo na contemporaneidade, em processo contínuo, como o são alguns novos quilombos urbanos, como o quilombo da Sacopã, na cidade do Rio de Janeiro, reconhecido em 2002, mas com um histórico de ocupação desde a década de 1930.

Entretanto, para uma comunidade reivindicar o direito ao território é necessário demonstrar não só sua permanência na terra, como também uma memória coletiva, com elementos culturais (materiais e imateriais), laços de parentesco, e outros elementos que caracterizem a forma de ser e a identidade da comunidade. O reconhecimento legal das comunidades quilombolas é um processo administrativo que envolve a Fundação Palmares e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

A titulação de terras, responsabilidade do Estado prevista na Constituição Federal, tem representado o maior gargalo na efetivação das políticas públicas para esses grupos. Segundo dados da Fundação Cultural Palmares, temos listadas 2.859 comunidades quilombolas certificadas, dentre estas apenas 34 são tituladas, 14 possuem titulação parcial e 1.071 não possuem processo de titulação no Incra.

Para além da garantia de terra, os novos quilombos, em distintas condições e fases de mobilização pelo país, vêm demandando políticas públicas que reforcem sua etnicidade, garantam sua territorialidade e condições de vida digna. Uma das mais importantes frentes reivindicadas desde os anos 1990 é a educação escolar voltada aos povos quilombolas, que fortaleça o reconhecimento das novas gerações aos seus direitos a terra e cultura própria.

Para além da garantia de terra, os novos quilombos, em distintas condições e fases de mobilização pelo país, vêm demandando políticas públicas que reforcem sua etnicidade, garantam sua territorialidade e condições de vida digna

Educação Escolar Quilombola X escola republicana

A Educação Escolar Quilombola (EEQ) é uma modalidade de ensino no Brasil prevista na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Brasil, 1996). Publicadas em 2012, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola reconhecem a natureza própria desses processos educativos, fortalecendo ideias e noções que buscavam uma educação apoiada no respeito à especificidade étnico-cultural de cada comunidade e em suas formas de organização social. Reconhecem também a necessidade de materiais didático-pedagógicos contextualizados com a identidade étnico-racial do grupo. Todas essas expressões denotam o ancoramento da Educação Escolar Quilombola às diferentes realidades socioculturais de cada comunidade em específico e, ao mesmo tempo, às demandas gerais dos movimentos negro e quilombola.

A Educação Escolar Quilombola (EEQ) é uma modalidade de ensino no Brasil prevista na Lei de Diretrizes e Bases da Educação

Mesmo reconhecida como um avanço do Estado brasileiro na reafirmação do Brasil como nação multiétnica e na reparação de sua dívida histórica em relação à escravidão, a implementação da política educacional quilombola, inegavelmente, apresenta desafios para o modelo convencional de escola, inscrito na experiência dos países republicanos. O modelo de intervenção escolar convencional se baseia no estabelecimento de um contraponto às formas de pertencimento e vinculação dos indivíduos em grupos proximais, como a família e a comunidade de origem. Por meio de seus conteúdos, seus rituais, sua disciplina e sua moral, espera-se que a escola tradicional forme novas disposições nos indivíduos, que, embora não diminuíssem as disposições familiares e comunitárias de origem, deveriam dotar os estudantes de relativa autonomia quanto a novos caminhos e decisões. Esse contraponto fornecido pela ação educadora da escola republicana clássica buscava não apenas a produção de um novo tipo de indivíduo, especialmente, um cidadão nacional, mas, no limite, promoveria até mesmo um questionamento das configurações sociais locais.

A implementação da política educacional quilombola, inegavelmente, apresenta desafios para o modelo convencional de escola, inscrito na experiência dos países republicanos

A Educação Escolar Quilombola parte de uma perspectiva diferente, dando destaque à importância da interface entre práticas e saberes pertencentes à tradição escolar de forma geral e práticas e saberes singulares, compartilhados no interior de cada uma das comunidades que compõem o heterogêneo universo dos quilombos no Brasil. Concebe o programa escolar republicano descrito acima como um projeto parcial, baseado numa visão eurocêntrica, pasteurizada, que, ao reivindicar a formação neutra de um cidadão nacional, estaria aniquilando outras formas de conhecimento e de organização social.

Menos contrastivo, mais conciliatório, o programa de Educação Escolar Quilombola, como desenhada nas normativas nacionais, estaria inseparavelmente associado à memória, às formas de mobilização étnico-comunitárias e, ao mesmo tempo, deveria tratar do conhecimento ou dos saberes universais previstos no currículo básico. Os professores quilombolas que, segundo as normativas, preferencialmente deveriam ser originários dos próprios quilombos, são instados a fazer mediações entre o conhecimento escolar formal e o tradicional local. Mediações nada simples, como entre os conceitos referenciais da geografia física e as percepções comunitárias do espaço e do clima.

Os professores quilombolas que, segundo as normativas, preferencialmente deveriam ser originários dos próprios quilombos, são instados a fazer mediações entre o conhecimento escolar formal e o tradicional local. Mediações nada simples

Além do desafio de um currículo escolar diferenciado que combine essas referências, há também a necessidade de construção de um consenso escolar pela mobilização étnica de cada comunidade. A condição especial dos novos quilombos, em distintas fases de mobilização, demanda um papel ativo da escola no sentido da consolidação interna dessas coletividades e de sua projeção junto à sociedade em geral. O baixo número de titulações de terra pode ser lido como um indício do pouco reconhecimento da legitimidade dos novos quilombos junto à sociedade e ao estado brasileiro.

Demanda-se da escola, portanto, ser um dos agentes ativos na (re)construção da memória comunitária e das redes de solidariedade social internas, e na preservação de seus conhecimentos tradicionais. Um exemplo marcante desse desafio e seus dilemas pode ser encontrado no documentário Rosa do Quilombo (leia a resenha na seção Na Tela, nesta edição), produzido pelos autores deste texto, que aborda as experiências escolares para a construção de uma educação diferenciada, ligadas ao movimento de luta pela terra do Quilombo Caveira, localizado na zona rural de São Pedro da Aldeia, no Rio de Janeiro.

A Educação Escolar Quilombola impõe grandes desafios. A efetivação dessa política enfrenta obstáculos que passam pela gestão pública, pelo financiamento, pela formação e planos de carreira docente, pela qualificação da infraestrutura escolar e pela própria estruturação dos currículos quilombolas, sem que se abdique da aquisição dos conhecimentos previstos na base nacional para todos os estudantes do país. Dentre os desafios dessa política educacional, deve-se ainda destacar as imensas diferenças de um quilombo para outro, que abrangem, entre outras, as dimensões geográficas (quilombos urbanos e rurais); políticas (diferentes estados e municípios); identitárias (com forte ou fraco reconhecimento da delimitação ‘nós-outros’); de coesão comunitária (em diferentes graus); de interesses comunitários (centrados em manifestações culturais e/ou folclóricas, rurais ou urbanas, em práticas laborais e/ou de artesanato, em solidariedade religiosa cristã, afrodescendente ou de sincretismo religioso).

A novidade ainda recente da formação e do reconhecimento de inúmeras comunidades quilombolas pelo país demonstra que a modalidade de Educação Escolar Quilombola está em construção. Seus contornos ainda são pouco definidos, com currículos relativamente imprecisos. Essa ‘nova escola’ depende de maior ou menor participação comunitária local e de superar as limitações da capacidade dos sistemas públicos de ensino em traduzir as demandas locais em conhecimentos e práticas escolares. Se a velha escola, eurocêntrica, que invisibiliza saberes e práticas de povos tradicionais, será capaz de se renovar para integrar e legitimar as demandas dos novos quilombos é uma questão central para uma política de reparação das mazelas sociais oriundas do processo de formação social do Brasil.

Amanda Lacerda Jorge e André Brandão O Social em Questão -Ano XIX – nº 35 -2016 A produção social da “questão quilombola” no Brasil | Amanda Lacerda Jorge – Academia.edu

A certificação quilombola https://www.palmares.gov.br/?page_id=37551

Rosa do Quilombo: https://youtu.be/POv5dfRSDgE

ARRUTI, José Maurício. Mocambo: antropologia e História do processo de formação quilombola. 1. ed. Bauru: Edusc, 2006.

BARTH, Fredrik. Etnicidade e o conceito de cultura. Tradução: Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto. Antropolítica: Revista Contemporânea de Antropologia e Ciência Política, Niterói, n. 19, p. 15-30, 2005.

Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas: conaq.org.br

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