Mapas são documentos muito úteis para localização e orientação no espaço geográfico em que estamos inseridos. Aplicativos e outras ferramentas de todo tipo têm utilizado mapas digitais para ajudar as pessoas a encontrar destinos diversos – teatros, escolas, hospitais, praias etc. – ou para guiá-las em seu deslocamento diário.
Mas nem sempre foi assim. Até meados do século passado, os mapas oficiais eram confeccionados apenas por especialistas, a serviço dos governos. Havia uma natural limitação – tecnológica e/ou provocada pelo tamanho da área a ser mapeada – na quantidade de dados e informações que um mapa poderia conter.
A escala, um elemento obrigatório do mapa, mostra a relação entre o que está desenhado e o que existe no espaço real. Então, se o mapa possui uma escala de 1:250.000, significa que cada 1 cm corresponde a 250.000 cm (2.500 m ou 2,5 km) na realidade.
Portanto, quanto maior a escala do mapa (quanto menor o denominador), mais detalhado ele será, representando mais elementos pela mesma unidade de área, como nomes de ruas, localização de praças, escolas, travessas, vielas.
Com o surgimento dos sistemas de informação geográfica (SIG) – programas para processamento de dados geográficos –, muito do trabalho de mapear foi facilitado. Esse avanço também foi favorecido pelo aumento do poder computacional e pelo armazenamento de grandes volumes de dados em nuvem, que podem ser acessados e trabalhados colaborativamente via internet.
Toda essa revolução tem sido acompanhada pelo aumento da participação popular nos mapeamentos. O aporte de dados tornou-se mais diversificado, contando com a visão daqueles que conhecem bem os locais. E esse tipo de informação contribui para o empoderamento das comunidades, que passaram a participar das ações de planejamento, monitoramento e avaliação, levando as questões que lhe são importantes para o mapeamento.
Em regiões que não foram contempladas em mapeamentos oficiais – os chamados vazios cartográficos –, como áreas com aglomerados subnormais (favelas) ou de proteção ambiental, o mapeamento colaborativo pode auxiliar o aporte de dados relacionados a elas.
O uso de programas como o OpenStreetMap (OSM), a maior base cartográfica colaborativa da atualidade, tem permitido a realização de mapeamentos por grupos organizados em torno de um objetivo comum. O OpenStreetMap apresenta-se como ótima solução para suprir dados ausentes nos grandes vazios cartográficos ainda existentes no Brasil, por possuir uma enorme rede de usuários, que colaboram com grande volume de dados e realizam a validação da sua qualidade (ver ‘O mapeamento colaborativo no OpenStreetMap’).
O OSM é o projeto que disponibiliza uma base cartográfica colaborativa, com dados de diferentes partes do mundo, incluídos e validados por uma comunidade voluntária de mapeadores, de utilização livre (desde que citada a autoria) e que têm como característica comum possuir uma localização na superfície terrestre (dados geoespaciais).
O OSM baseia-se no mapeamento colaborativo do terreno (ou de outros ambientes, como o mar), que atende a diferentes fins, valorizando o conhecimento local de quem contribui.
Criado em 2004 pelo empreendedor britânico Steve Coast, o OSM teve como foco inicial o Reino Unido. Desde 2006, o site e serviços relacionados são geridos pela Fundação OpenStreetMap, abrangendo todo o mundo. Até junho de 2021, existiam mais de sete milhões de usuários cadastrados globalmente, com mais de sete bilhões de elementos já mapeados.
As contribuições podem ser realizadas por qualquer pessoa, bastando um cadastro prévio na página da plataforma. Para inserir os dados geográficos e editar os mapas do OSM, os usuários têm à disposição programas que foram desenvolvidos com a linguagem de programação Java, como o editor iD, disponível na própria página web do OSM, ou programas autônomos como o JOSM.
Essas contribuições são apoiadas em pesquisas próprias, dados de GPS e imagens de satélite ou fotografias aéreas, de domínio público. Os dados podem ser inseridos no OSM como pontos, linhas ou polígonos (representando áreas), desenhados sobre imagens de satélite de fundo, fornecidas pelas empresas BingⓇ, ESRIⓇ, MapboxⓇ, dentre outras. Os elementos inseridos são descritos com detalhes em etiquetas.
O OSM fornece dados geoespaciais para milhares de sites, aplicativos móveis e dispositivos de computador. Esse mapeamento colaborativo é muito útil também para os gestores das pequenas cidades brasileiras, que geralmente não possuem uma base cartográfica própria, devido aos custos de geração dessas informações.
O trabalho de mapeamento colaborativo local vem ganhando destaque, em diversas partes do mundo, principalmente a partir de eventos de grande magnitude e impacto na mídia, como o terremoto ocorrido em 2010 no Haiti e que devastou a capital, Porto Príncipe, causando a morte de aproximadamente 300 mil pessoas e deixando mais de um milhão de desabrigados. Em um esforço internacional, a cidade teve todo o seu território mapeado em dias. Esse trabalho foi fundamental no planejamento das ações de resgate e salvamento das vítimas.
No Brasil, situação semelhante aconteceu após o rompimento da barragem de rejeitos da mina Córrego do Feijão, pertencente à mineradora Vale S.A., em janeiro de 2019, no Município de Brumadinho, em Minas Gerais. As principais vias de locomoção na área foram mapeadas em curto espaço de tempo, por colaboradores locais e internacionais, o que contribuiu para que as equipes alcançassem as regiões atingidas com maior rapidez, auxiliando o socorro às vítimas e a busca de desaparecidos.
Exemplo relevante de mapeamento colaborativo é o trabalho realizado no Município de Jaraguá do Sul (SC), coordenado pelo engenheiro civil Hélio Cesar Tomio, que utilizou acervo de imagens aéreas e dados de GPS da Secretaria Municipal de Urbanismo. Colaboradores e voluntários realizaram a atualização de toda a base cartográfica municipal.
Já em Laranjal Paulista (SP), o mapeamento foi elaborado de forma independente pelo mapeador voluntário, arquiteto e urbanista Igor Eliezer, utilizando informações do levantamento de campo e de uma pesquisa bibliográfica de dados municipais. Os dados compilados foram disponibilizados no Atlas de Laranjal Paulista, utilizado como fonte de pesquisas sobre o local.
Esses casos são referências nacionais de como o uso das informações detalhadas mapeadas por diversos tipos de colaboradores (agentes públicos ou voluntários) pode se tornar uma base de dados cartográfica confiável e amplamente utilizada. Equipes de planejamento do poder público local e de empresas privadas têm a possibilidade de usá-las para diferentes finalidades, como a definição de linhas de transportes de passageiros, a distribuição de cargas, a localização de uma via de transporte, a construção de escolas ou ciclovias e a construção ou abertura de unidade fabril ou comercial.
Em nível estadual, destacamos o trabalho de mapeamento colaborativo realizado no Espírito Santo, onde o Governo do Estado disponibiliza a sua base de dados geográficos – o Sistema Integrado de Bases Geoespaciais do Estado do Espírito Santo (Geobases). Os mapeadores voluntários locais, coordenados por Luc Freitas, atualizam esses dados diretamente na plataforma do OSM.
Mesmo com o avanço do mapeamento colaborativo e voluntário no Brasil, ainda há grande carência de colaboradores. Nas regiões Norte e Nordeste, onde existem grandes vazios de informações geográficas e cartográficas no OSM, essa situação fica mais nítida.
Entre os poucos colaboradores dessas regiões, estão os mapeadores voluntários Francisco Marques e Miguel Qualhano, que realizam, no extremo sul piauiense, onde se localizam os municípios de Bom Jesus e Corrente, um trabalho muito relevante. Essas localidades vêm se tornando, nos últimos anos, uma nova e importante fronteira agrícola, que integra a região denominada de MATOPIBA, formada pelos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Novos migrantes, principalmente oriundos do Sul do Brasil, estão transformando o Cerrado piauiense em imensas lavouras comerciais de soja, algodão e milho. E a dupla de mapeadores percebeu a necessidade de melhorar a base de dados cartográficos da região.
O conhecimento mais detalhado das características territoriais é condição essencial para o planejamento, pelos governos, de grandes obras de infraestrutura, como construção de rodovias, ferrovias, usinas hidrelétricas e gasodutos, e também para a implantação de diversos empreendimentos da iniciativa privada.
Outras atividades relevantes, de interesse do poder público, de empresas e da sociedade, como monitoramento de áreas de floresta, levantamento de recursos minerais e demarcação de áreas indígenas, também necessitam dessas informações. E, considerando-se escalas maiores do que 1:10.000, mapeamentos de zoneamentos urbanos, de rede viária, de acessibilidade, de distribuição espacial de equipamentos urbanos e de áreas suscetíveis a movimentos de massa ou a inundações são outros exemplos de demanda de geração de dados geoespaciais cada vez mais detalhados e atualizados.
Em todas essas situações, é fundamental que órgãos públicos – das esferas federal, estadual, distrital e municipal – além de universidades, empresas, organizações não governamentais e mapeadores voluntários possam avançar no levantamento, na geração, na organização e no acesso a dados geoespaciais de qualidade e compatíveis com as escalas de análise e cartográfica do mapa final.
Ações do governo federal, em parceria com os governos estaduais, estão contribuindo para reduzir os vazios cartográficos de áreas que contavam com mapeamentos em pequenas escalas apenas, como as diversas cartas temáticas na escala de 1:1.000.000 produzidas no âmbito do Projeto RadamBrasil, na década de 1970. Até 2010, quase 1,8 milhão de km² da Amazônia Legal (correspondente a 35% dessa área) não possuía informações detalhadas da sua cartografia. Buscando reduzir esse vazio cartográfico, o governo brasileiro, por meio do Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (Censipam), lançou o Projeto Radiografia da Amazônia.
É realmente fundamental o desenvolvimento de novas iniciativas de mapeamento colaborativo para suprir os dados ausentes nos demais vazios cartográficos do Brasil. Diante dos grandes vazios cartográficos ainda existentes no país, fica evidente como os mapeamentos colaborativos são extremamente relevantes e urgentes para a gestão pública e para a iniciativa privada.
Raquel Dezidério Souto
Laboratório de Cartografia,
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Jocilene Dantas de Barros
Laboratório de Análises e Desenvolvimento de Indicadores para a Sustentabilidade,
Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais
Marta Foeppel Ribeiro
Departamento de Geografia Física,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Miguel Ângelo Lima Qualhano
Departamento de Tributação e Cadastro Imobiliário,
Prefeitura de Jerônimo Monteiro/ES
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