Extraindo água do ar
Materiais nanoporosos ajudam a combater uma crise mundial

Programa de Pós-graduação em Química,
Universidade Federal do Rio de Janeiro

A escassez de água potável é um problema sério, enfrentado por mais de 500 milhões de pessoas no mundo. As mudanças climáticas, o crescimento populacional e o aumento da poluição agravam a situação, exigindo novas tecnologias para produzir água de forma acessível e sustentável. Pesquisas recentes mostram que materiais com poros diminutos (com diâmetros na casa dos bilionésimos de metro) são uma solução promissora para produzir água potável a partir do ar – mesmo em regiões desérticas.

CRÉDITO: IMAGEM ADOBE STOCK

O acesso à água é fundamental para a sobrevivência e o bem-estar da humanidade: em sua forma potável, esse líquido é essencial para a saúde, higiene e alimentação. De fato, a vida não existiria sem essa molécula preciosa, cujo papel é igualmente preponderante para o desenvolvimento econômico e social de um país – basta lembrar de áreas como irrigação, geração de energia, transporte, turismo etc.

O acesso à água potável tem sido um desafio constante, desde os primórdios da civilização. Por exemplo, o rio Nilo possibilitou o surgimento das primeiras grandes cidades no Egito antigo; romanos e incas desenvolveram sistemas relativamente avançados de captação e distribuição de água potável.

Séculos depois, apesar dos avanços tecnológicos, a escassez e dificuldade de acesso à água potável continuam sendo problemas globais. Pior: que tendem a se agravar. Estima-se que, até 2050, quase metade da população mundial viverá em regiões com escassez de água, o que pode levar a conflitos entre nações motivados por esse bem natural.

A escassez global de água é um problema complexo. Ela resulta da falta de correspondência geográfica – algumas regiões têm acesso abundante à água, enquanto outras não têm fontes naturais disponíveis – ou temporal – por causa da sazonalidade de períodos de chuvas e secas – entre a demanda e a disponibilidade de água doce. Segundo relatório da Organização das Nações Unidas, 31 países estão no limite físico do chamado estresse hídrico; e 22 deles já ultrapassaram esse patamar.

Projeções indicam que o número de nações nessa situação pode aumentar, por causa das mudanças climáticas, do crescimento da população global e da contínua poluição da água. Em seu mais recente relatório anual de riscos, o Fórum Econômico Mundial lista crises hídricas como o maior risco global em termos de impacto potencial.

Em seu mais recente relatório anual de riscos, o Fórum Econômico Mundial lista crises hídricas como o maior risco global em termos de impacto potencial

A distribuição desigual no espaço e tempo dos recursos de água doce é particularmente problemática. Embora sistemas aprimorados de gestão hídrica possam aliviar a situação em alguns países, em geral, será necessário gerar água doce suplementar – especialmente, em regiões áridas ou naquelas de grande densidade urbana afetadas por longos períodos de seca severa.

Diante desse cenário, é crucial o desenvolvimento de novas tecnologias que permitam a obtenção de água a partir de fontes alternativas, de modo contínuo e barato.

Fontes alternativas

A Terra tem um volume gigantesco de água, estimado em cerca de 1,3 bilhão de km3. Mas só percentual mínimo dele (3%) é doce e, em sua maior parte, existe na forma de glaciares e aquíferos subterrâneos. Portanto, apenas cerca de 0,3% da água doce está disponível para consumo direto.

Apenas cerca de 0,3% da água doce está disponível para consumo direto

A dessalinização da água do mar tem sido vista como técnica promissora para fornecer água potável em áreas com escassez – afinal, mares e oceanos são a maior reserva de água do planeta. Mas, mesmo com os avanços recentes, a tecnologia de dessalinização ainda consome muita energia e tem baixa produtividade. Esses problemas, combinados ao fato de seu emprego estar limitado só a regiões costeiras, impedem que essa técnica seja amplamente usada.

Mas há outra fonte menos conhecida: a atmosfera. Nela, estima-se haver 13 mil trilhões de litros de água, na forma de vapor e pequenas gotas. Esse volume seria suficiente para satisfazer o consumo atual e futuro das regiões com problemas de acesso à água.

Então, coletar água da atmosfera pode ser um caminho promissor para obter água potável de maneira descentralizada e contínua. Esse tipo de abordagem pode ser ainda mais importante em regiões áridas e desérticas sem infraestrutura de distribuição ou fontes de água potável.

Captura atmosférica

Antes de falarmos nos métodos de captura de água da atmosfera, é preciso fazer breve distinção entre dois processos: adsorção e absorção.

A absorção é o processo pelo qual uma substância líquida ou gasosa entra em outra substância (geralmente sólida ou líquida), e as moléculas da substância absorvida penetram o interior da substância absorvente, dispersando-se nela. Essas moléculas podem se dissolver ou reagir com a substância absorvente.

A adsorção é o processo em que as moléculas adsorventes aderem à superfície de uma substância sólida ou líquida. Isso pode ocorrer de duas maneiras: i) fisissorção, na qual as moléculas adsorvidas interagem com a superfície do material adsorvente por meio apenas de interações intermoleculares ‘físicas’ (como as chamadas forças de van der Waals ou ligações de hidrogênio); ii) quimissorção, quando ocorre algum tipo de reação química entre as moléculas adsorvidas e a superfície do material adsorvente.

Os materiais adsorventes – sólidos com poros internos capazes de capturar moléculas em sua superfície – são uma possível alternativa para coletar água diretamente da atmosfera. Exemplo desse tipo de material em nosso dia a dia é a sílica-gel, usada como agente dessecante para transporte e conservação de produtos sensíveis à água.

Mas a sílica-gel e outros adsorventes comuns não são adequados para a construção de um sistema de coleta de água atmosférica em grande escala, pois não conseguem capturar grandes quantidades de água. Além disso, o processo de adsorção é lento.

Recentemente, surgiu um candidato promissor para essa tarefa: os chamados materiais reticulares, nova classe de materiais porosos adsorventes que já está sendo usada com sucesso tanto em escala de laboratório quanto em testes de campo.

Os materiais reticulares são estruturas cristalinas e porosas formadas pela conexão: i) de moléculas orgânicas entre si; ii) destas com aglomerados (clusters) inorgânicos, por meio de ligações químicas fortes.

Quando uma dessas moléculas é um cluster inorgânico e outra uma molécula orgânica, o material é denominado MOF (sigla, em inglês, para retículos metalo-orgânicos). Quando ambas são moléculas orgânicas, o material obtido é denominado COF (retículos orgânicos covalentes) (figura 1).

Figura 1. Representação de um COF em diferentes escalas. Em a, b e c, microscopia eletrônica de tunelamento de alta resolução de amostra do COF RIO-12; em d, representação esquemática da estrutura do COF RIO-12, com moléculas de gás carbônico (CO2) dentro do poro – a sigla ‘nm’ significa nanômetro (bilionésimo de metro)

CRÉDITO: CEDIDA PELO AUTOR

Os materiais reticulares têm estruturas cristalinas com poros na escala de poucos nanômetros (bilionésimos de metro). Pelo fato de seus poros serem tão pequenos, podem apresentar áreas superficiais extremamente altas, ultrapassando a casa de 10 mil m² para cada grama de material – em uma analogia simples, é como se cada grama desse material tivesse mais área de superfície do que o campo de futebol do Maracanã, que tem cerca de 7.140 m² de área superficial.

Pelo fato de seus poros serem tão pequenos, podem apresentar áreas superficiais extremamente altas, ultrapassando a casa de 10 mil m² para cada grama de material

Além da grande área superficial, esses materiais apresentam outro diferencial importante: a capacidade de desenhar sua estrutura e ajustar suas propriedades físico-químicas em nível atômico, por meio da escolha e modificação de suas moléculas formadoras.

A escolha da geometria molecular, dos grupamentos químicos e do comprimento dessas moléculas permite o desenho preciso do formato, do tamanho e das propriedades químicas dos poros do material, oferecendo grande variedade de opções para projetar materiais com características e funções específicas.

Água no deserto

Em trabalho pioneiro publicado no periódico científico Science em 2021, um grupo de pesquisadores liderados por Omar Yaghi, da Universidade da Califórnia, em Berkeley (Estados Unidos), demonstrou a viabilidade de um sistema autônomo de captura atmosférica de água que empregou o material reticular MOF-303.

O MOF-303 – formado pela conexão de uma molécula orgânica com um cluster de átomos de alumínio – foi capaz gerar três copos de água por quilograma do material por dia no deserto de Mojave (sudoeste norte-americano), onde a umidade relativa do ar é menor do que 10%.

Esse tipo de tecnologia – que parece retirada do livro de ficção científica Duna, do escritor norte-americano Frank Herbert (1920-1986) – pode possibilitar a produção de água potável, mesmo nas regiões mais secas e desafiadoras.

Esse tipo de tecnologia – que parece retirada do livro de ficção científica Duna, do escritor norte-americano Frank Herbert (1920-1986) – pode possibilitar a produção de água potável, mesmo nas regiões mais secas e desafiadoras

Para realizar essa façanha, os pesquisadores desenvolveram um dispositivo que usa o ciclo dia e noite para gerar água. Esse dispositivo é composto por uma câmara transparente, com um recipiente que pode ser preenchido com o MOF. À noite, o dispositivo é aberto manualmente, e a parte interna é exposta ao ambiente, fazendo com que o ar úmido entre em contato com o MOF.

Nesse contato, as moléculas de água dispersas no ar acabam adsorvidas na superfície dos poros do material, ficando retidas no dispositivo. De manhã, o dispositivo é fechado, também manualmente. Com o aumento da temperatura causado pela incidência do sol, as moléculas adsorvidas no material são liberadas, formando uma atmosfera cheia de vapor na câmara.

Esse vapor, então, passa por um condensador, gerando água limpa, que pode ser coletada. Esse dispositivo não necessita de fonte de energia externa, podendo realizar grande quantidade de ciclos e, assim, gerar água de maneira autônoma.

Esse processo de captura pode ser acelerado com o uso de uma fonte de aquecimento artificial. Com isso, é possível a realização de ciclos rápidos de captura e coleta de água de dia e noite.

Apesar de cada ciclo artificial gerar quantidade menor de água do que no ciclo dia e noite, um número grande de ciclos pode fazer com que a quantidade de água capturada seja até três vezes maior dessa forma (figura 2).

Figura 2. Esquema de dispositivo passivo e ativo de captura de água do ar. À esquerda, os gráficos representam a quantidade de água capturada nos poros do material. À direita, esquema de como ocorre o processo de captura de água: entrada do ar úmido; geração do vapor por aquecimento; condensação; e coleta da água

CRÉDITO: CEDIDA PELO AUTOR

Em nível molecular

Em trabalho recente, Yaghi e colegas combinaram técnicas de difração de raios X e cálculos computacionais para elucidar o mecanismo de captura de água molécula a molécula, demonstrando em detalhes o mecanismo de preenchimento dos poros do material.

Ao sequenciar a captura de moléculas de água uma a uma, como em um filme, os pesquisadores conseguiram ver claramente como a estrutura do MOF-303 se contrai e se expande no processo de adsorção. Mais: viram como as primeiras moléculas de água se ligam aos sítios de adsorção mais fortes, seguidas por outras, que formam clusters isolados; depois, cadeias de clusters; e, finalmente, uma rede de água.

Esse nível de entendimento do processo é importante e permite que novos materiais sejam projetados para ser ainda mais eficientes.

Este ano, um grupo de pesquisadores do Instituto de Tecnologia de Pequim (China) demonstrou que a incorporação de grupos hidrofílicos – moléculas que têm ‘atração’ pela água – à estrutura de materiais reticulares do tipo COF aumenta não só a quantidade de água capturada, mas também a velocidade de difusão dessas moléculas no material.

Isso faz com que tanto a captura quanto a liberação da água ocorram mais rapidamente, permitindo maior eficiência do processo de geração. Em tempo: a incorporação desse tipo de grupamento químico à estrutura de materiais nanoporosos orgânicos já havia sido usada com sucesso para aumentar a captura de gás carbônico por esses materiais.

Desenvolvimento futuro

Ainda há um longo caminho a ser percorrido até que esse tipo de tecnologia esteja comercialmente disponível e possa causar real impacto em nossa sociedade. Para atingir esse objetivo, é crucial compreender as interações entre as moléculas de água e as estruturas reticulares, o que permitirá projetar materiais mais eficientes, com maior capacidade de captura de água e mais acessíveis economicamente.

Para isso, pesquisadores – inclusive, no Brasil – estão trabalhando principalmente em técnicas de simulação computacional, para entender como as alterações na estrutura química dos materiais reticulares afetam suas propriedades de captura de água.

Ainda há um longo caminho a ser percorrido até que esse tipo de tecnologia esteja comercialmente disponível e possa causar real impacto em nossa sociedade

HANIKEL, Nikita; PRÉVOT, Mathieu S.; YAGHI, Omar M. MOF water harvesters. Nature, v. 15, n. 5, p. 348-355, 2020.

HANIKEL, Nikita et al. Evolution of water structures in metal-organic frameworks for improved atmospheric water harvesting. Science v. 374, n. 6566, p. 454-459, 2021.

SUN, Chao et al. 2D covalent organic framework for water harvesting with fast kinetics and low regeneration temperature. Angewandt Chemie v. 62, n. 11, 2023.

MAIA, Renata Avena et al. CO2 capture by hydroxylated azine-based covalent organic frameworks. Chemistry – An European Journal v. 27, n. 30, p. 8048-8055, 2021.

XU, Wentao; YAGHI, Omar M. Metal-organic frameworks for water harvesting from air, anywhere, anytime. ACS Central Science, v. 6, n. 8, p. 1348-1354, 2020.

HANIKEL, Nikita et al. Evolution of water structures in metal-organic frameworks for improved atmospheric water harvesting. Science, v. 374, n. 6566, p. 454-459, 2021.

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