Nettie Stevens, o cromossomo Y e a complexa biologia da determinação sexual

Instituto de Microbiologia Paulo de Góes
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Geneticista norte-americana decifrou, no início do século 20, a incógnita sobre como é definido o sexo biológico na reprodução, mas não teve seu trabalho devidamente reconhecido em vida por ser mulher em uma comunidade científica dominada por homens

CRÉDITO: FOTO CORTESIA, BRYN MAWR COLLEGE SPECIAL COLLECTIONS

Antes de tudo, é importante destacar que, neste texto, o termo sexo será utilizado para descrever as diferenças anatômicas entre indivíduos do sexo masculino e feminino, enquanto gênero será usado para se referir a uma construção sociocultural multidimensional que inclui identidade e comportamentos. Agora, vamos aos “bastidores” que queremos relembrar…

O mecanismo da determinação do sexo biológico das espécies durante a reprodução foi uma incógnita por séculos. A teoria predominante era que a atuação das condições ambientais sobre a fêmea da espécie definiria o sexo da prole. Na Grécia antiga, por exemplo, para formular sua teoria, Aristóteles (384-322 AC) se apropriou dos escritos de outro filósofo, Empédocles (495-430 AC), para quem os organismos são compostos de diferentes proporções dos quatro elementos: fogo, água, ar e terra. Aristóteles, por sua vez, acreditava que a temperatura interna da mãe era crucial para definir o sexo do feto: quando mais quente, moldava uma criança do sexo masculino, considerado ativo e dominante; se fosse mais fria, resultaria num bebê do sexo feminino, tido como mais passivo e fraco.

A teoria predominante era que a atuação das condições ambientais sobre a fêmea da espécie definiria o sexo da prole

Ao longo dos séculos, seguiram-se inúmeras tentativas de explicar por que um feto se desenvolve em um indivíduo sexo masculino ou feminino. A partir do século 17, a ciência começou a desvendar os meandros da anatomia da reprodução em humanos. Regnier de Graaf (1641-1673) descobriu os folículos ovarianos e descreveu a ovulação; Antoine Van Leeuwenhoek (1632-1723) observou os espermatozoides em 1677, e o óvulo foi descoberto por Karl Von Baer (1792 – 1876) em 1872. Mas sem o conhecimento de genética, ou da existência do DNA e da hereditariedade, essas teorias se prendiam a influências do ambiente no desenvolvimento embrionário, como a nutrição e a posição do embrião no útero materno.

Foi apenas no início do século 20 que esse segredo começou a ser desvendado  pela bióloga e geneticista norte-americana Nettie Maria Stevens (1861-1912), responsável por contribuições significativas para o campo da citogenética (ramo da biologia que estuda os cromossomos e seu papel na hereditariedade).

Uma estudante brilhante

Nettie perdeu a mãe aos 2 anos, mas seu pai, um carpinteiro habilidoso, teve meios para bancar a educação superior de suas duas filhas. Aluna exemplar, Nettie estudou na Westfield Normal School (hoje Westfield State University). Após se formar, foi professora e bibliotecária. Seu objetivo era juntar dinheiro suficiente para perseguir seu sonho: se tornar cientista. Em 1896, aos 35 anos, ela se matriculou na Universidade de Stanford, onde obteve seu diploma de mestrado em ciências em 1900. No ano seguinte, publicou seu primeiro artigo sobre o ciclo de vida de protozoários ciliados e descreveu duas novas espécies de protozoários.

Sua brilhante passagem por Stanford a colocou em uma posição de destaque, e ela foi aceita na Universidade de Bryn Mawr, na Pensilvânia, para o doutorado. Foi diplomada em 1903, feito impressionante para qualquer mulher seguindo uma carreira científica na época.

Em 1900, as publicações de Gregor Mendel (1822-1884) delineando os princípios da hereditariedade haviam sido redescobertas, e o campo da citologia genética estava em polvorosa. O papel dos cromossomos na hereditariedade era fervorosamente discutido no meio científico, com embates entre apoiadores e detratores. Em 1903 Nettie passou a se interessar pela questão da determinação do sexo e aplicou com sucesso para uma bolsa de estudos da famosa Carnegie Institution of Washington.

Sua grande contribuição foi a descoberta dos cromossomos sexuais, especificamente a existência do sistema de determinação do sexo pela presença do cromossomo Y, em muitas espécies. Cromossomos são estruturas que ficam no núcleo das células, e são formadas pelo DNA da célula todo empacotado. São os grandes arquivos da célula, contendo toda informação genética dos organismos. Nossos genes, por exemplo, estão armazenados em 46 cromossomos nas nossas células somáticas (aquelas que formam os nossos órgãos e tecidos). Já as células germinativas (óvulos e espermatozoides) contém 23 cromossomos cada, e, quando se combinam, formam um embrião contendo os 46 cromossomos que carregamos pelo resto da vida.

Pesquisa com larvas-da-farinha

Em 1905, Nettie publicou a primeira parte do livro “Estudos em espermatogênese”, na qual apresenta os resultados de seus estudos rastreando o comportamento dos cromossomos na reprodução de coleópteros – ordem de insetos composta pelos besouros. Nesse estudo, ela incluiu cupins (Termopsis angusticollis) e grilos (Stenopelmatus spp.), mas foram as larvas-da-farinha (Tenebrio molitor) que chamaram a atenção. Ela percebeu que as células somáticas das larvas-da-farinha fêmeas tinham 20 cromossomas grandes, enquanto as células dos machos tinham 19 cromossomos grandes e 1 de menor tamanho. Quando olhou para as células germinativas, percebeu que os óvulos tinham 10 cromossomos grandes, enquanto as células germinativas dos machos tinham 9 cromossomos grandes e 1 pequeno. Nas palavras da própria autora:

“Este parece ser um caso claro de determinação do sexo, não por um cromossomo acessório, mas por uma diferença definida no caráter dos elementos de um par de cromossomos dos espermatócitos de primeira ordem, os espermatozoides que contêm o pequeno cromossomo determinante do sexo masculino, enquanto aqueles que contêm 10 cromossomos de igual tamanho determinam o sexo feminino.”

Nettie chamou esses diferentes cromossomos de heterocromossomos e os categorizou como L (para large, grande) ou S (small, pequeno), e descreveu que eles seguem as leis de herança mendelianas: a presença (ou ausência) do cromossomo Y corresponde à determinação do sexo. O nome do cromossomo Y foi alterado anos mais tarde apenas para seguir a ordem alfabética do cromossomo X, descoberto e nomeado em 1890 por Hermann Henking (1858-1942) – ele não tem a forma da letra Y.

O trabalho de Nettie forneceu evidências para a teoria cromossômica da hereditariedade e desafiou a noção predominante de que a determinação do sexo era exclusivamente ditada por fatores ambientais. Assim, abriu caminhos para pesquisas sobre o papel dos cromossomos na genética e na determinação do sexo, estabelecendo as bases para avanços no campo.

O trabalho de Nettie forneceu evidências para a teoria cromossômica da hereditariedade e desafiou a noção predominante de que a determinação do sexo era exclusivamente ditada por fatores ambientais

Apesar disso, a pesquisadora enfrentou discriminação na comunidade científica dominada por homens. Precisou lutar por uma posição de pesquisa permanente e enfrentou dificuldade para ser reconhecida por seu trabalho em vida. Postumamente, foi reverenciada como uma pioneira da citogenética, mas é irônico que a descobridora da importância do cromossomo Y para a determinação do sexo não tenha recebido crédito por não possuir um cromossomo Y.

Quanto ao papel dos cromossomos na determinação biológica e a cansativa claque que defende o mantra “XX é mulher, XY é homem”, pedimos que se informem. As descobertas de Nettie abriram avenidas de conhecimento, mas a biologia da determinação sexual é mais complexa do que os ensinamentos do ensino médio. O sexo biológico humano é determinado por muito mais do que a presença ou ausência do cromossomo Y. Hoje podemos distinguir o sexo cromossômico, hormonal, genital, cerebral e identidade sexual como diferentes quesitos que se enquadram em um espectro. E muitos cientistas defendem que a insistência em um sistema de dois sexos deve ser revisitada para acomodar a diversidade que podemos distinguir na fisiologia humana.

Hoje podemos distinguir o sexo cromossômico, hormonal, genital, cerebral e identidade sexual como diferentes quesitos que se enquadram em um espectro. E muitos cientistas defendem que a insistência em um sistema de dois sexos deve ser revisitada para acomodar a diversidade que podemos distinguir na fisiologia humana

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