Ao folhear um álbum de família, traços conhecidos surgem nas antigas fotografias. Olhos, nariz, boca, cor dos cabelos, altura e muito mais. Por vezes, é possível reconhecer essas semelhanças mesmo em pessoas de gerações muito anteriores. E se pudéssemos encontrar, em um álbum, retratos muito mais antigos, que revelassem nossas características em comum e, consequentemente, relações ancestrais com outras espécies? Sabemos que isso não é possível fora da ficção, mas há uma área da genética que constrói hipóteses sobre a relação evolutiva – um tipo de laço de parentesco – entre grupos de organismos, ou seja, sua filogenia.
Para entender melhor como essas hipóteses são construídas, é preciso começar relembrando como o material genético é passado de uma geração para outra. O genoma (conjunto de genes) de cada indivíduo é uma mistura proveniente do pai e da mãe. Para formar um organismo adulto, o genoma do zigoto (célula resultante da fecundação) tem que ser duplicado muitas vezes, dando origem a bilhões ou trilhões de células, cada uma com sua cópia do genoma. Em outras palavras: quando a célula se duplica, ela transmite uma cópia do seu DNA a cada uma de suas células ‘filhas’.
Apesar de acurado, esse processo de duplicação do material genético (ou DNA) não é perfeito. Erros acontecem, e são chamados de mutações. Existem mecanismos de controle e correção das cópias, que trabalham o tempo todo, mas também estão sujeitos a falhas.
Como o DNA é o responsável pela hereditariedade dos organismos, esses erros são passados às gerações posteriores dos mutantes. As mutações podem ser deletérias (ou seja, causam algum dano ao organismo mutante), neutras ou até vantajosas. De modo geral, os organismos com mutações vantajosas têm chances maiores de sobrevivência. Por exemplo, uma mutação que resultou no aparecimento de pelos em um mamífero ancestral possibilitou a sobrevivência de seus descendentes em locais inóspitos e frios. Os filhotes desse primeiro mutante que também carregaram essa mutação vantajosa tiveram mais êxito em sobreviver. Esse processo, por meio do qual sobrevivem os organismos com as melhores características, é chamado de seleção natural. No entanto, a mutação e a seleção natural não são os únicos fatores responsáveis pela evolução. O acaso também desempenha um papel essencial. Imagine se o primeiro mutante peludo tivesse quebrado a perna. À época, não haveria forma de curá-lo, e a morte seria o destino certo, mesmo com a mutação vantajosa.
Em geral, a mutação vantajosa contribui para que um organismo sobreviva em um ambiente competitivo como a natureza. Mas a evolução, que leva a característica do primeiro mutante a todos os membros de uma espécie, não ocorre tão rapidamente. Na primeira geração, o mutante será o único de sua população a ter a característica. Na segunda geração, só os filhotes do mutante poderão ter a mutação; na terceira, serão os ‘netos’ do mutante; e assim por diante. Dessa forma, a nova característica deverá, em dezenas ou centenas de gerações, ser fixada, ou seja, estar presente em todos os indivíduos de uma espécie.
Durante a pandemia de Covid-19, muito se fala sobre as mutações sofridas pelo vírus SARS-CoV-2. Por terem uma taxa de multiplicação muito alta, os vírus, de uma maneira geral, estão mais propícios aos erros durante esse processo, ainda que também disponham de mecanismos reparadores. Por isso, os vírus podem adquirir mutações vantajosas muito mais rapidamente que os outros organismos. Que características seriam vantajosas para eles? Resistência a drogas é uma vantagem importante para parasitas em geral, incluindo os vírus. Nesse caso, uma alta taxa de mutação significa um problema para o desenvolvimento de drogas ou vacinas contra vírus, pois, uma vez que apareça um mutante resistente à droga ou à vacina, ele tende a se espalhar rapidamente. Diante disso, será necessário desenvolver uma nova droga – ou vacina – para combater a linhagem mutante. O SARS-CoV-2 não tem mostrado uma alta capacidade de mutação, o que é uma boa notícia para a humanidade neste momento.
Embora dependam de um hospedeiro para se replicar, outra característica vantajosa que pode aparecer em um determinado vírus é a capacidade de ser transmitido de uma espécie para outra. No caso do SARS-CoV-2, foi o que ocorreu: o novo coronavírus, provavelmente, conseguiu passar do morcego ou outro animal para os humanos. Essa passagem é mais favorecida entre espécies próximas, ou seja, que compartilham mais características, como entre dois mamíferos. Vírus de plantas, por exemplo, são geralmente inofensivos para animais, pois as características biológicas necessárias para infecção em cada um dos dois tipos de hospedeiros são muito distintas.
Para evitar novas pandemias, então, é importante prestar atenção ao contato de humanos com outras espécies de mamíferos. Mas e as aves? Seriam elas próximas o suficiente? A gripe aviária é um exemplo de que sim. Diante disso, surge uma pergunta: o quão próximas duas espécies devem ser para que o contato entre elas seja perigoso?
A proximidade entre as espécies é determinada pela distância temporal da ancestralidade comum. Se o ancestral comum viveu pouco tempo antes das duas espécies descendentes, elas são mais próximas, com mais características em comum. Por outro lado, se esse ancestral comum viveu muito tempo antes delas, as duas espécies são mais distantes e apresentam menos traços similares. Uma analogia simples é comparar com uma família: dois irmãos são semelhantes geneticamente, pois os ancestrais comuns são recentes, os pais. Já primos são menos parecidos, pois os ancestrais comuns são mais antigos, os avós. Dois vizinhos têm ancestrais comuns ainda mais distantes, e, por isso, são ainda menos similares.
As conexões entre membros de uma mesma família são traçadas em uma árvore genealógica. Para entender o padrão de ancestralidade e descendência entre os seres vivos de diferentes espécies, não existem álbuns de família, e sim as árvores filogenéticas. Essas árvores nada mais são do que árvores genealógicas, só que muito mais amplas. A mais ampla de todas é a árvore filogenética da vida.
Quanto maior a árvore genealógica, mais difícil entender as relações de parentesco entre seus membros. O mesmo acontece nas árvores filogenéticas, que buscam entender as relações de ancestralidade e descendência de grandes linhagens de grandes grupos, como os mamíferos, ou até da vida. Por isso, nem todas as espécies de um grupo são incluídas em cada árvore filogenética.
A representação gráfica do processo de evolução nas árvores filogenéticas é dividida em: espécies atuais, ramos e nós. Os ‘nós’ representam ancestrais comuns de duas espécies e os ‘ramos’ são as linhas que unem os ‘nós’ de acordo com as relações de ancestralidade e descendência.
Os ‘nós’ de uma árvore filogenética marcam o momento em que um ancestral deu origem a duas linhagens descendentes. Esse momento marca o evento de especiação, ou seja, o processo de formação de espécies de seres vivos a partir de uma espécie preexistente. Nas árvores filogenéticas, os eventos de especiação são como os nascimentos e os casamentos das árvores genealógicas.
A especiação muitas vezes ocorre em função de um isolamento geográfico que separa os indivíduos de uma espécie. Esse isolamento acontece, geralmente, a partir de um evento geológico. Por exemplo, um terremoto pode mudar o curso de um rio, separando parte de uma espécie ancestral em uma margem e a outra parte na outra margem do rio. Isso significa que essas duas partes da espécie ancestral param de cruzar uma com a outra, pois estão em locais diferentes. Depois do isolamento, as duas partes separadas começam a se diferenciar, já que as mutações que acontecem nos indivíduos de cada margem são diferentes. Tais mutações vão se acumulando até que, em alguns milhares de anos, os indivíduos de uma parte não conseguirão mais se reproduzir com os da outra, mesmo se voltarem a habitar o mesmo local.
Duas espécies com ancestral comum muito recente possuem uma grande parcela do seu genoma semelhante e, portanto, compartilham muitas de suas características. Isso significa que grande parte do conhecimento que se tem sobre uma espécie pode ser transferida para a outra. Isso se chama previsibilidade. Saber o quanto de previsibilidade há entre duas espécies depende de quando viveu seu ancestral, ou seja, de quando as duas ainda eram uma única espécie. Por exemplo, no caso de humanos e chimpanzés, espécies que se separaram há 7 milhões de anos, mais de 96% de seus genomas são idênticos. Essa semelhança aponta que, se um medicamento ou uma vacina funcionar em chimpanzés, há uma grande probabilidade de que seja eficaz em humanos.
Mas só podemos aplicar a previsibilidade fornecida por uma árvore filogenética para nos comparar com chimpanzés? Não. Comparando a posição de humanos e felinos na árvore filogenética, por exemplo, percebe-se que seu ancestral comum é mais antigo que o de humanos e chimpanzés, tendo vivido há uns 90 milhões de anos (figura 2). Portanto, a previsibilidade de que as respostas de humanos e felinos a uma virose, por exemplo, sejam as mesmas é alta, mas não tão alta quanto a previsibilidade entre humanos e chimpanzés, cujo ancestral comum é mais recente. Isso significa que, se um vírus consegue infectar uma espécie de mamífero, ele tem maior chance de conseguir infectar outra espécie com genoma semelhante, como outro mamífero.
Por outro lado, comparando a posição de humanos e moscas drosófilas na árvore filogenética, percebe-se que seu ancestral comum é bem mais antigo, tendo vivido há mais de 600 milhões de anos. Nesse caso, ainda existe previsibilidade, mas ela é mais baixa, pois os genomas de drosófilas e humanos têm apenas cerca de 60% de similaridade. Baixa também seria a chance de um vírus de insetos conseguir infectar humanos.
Assim, sem a previsibilidade das árvores filogenéticas, seria preciso estudar cada uma das características de cada organismo para saber mais sobre eles. Isso faria da biologia uma ciência impossível! Com o conhecimento filogenético, se uma nova espécie de mamífero é descoberta, automaticamente são associadas a ela muitas características compartilhadas por todos os mamíferos – como a presença de coluna vertebral, de glândulas mamárias, de pelos e muitas outras. Isso porque tais características já estavam presentes no ancestral comum dos mamíferos e, dessa forma, foram transmitidas para todos os descendentes dessa espécie ancestral, incluindo a espécie recém-descoberta.
É a previsibilidade que torna a biologia algo mais do que um punhado de conhecimento decorado, e são as árvores filogenéticas que permitem isso. O conhecimento produzido pela filogenia faz da biologia, também, uma ciência histórica. Afinal, a chave para compreender a biologia está na evolução das espécies, que é a história da biologia. No entanto, os biólogos não têm a mesma sorte dos astrônomos, que podem registrar imagens do passado das estrelas… Imagine se os cientistas pudessem fotografar a Terra na época dos grandes pterodáctilos ou do Tyrannosaurus rex?
Enquanto não se inventa uma máquina do tempo para isso, o melhor é continuar construindo árvores filogenéticas, representações gráficas que nos orientam na imensidão do conhecimento biológico e são verdadeiros ‘retratos’ da evolução da vida na Terra.
Claudia A. M. Russo
Departamento de Genética,
Instituto de Biologia,
Universidade Federal do Rio de Janeiro
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