Na contramão do pensamento científico

O embate entre ciência e religião ocorre, pelo menos, desde o século 15. Desde lá, a ciência vem avançando e desvendando muitos aspectos sobre o mundo físico, enquanto a religião tem se ocupado de teses que pretendem questionar a noção de que a vida na Terra se formou por leis naturais. Uma delas é o design inteligente, que atualmente busca se estabelecer como grupo de pesquisa dentro de universidades.

Da ciência temos a demonstração pelos astrofísicos de que o Universo tem cerca de 13,6 bilhões de anos, e não 8 mil anos, como sugerido pela leitura literal da Bíblia. Sabe-se que a Terra não é o centro do Universo, mas um pequeno planeta que orbita em volta do Sol, uma pequena estrela, dentre as mais de 100 bilhões de estrelas da Via Láctea. Os astronautas que foram ao espaço, graças à tecnologia gerada pela ciência, puderam verificar com seus próprios olhos que a Terra não é plana e, sim, uma esfera azul. Datações conservadoras, baseadas na meia vida dos isótopos, indicam que a vida na Terra se formou nos últimos 3,7 bilhões de anos, portanto não foi criada em poucos dias. Estudos que investigam a similaridade entre o DNA das espécies atuais demonstram que todas as espécies atuais descendem de um mesmo ancestral comum que se diferenciou formando a árvore da Vida. Estudos paleontológicos confirmam que somente organismos primitivos são encontrados em estratos geológicos mais profundos, portanto mais antigos, enquanto organismos derivados são encontrados apenas nos estratos mais superficiais, portanto mais recentes. Estudos moleculares demonstram que os animais não se espalharam pela Terra a partir do Monte Ararat, conforme sugere a passagem da Arca de Noé. Finalmente, estudos moleculares, comparativos e paleontológicos não deixam dúvidas de que já existiram várias espécies do gênero Homo e o ser humano (homo sapiens sapiens) é apenas uma das espécies do grupo dos primatas.

Do lado da religião, o design inteligente surpreende por ter entre seus principais defensores pesquisadores com uma sólida formação científica e que conhecem, em detalhe, a teoria da evolução. O argumento central da tese defendida pelo design inteligente é o de que por trás de todo ‘design’ tem que haver um ‘designer’. Desta forma, o ‘designer’ é deduzido pela existência do ‘design,’ e não assumido, a priori, como proposto no criacionismo, que é a crença de que o Universo, a Terra e a vida provêm de um ato divino, sobrenatural. É por conta desta dedução do ‘designer’ que o design inteligente reivindica o status de ‘hipótese científica’ e vem organizando grupos de pesquisa dentro de universidades.

O design inteligente supõe que existem estruturas biológicas que possuem complexidade irredutível, que é a ideia de que certos, que é a ideia de que certos sistemas biológicos não podem ter evoluído de sistemas mais simples por meio de seleção natural. E, partindo desta suposição, conclui a existência de um misterioso ‘designer’. No entanto, nenhum exemplo de complexidade irredutível tem passado pelo crivo do tempo. Antes, citava-se o olho como exemplo de um órgão perfeito e de complexidade irredutível. Hoje sabemos que os nossos olhos não são perfeitos, porque apresentam um furo no meio da retina por onde passa o nervo ótico, e sabemos que olhos humanos podem facilmente ser formados por uma sequência gradual de pequeno de passos evolutivos. Atualmente, procura-se o ‘divino’ no flagelo de seres unicelulares. No entanto, podemos deixar aqui um desafio científico para a complexidade irredutível do flagelo: se os flagelos surgiram por design inteligente, todos os genes envolvidos em sua criação devem ter aparecido ao mesmo tempo na filogenia do grupo. Se a evolução está correta, os genes que dão origem as diversas partes do flagelo irão aparecer em diferentes momentos evolutivos do grupo. Este desafio pode ser estendido para todos os órgãos considerados de complexidade irredutível, por exemplo, o nosso cérebro.

O design inteligente não conseguiu explicar nenhum fato que a teoria da evolução não tenha conseguido explicar.

Fragilidades

Como hipótese científica o design inteligente tem se mostrado frágil. Seus defensores têm se especializado em trabalhar nas áreas onde os próprios evolucionistas reconhecem que mais trabalho tem de ser feito, mas não se propõe a discutir áreas do conhecimento que estão bem estudadas. O design inteligente, até o momento, não levou a um único avanço científico sequer. Nenhuma nova hipótese específica sobre o funcionamento da natureza foi proposta. Nenhum novo dado foi apresentado. O design inteligente não conseguiu explicar nenhum fato que a teoria da evolução não tenha conseguido explicar. Em contraposição, centenas de novos testes da teoria da evolução são apresentados diariamente nas revistas especializadas.

Quando confrontados com o fato de que a grande maioria das evidências atuais apontam para o processo evolutivo, os defensores do design inteligente contra-argumentam que basta uma prova para desbancar uma teoria. Se isso é verdade, a hipótese do design inteligente pode ser falseada com a existência de design não-inteligente. E parece que design não-inteligente é algo bastante comuns na natureza. Podemos citar, por exemplo, o nosso código genético. Se todos os seres vivos são feitos de 20 aminoácidos, a existência de 64 RNA transportadores é uma tolice, bastariam 20 RNA transportadores para fazer todas as proteínas do mundo. Se o designer é inteligente e criou os programas genéticos para a construção de seres perfeitos, não é tolice criar um DNA que pode sofrer mutação? Também não parece tolice adicionar uma sequência enorme de nucleotídeos (Adenina, Citosina, Guanina e Timina) repetitivos, tipo ATATAT, em nosso DNA. Da mesma forma, não é tolice criar seres cegos em cavernas com olhos vestigiais? Ou aves que possuem asas mas não voam? Ou colocar ossos de perna dentro do corpo das baleias? Todas essas ‘tolices’ são fatos que falsificam a hipótese do design inteligente.

Nada de novo

Poucas teses levantadas pelos defensores do design inteligente são novas. A tese da ‘complexidade irredutível’ foi na realidade apresentada pelo naturalista britânico Charles Darwin (1809-1882), no capítulo VI de A origem das espécies (1859), sob o nome ‘órgãos de extrema perfeição’. Os tão discutidos elos perdidos dos registros fósseis, também apresentado no capítulo VI de A origem das espécies, continuam a ser discutidos pelos defensores do design inteligente como se nenhum avanço tivesse ocorrido desde 1859. Nos debates, ignora-se o enorme acúmulo de fósseis que confirmam as predições darwinianas. Ignora-se todos os fósseis que caracterizam importantes transições evolutivas. Ignora-se a congruência entre as idades estimadas por análises isotópicas e as idades relativas estimadas pelas árvores moleculares. Ignora-se os fósseis de inúmeros hominídeos que foram encontrados dentro e fora da África e suas idades recentes de, no máximo, dois milhões de anos.

Além disso, o design inteligente continua a perpetuar a falácia do equilíbrio pontuado – teoria segundo a qual seres de reprodução sexuada apresentam poucas mudanças ao longo do tempo geológico – como evidência da descontinuidade do processo evolutivo. A teoria darwiniana exige continuidade do processo evolutivo, mas não afirma que a taxa evolutiva tenha de ser constante. Padrões de equilíbrios pontuados são evidências de períodos em que as taxas evolutivas foram altas e não de evidência de descontinuidade. Se alguém que normalmente demora 30 minutos para ir a pé da universidade para casa e num determinado dia chega em apenas cinco minutos, a hipótese mais parcimoniosa é a de que tenha conseguido uma carona de carro e não de que tenha se teletransportado. Indo mais além, novas descobertas da biologia evolutiva do desenvolvimento explicam os mecanismos naturais que podem levar a rearranjos mais drásticos no plano corporal de alguns animais.

A ‘origem da vida’ é outra trincheira dos defensores do design inteligente, dado que a ciência ainda não tem todas as respostas sobre esta questão

Evolução e origem da vida

A geração de novas espécies, até certo tempo atrás, era um predicado exclusivo do ‘designer’. Com o acúmulo de inúmeros trabalhos moleculares de filogeografia ficou claro que Darwin estava certo ao afirmar que o puro isolamento geográfico entre populações de uma espécie poderia levar ao isolamento reprodutivo e, após muitas gerações, ao surgimento de novas espécies. Hoje em dia até o bioquímico norte-americano Michael Behe, considerado um dos principais mentores do design inteligente, já declarou que a evolução pode gerar espécies e até gêneros. No entanto, sem nenhuma justificativa lógica derivada do design inteligente, afirma que a evolução não pode gerar novas famílias. É neste nível taxonômico que ele estabelece sua nova trincheira.

Em seu livro Devolution (2019), Michael Behe defende a tese que a evolução só sabe destruir genes e não formar algo novo. Behe cita uma série de exemplos em que adaptações surgem por “quebra” de genes existentes previamente. Mas esta tese do design inteligente na realidade concede espaço para o processo evolutivo ao admitir que adaptações podem surgir por mutações que atingem genes pré-existentes. Na realidade, na evolução não há juízo de valor. Mutações que afetam desproporcionalmente a sobrevivência e a reprodução dos indivíduos que as possuem em relação aos indivíduos que não as possuem irão aumentar sua frequência na próxima geração. Se a perda das pernas, das asas ou dos olhos são favorecidos pela seleção natural, que assim seja. Assim surgiram as cobras, os avestruzes e alguns peixes cavernícolas. Darwin não tinha nenhum problema com isso. Mas Behe constrói a nova trincheira do design inteligente na formação de “novos” genes. Aqui a definição de “novo gene” deve ser vista com cuidado, pois nenhum evolucionista alega que uma mutação crie uma sequência funcional de centenas ou milhares de pares de bases a partir do nada. Novos genes sempre vão ser formados por material reciclado.

A ‘origem da vida’ é outra trincheira dos defensores do design inteligente, dado que a ciência ainda não tem todas as respostas sobre esta questão. No entanto, desde a primeira hipótese científica formulada por Darwin, que visualizou uma poça cheia de compostos proteicos reagindo pela ação dos raios elétricos, a ciência já avançou tremendamente. Atualmente sabemos que ácidos nucleicos, aminoácidos e compostos lipídicos podem se formar facilmente por equações simples sob diversas condições laboratoriais. Sabemos que vesículas lipídicas semelhantes a membranas se formam espontaneamente. Sabemos que o RNA pode ao mesmo tempo acumular informações e agir como elemento catalítico, comportando-se, ao mesmo tempo, como genótipo e fenótipo. Além disso, evidências laboratoriais e teóricas indicam que eles podem produzir cópias de si mesmos, com erros eventuais, e sofrer um processo análogo à seleção natural. Obviamente a ciência está longe de ter desvendado a ‘origem da vida’, mas muitos avanços já foram feitos desde Darwin.

Em muitas caminhadas, ciência e religião podem e devem ser parceiras

Alçadas distintas

Todas as culturas do mundo se questionam sobre a origem do Universo, da Terra, da natureza e do ser humano. Cada qual encontra as suas respostas, que são de um valor intrínseco inestimável. Além disso, a ciência não tem nada a dizer sobre diversos assuntos tratados pela religião. Assuntos metafísicos, por exemplo, estão fora da alçada da ciência. A ciência tem pouco a oferecer sobre a ética do ser humano. A ciência não alimenta de esperança um prisioneiro de guerra. A ciência não oferece nenhum conforto para a mãe que perdeu um filho… A religião tem muito a dizer sobre o respeito ao próximo, independentemente de sua cor, orientação sexual ou mesmo credo.

Em muitas caminhadas, ciência e religião podem e devem ser parceiras. O Papa Francisco, por exemplo, escreveu a encíclica Laudato Si, conclamando os fiéis a tomarem conta da nossa casa, que é a Terra. Cientistas do mundo inteiro têm procurado chamar a atenção para os abusos cometidos pelo ser humano e para as mudanças que, como consequência, se anunciam e ameaçam a biodiversidade do planeta. É bastante provável que transformações profundas só ocorram quando a conscientização racional dos fatos estabelecidos pela ciência sobre os perigos da perda de nossa biodiversidade interagir sinergicamente com a conscientização ética que pode ser estimulada pelas diversas religiões do mundo.

Cabe dizer que a ciência não se propõe a ter a verdade última. Teorias científicas sempre serão um trabalho em construção. Discussões intelectualmente honestas, que desafiam as teorias científicas, sempre serão bem-vindas. Mas a existência de um designer responsável por criar tudo ou guiar o processo evolutivo sem deixar qualquer pista não tem contribuído para o avanço da ciência e nossa compreensão sobre a natureza.

Carlos Roberto Fonseca

Departamento de Ecologia,
Universidade Federal do Rio Grande do Norte 

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